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Visibilizar pontes, ouvir desejos: uma conversa com Érica Sarmet

07/12/21 às 16:59 Atualizado em 10/02/22 as 15:26
Visibilizar pontes, ouvir desejos: uma conversa com Érica Sarmet

Ao som de Noite Preta, cantada pela voz de Vange Leonel, as personagens de Zélia Duncan e Bruna Linzmeyer fazem um passeio noturno de motocicleta pela Ponte Rio-Niterói. As “luzes artificiais” citadas pela canção se metamorfoseiam na variação de tonalidades da fotografia. São cores que parecem condensar a tal “paciência selvagem” de que fala o curta-metragem de Érica Sarmet. A presença em tela de dois ícones lésbicos de diferentes gerações dá a ver um intuito de restituir elos entre momentos distintos. As citações e homenagens são importantes a ponto de estarem elencadas ao final de Uma paciência selvagem me trouxe até aqui, cujo título é, ele mesmo, trecho de um poema de Adrienne Rich.

A obra da poeta americana é uma das inúmeras referências que Sarmet divide com o espectador. Além de botar na tela o desejo daquelas mulheres, um hedonismo tranquilo, o filme – vencedor do Prêmio de Melhor Curta Brasileiro das Mostras Competitiva e Outros Olhares do 10º Olhar de Cinema – também se propõe a conversar com o público por meio de um universo de textos, músicas e imagens históricas para o movimento lésbico, revelando-se um arquivo fértil, vivo, de uma memória tantas vezes ocultada. 

“Eu queria ter visto um filme que tivesse feito isso por mim anos atrás. Porque essa busca é reconfortante quando você consegue, mas ela pode ser muito solitária, muito angustiante também. Tem filmes lésbicos que eu busco há anos, todo ano eu sondo os amigos e vejo se de repente fulano de tal tem, fulano consegue. Então ter um filme que aglutina um pouco algumas dessas referências foi mais ou menos o que eu queria fazer. Transformar ele numa outra coisa para que outras pessoas pudessem acessar outros mundos a partir dele, seja pelo encantamento com o filme ou seja pelo incômodo com o filme também”, comenta a cineasta, que também atua como pesquisadora (com mestrado no PPGCine-UFF sobre pós-pornô na América Latina e artigos sobre feminismo lésbico) e curadora (Cineclube Quase Catálogo). 

Em longa conversa com o Cine Festivais, Érica falou sobre o processo de criação de Uma paciência selvagem me trouxe até aqui em diálogo com as reflexões que movem o seu trabalho em diferentes eixos há mais de uma década. 

Adriano Garrett: A partir de uma experiência minha de pesquisa e de docência, tenho pensado no curta-metragem como um formato que normalmente está à frente do longa-metragem, no sentido de trazer novas tendências, de ter menos barreiras, sobretudo econômicas, o que faz com que grupos historicamente apartados da produção de imagens e sons tenham muito mais facilidade para entrar e se manter no campo do audiovisual pela via do curta, sendo que o longa é bem menos acessível. 

Tendo isso em vista, e a partir da relação que o seu filme estabelece com a estética das redes sociais, fiquei pensando se a construção de um certo imaginário lésbico no campo do audiovisual não estaria hoje mais avançada dentro desses outros meios, ou seja, do Tik Tok, do YouTube, do Instagram. Então a minha primeira pergunta seria se você concorda com essa visão, e também como essa construção vinda do Youtube e dessas outras redes passou pelo próprio pensamento do filme, até chegar nesse corte final.

Érica Sarmet: Achei ótima a sua pergunta. A princípio, sim, concordo bastante. Com certeza nas redes sociais mais voltadas para a imagem, se a gente for pensar no Instagram, Tik Tok, YouTube, a gente tem uma maior diversidade de corpos e de pensamentos, especificamente sobre a existência lésbica, vivência lésbica, e várias outras. E com certeza tem a ver com a razão pela qual essas redes sociais estão no filme. Mas eu não sei também se dá muito para comparar, na medida em que uma é auto-gerada pelos usuários, né, e a produção do cinema vai para uma outra esfera, que vai depender, não sempre, mas usualmente, de um financiamento…  diferente de uma produção de conteúdo para redes sociais, em que as pessoas têm muito mais facilidade e autonomia para criar esses conteúdos. 

Agora, eles estão no filme justamente para que ele possa se conectar com um público mais jovem. “Para quem é esse filme” foi uma coisa que norteou muito meu pensamento desde o processo de desenvolvimento até a produção, e agora, na distribuição, eu vejo que fizeram muito sentido certas apostas que a gente fez. É um filme que, claro, tem um desejo de fazer um circuito de festivais, que eu fiz desejando esse lugar, mas que eu fiz também desejando muito, e talvez com mais intensidade, que o público sapatão de modo geral, dentro das suas particularidades, se relacionasse com o filme. Eu queria muito que um público jovem chegasse nesse filme, se interessasse por ele, e a partir dele até buscasse outras coisas, sabe? Até por isso que tem uma lista de referências também. E a minha maneira de me comunicar com esse público era tentar falar na linguagem deles. Bom, eu sou millenium, quando cresci a internet já existia, mas é totalmente diferente para essa geração mais nova, essa geração Z. E a minha vontade de conexão com esse público era grande. Então eu busquei o Instagram e o YouTube porque é muito o que esse público consome em grande parte, muito mais do que o cinema hoje em dia.

Adriano: Eu queria emendar uma segunda pergunta, porque o filme adota esse formato scope, e na cena final ele vai referenciar diretamente o YouTube. Então há um momento ali em que a gente vê essa tela de um computador, no qual se clica em um vídeo, e é a partir desse vídeo que a gente adentra novamente esse aspecto retangular da imagem, esse aspecto do scope. E eu fiquei pensando como que nos dias de hoje o uso do scope normalmente é tributário de uma certa estética do cinema norte-americano dos tempos áureos, dos anos 50, por exemplo. E no seu filme me pareceu que foi ao contrário, que o scope que é um tributo aos vídeos do YouTube, entendeu? Fiquei viajando nisso, enfim, e queria que você comentasse.

Érica: Muito legal você pensar isso. Acho que a ideia do scope era pensar um formato de tela que trouxesse sim esse elemento mais cinematográfico pra essa geração mais nova, mas também se relacionando com esses outros formatos que estão dentro do filme. Fico feliz de você falar isso porque era uma certa insegurança lançar essas imagens de YouTube, de Instagram, que também são coisas que a gente já viu muito. No cinema de curta-metragem e no cinema de curta-metragem queer, já tem bastante; aqui no Brasil, nos últimos anos, grande parte dos curtas tem esses elementos. Mas eu acho que eles ainda são formas muito interessantes de a gente trabalhar, porque a experiência da sala de cinema… e aí é muito doido, porque o filme ainda não foi exibido numa sala de cinema. Então é isso, você faz as coisas pensando de um jeito, e a maneira como pode se dar é totalmente diferente. Mas ele foi pensado para as salas de cinema; como pode ser essa experiência de assistir essas telas que a gente está tão acostumado, mas em um outro tamanho, uma outra relação com a imagem? E também me interessava muito saber se essas imagens teriam a capacidade de afetar as pessoas, sabe? Eu acho que a gente vive numa profusão tão intensa de produção de imagens de celular que a mim, pessoalmente, me deixa um pouco desbaratinada. Eu gosto de stories, mas não posto muito, não vejo muito, porque pra mim é muito intenso. E como essas imagens podem tocar as pessoas? É um pouco difícil a gente pensar isso porque a gente está muito acostumado com elas no cotidiano. 

Mas nesse filme eu acho que isso foi possível, porque elas estão ali e você vê que são diferentes. Esse formato do Instagram tá junto com as personagens mais novas, e o YouTube… porque tem dois momentos do YouTube, que abrem e fecham o filme, com a personagem da Zélia [Zélia Duncan]. E buscando também quais os pontos em que essas linguagens podem se encontrar, e onde elas se distanciam. Então o YouTube eu vejo que ele já tem uma solidez que possibilita a pessoas muito diversas abrirem seus canais e crescerem no vídeo de uma certa maneira, enquanto o Instagram/Tik Tok ainda são coisas muito jovens, sabe? Não que não tenham Tik Toks e Instagrams de pessoas idosas ou mais velhas, mas pensando em termos mais gerais, ainda é muito jovem. E como essas imagens poderiam ser impactantes? Isso foi uma preocupação. E acho que rolou, que aconteceu. Não sei se devido ao formato scope ou se pela maneira mesmo com que essas imagens foram produzidas. Acho que é uma maneira de o filme se conectar um pouco mais com o real, digamos assim (o real sendo uma palavra complicada…).

Juliana Costa: A minha primeira pergunta deriva um pouco da tua primeira resposta também, e acho que talvez tenha a ver com isso que você está falando, de pensar nesse encontro do scope com o YouTube. Porque o teu filme tem essa proposta de promover um encontro geracional, não só entre as personagens, mas ele cria essa historicidade do movimento lésbico. Isso movimenta o filme, e acho que tem a ver com o que tu falou, de “para quem esse filme é feito”, com quem que ele está falando. Tu falou das novas gerações… e eu acho isso particularmente importante nesse momento que me parece que a gente vive um pouco uma ditadura do pioneirismo. Pelo formato das redes sociais, parece que a gente tá sempre começando do zero, e cada vez mais acho importante essa historicização das pautas, o que é algo que fica bem claro no seu filme. Então eu queria saber como foi a construção dessa ideia, o desejo de usar e essa decisão de criar essa linha narrativa histórica do movimento lésbico a partir desse encontro geracional das personagens.

Érica: Isso é uma das coisas que moveu meu desejo de fazer esse filme. Além de roteirista e diretora, eu sou pesquisadora também. Faço doutorado e pesquiso cinema, mas para além de pesquisar cinema eu pesquisei durante muito tempo também gênero, sexualidade e feminismo. Já publiquei alguns textos sobre isso, alguns artigos, capítulos de livros, enfim. Então de uma certa maneira faz parte do meu interesse artístico e intelectual. Essa história do movimento lésbico, se é que a gente pode chamar dessa maneira, sempre foi muito interessante para mim. E o que eu via muito em filmes, por exemplo, dos EUA, que têm bastante produção de documentários sobre o movimento LGBT, é como eles têm uma abundância de imagens. E no Brasil essas imagens nos faltam muito.

Lembro que em 2016 eu assisti a uma palestra em que se falava sobre um arquivo queer que existia no Canadá, e nos EUA isso também existe. E aqui a gente tem só algumas iniciativas, quase todas voluntárias e acontecidas nos últimos anos. Então a gente não tem acesso às imagens, por isso decidi colocá-las no meu filme, e elas estão presentes desde o roteiro. Era um desejo meu por essas imagens, mesmo sem saber se elas existiam ou não. E quando a gente filmou e teve início o processo de pesquisa das imagens, fui entendendo e vendo na prática o quanto que era difícil, inclusive pelas relações das pessoas com algumas coisas… É muito comum que a família jogue fora os pertences, as memórias, as fotos, os cadernos de pessoas LGBT que falecem, por exemplo. Muito comum. Então essas coisas se perdem mesmo, porque elas ficam guardadas com as pessoas e são pequenos tesouros delas, sabe? E muitas vezes são coisas que só essas pessoas veem valor; elas não pensam que outras pessoas podem ver valor nisso, que a história delas é importante, que a vida delas é importante, que alguém vai se relacionar com aquela imagem dela, com aquilo que ela viveu. Muita gente não sabe que importa.

Então a busca por conseguir essas imagens e trazê-las para o filme vem desse desejo. E aí tem algo que norteia muito o filme desde a época que ele era um projeto, que é um conceito da Ann Cvetkovich, que tem um livro lindo chamado An Archive of Feelings, e ela vai falar do cinema LGBT como um arquivo de sentimentos. A ideia é que as nossas memórias e as nossas imagens, o que marca a gente enquanto LGBT, muito provavelmente vão ser imagens de abraços, de beijos,  imagens afetivas, que podem ser de reuniões coletivas ou de marchas em protesto, mas que vão ser essas imagens. Elas têm essa dimensão, portanto, de sentimento, mas para além disso, se essas vidas e essas histórias não importam para os arquivos institucionais, o filme as eterniza de uma certa maneira. Então pra mim isso era muito importante.

E tem a ver também com as referências que me atravessavam. O filme é recheado de referências de ativistas, de poetas, escritoras e teóricas do feminismo. Então nessa cena final que elas estão falando nesse vídeo meio experimental, meio militante, do canal do YouTube, tem coisa ali que eu escrevi, mas tem também a Teresa de Lauretis, por exemplo, tem Gloria Anzaldúa, a Adrienne Rich, enfim, são pessoas que são artistas e teóricas muito importantes na minha formação. E esse filme é muito uma homenagem para essas pessoas também. E nisso eu acho que ele se conecta com o que você comentou, Juliana, sobre essa ditadura do pioneirismo. Acho que é justamente para mostrar que o filme pode parecer muito novo para algumas pessoas, mas não é, né, na medida em que ele está totalmente atravessado, formado, construído, a partir de pensamentos e olhares que estão postos já há muitos e muitos anos.

Por exemplo, a Neusa das Dores de Pereira foi uma pessoa muito importante para a construção desse filme. Eu entrevistei ela uns anos atrás para um livro da Heloísa Buarque de Hollanda, no qual eu escrevi o capítulo sobre o feminismo lésbico, e ela é fundadora da Casa das Pretas, do Coisa de Mulher e do COLERJ, que foi o primeiro coletivo de lésbicas do Rio de Janeiro. E essa é uma história muito invisibilizada, muito apagada; as pessoas não sabem muito a respeito disso. E tem muito a ver com racismo. Porque ela é uma mulher negra e esse coletivo é basicamente formado por mulheres negras. E quando eu a entrevistei, me impactou muito, e entendi que eu precisava nesse filme trazer um pouco dela. Vai ser sempre limitador porque é isso, é um curta, enfim, mas eu busquei isso. Então tem as imagens de arquivo, tem as imagens da Casa das Pretas. Eu fui lá, conversei com elas, elas cederam as imagens e eu fiquei muito feliz de acessar esse material. 

Quem também está nessas imagens de arquivo – estou falando de acervos pessoais, porque tem algumas coisas de jornal também – é a própria Zélia (Zélia Duncan). Então foi muito rico para mim também poder acessar as fotos dela e escolher quais iriam entrar no filme. Tem uma foto dela muito linda… a Cássia Eller, tem uma dela bem novinha, ela disse que elas tinham mais ou menos uns 17 anos, e elas se conheceram em uma peça do Oswaldo Montenegro, enfim, essa foto era dessa peça. Eu falei: “Nossa, Cássia, isso é tão importante”. Então essas imagens entram. E tem algumas imagens da Rita Colaço, também, que é uma historiadora de memória LGBT brasileira. Ela tem um blog muito bom, muito importante. E eu sabia que ela poderia ter imagens, e aí fui falar com ela também, e isso é difícil porque além de tudo, além da invisibilização, do apagamento que as famílias fazem, tem também as próprias pessoas que podem não se sentir à vontade de serem retratadas enquanto pessoas LGBTs. Pensando nas imagens que eu corria atrás, anos 1970,  1980 e 1990, muita gente que era militante nessas décadas, hoje em dia não é mais, e não quer ter nenhum tipo de relação… então isso é difícil e dolorido também porque são memórias de alegria, e é isso que eu busquei colocar no filme, encontros, eventos, festas, reuniões… mas ao mesmo tempo também fazem parte de traumas de muitas pessoas, o que também foi uma dificuldade. 

Por exemplo, com a Rita a gente conseguia ter acesso só a algumas fotos, as que ela aparecia. Porque em outras fotos ela não tinha mais relação com as pessoas, não sabia como seria, então a gente não tinha como incluir no filme. Mas eu busquei uma maneira de trazer um pouco dessa importância da figura dela, de quem ela é. E além desses tem o acervo pessoal da Cilmara Bedaque, que é viúva da Vange Leonel. E a Vange é mais uma uma figura que esse filme busca tocar e trazer. Tem essa essa fotografia delas, bem bonita, que são as duas, a Vange e a Cilmara, juntas, uma foto preto e branco, e que a gente usou os olhos da Vange para cobrir alguns rostos nas fotografias. Não sei se vocês repararam nisso, que eram de pessoas que a gente muito provavelmente não teria autorização de imagem. Então é isso; acho que pela minha história, a minha relação com um feminismo, de pesquisa sobre gênero, sexualidade, essas coisas tinham que estar no filme. O desafio era como fazer isso, e acho que foi assim que eu tentei.

Juliana: Ótimo. Eu vou emendar a próxima pergunta, que tem a ver com a primeira e com isso que a gente está falando sobre as referências do filme. Ele tem umas referências fortes no feminismo lésbico dos anos 1990. Acho bem marcado, talvez pela própria personagem da Zélia Duncan, a memória que ela traz. Mas fico pensando também na tua pesquisa. Pensando nessa historicidade do feminismo em relação ao cinema ali dos anos 1970, Barbara Hammer, e depois a gente tem uma volta muito forte nos 1990, com Mulher Melancia (Watermellow Woman, 1996), da Cheryl Dunye, O Par Perfeito (Go Fish, 1994), da Rose Troche, enfim, filmes bem emblemáticos. E eu vejo que tu bebe bastante nessa fonte dos anos 1990, até mais do que nos anos 1970. Queria te ouvir sobre isso.

Érica: Eu não acho que o filme é tão mais marcado nos anos 1990 porque tem algumas figuras marcantes do feminismo dos anos 1970 e 1980, tipo Adrienne Rich, Audre Lorde, Alice Walker, a própria Angela Davis, enfim, que são também homenageadas no filme, algumas de uma maneira mais direta, como o caso da Adrienne Rich; o título do filme é inspirado num verso de um poema dela, e é também um poema dela que abre o filme, declamado pela Zélia no primeiro plano. Então tem um diálogo forte também com esse feminismo dos anos 1970 e 1980… mas eu concordo com você em relação aos filmes. Porque sim, as referências cinematográficas mais explícitas desse filme são esses filmes dos 1990. Watermelon Woman, Go Fish, Born in Flames (Nascidas em Chamas, 1983), de Lizzie Borden, que são o que a gente poderia falar clássicos do cinema lésbico – não sei se caberia usar essa palavra para falar de algo que não está no cânone.

Acho que isso tem a ver com limitações de acesso, com a minha relação pessoal com esses filmes, e também com a ideia de transformar o Paciência… numa ponte para que uma outra geração, que talvez não conheça esses filmes, acesse, sabe? Eu queria ter visto um filme que tivesse feito isso por mim anos atrás. Porque essa busca é reconfortante quando você consegue, mas ela pode ser muito solitária, muito angustiante também. Tem filmes lésbicos que eu busco há anos, todo ano eu sondo os amigos e vejo se de repente fulano de tal tem, fulano consegue. Então ter um filme que aglutina um pouco algumas dessas referências foi mais ou menos o que eu queria fazer. Transformar ele numa outra coisa para que outras pessoas pudessem acessar outros mundos a partir dele, seja pelo encantamento com o filme ou seja pelo incômodo com o filme também.

E entre os filmes mais antigos eu citaria justamente a Barbara Hammer, que é uma referência para mim. Os filmes dela me fizeram entender que eu poderia dirigir filmes, que eu poderia fazer cinema. Eu já trabalhava com cinema, acho que a primeira vez que eu vi um filme da Hammer foi em em 2014. Lembro que antes de ver os filmes eu descobri que ela existia, mas não dava para baixar nada na internet e eu também não tinha condições de comprar. Então eu salvei as imagens, os stills do filme que estavam disponíveis no site dela, e eu estava com aquelas imagens em mim, desejando muito esses filmes um dia. E quando isso aconteceu foi muito arrebatador. Eu adoro cinema experimental, acho que é um pouco como ela fala da relação dela quando viu os filmes da Maya Deren pela primeira vez, sabe? E isso é uma dimensão da representatividade que pouco se fala. Ver um filme de uma diretora sapatão fazendo um tipo de cinema que a mim interessava, que eu achava ousado, que eu achava brilhante, sabe? O quanto que isso me fez abrir os olhos para o fato de que talvez haja um lugar para mim no cinema. Porque antes eu não via isso. O cinema era muito duro com as pessoas que estão um pouco fora da norma. Eu, por exemplo, não achava que seria diretora, que faria filmes, não via como um espaço possível para mim. Na faculdade os meus colegas que que faziam filmes, que dirigiam filmes, eram todos os homens cis brancos héteros. Não que outras pessoas não conseguissem, mas quem conseguia em grande parte era eles. Então esse filme é um pouco um acúmulo de saberes, um acúmulo de imagens, e um acúmulo de desejos dos últimos anos. 

Adriano: Você citou essa imagem da ponte, esse seu desejo que o filme funcionasse como um elo entre gerações. E bom, pensando primeiro no título do filme, paciência selvagem, tem um certo imobilismo aí, uma espera nessa paciência, e ao mesmo tempo essa energia toda acumulada nessa ideia que está abarcada no selvagem. E na cena na Ponte Rio-Niterói parece que todo o acúmulo de referências que constitui o filme está presente ali, inclusive em termos imagéticos, naquela explosão de cores. A gente tem ali dois ícones lésbicos de diferentes gerações: a Zélia Duncan e a Bruna Linzmeyer. E também o que me chamou atenção é como que há ali um caminho da moto que é contrário a essa linha do tempo linear para o futuro. Então elas estão indo da direita para a esquerda, o que remete justamente a uma ideia não só de passado, mas de como essa linha muito única pode ser perigosa e ocultar uma série de coisas. O tempo não é tão chapado assim, as coisas se atravessam. Então eu queria que você falasse um pouco disso, sobre essa cena da ponte e essa ideia da travessia, que vai voltar também naquela cena da praia que tem uma espécie de ponte, com garotos jogando futebol, e elas estão ali também naquele espaço, e de novo está presente esse signo da travessia, da ponte. 

Érica: Bom, vou começar pelo título, paciência selvagem. É bem isso que você falou na verdade, dessa espera presente na paciência e essa energia acumulada presente no selvagem. A Adrienne Rich é a minha poeta preferida, eu gosto muito das coisas dela. Ela tem um livro, uma edição portuguesa, chamado “Uma Paciência Selvagem”. E assim como os filmes que a gente sabe que existem, mas a gente não consegue acessar, a mesma coisa acontece muito com livros. Então esse era um livro que eu sabia que existia, mas não conseguia acessar. E quando eu consegui se transformou no meu livro de cabeceira, o livro favorito, porque reunia muitos dos poemas de diferentes fases da Adrienne Rich que eu gosto, e tem esse poema chamado “Integridade” que tem esse verso em que ela fala: “A wild patience has taken me this far.” E eu entendi, quando li, que esse tinha que ser o título do filme. E não tem nada no filme, enfim, que se relacione diretamente com ele. E ele também tá no singular, né, também já foi questionado para mim “porque não nos trouxe até aqui”. E eu entendo a pergunta, mas ao mesmo tempo, apesar de ser um filme sobre coletivo, que fala de uma coletividade, ele é um filme muito meu também, das minhas referências, do que que eu vinha trabalhando. Então esse título faz referência um pouco a uma certa espera da Vange, que é a personagem representada pela Zélia; acho que é uma espera por um momento em que essa juventude vive aquelas coisas que ela foi privada de viver. 

Mas tem também muito sobre mim e o tempo que eu demorei para fazer esse filme, para fazer ele acontecer, para tirar ele do papel. E os motivos para isso são vários… mas o que eu penso muito é que eu sempre quis fazer um filme sapatão. Tenho outros projetos anteriores a esse, foram projetos que não foram para frente, eu mandei para alguns editais e nunca passava… e isso é o tipo de coisa que desanima muito. Além disso, tem a ver, eu acho, com processos subjetivos meus, do meu caminho dentro do cinema. Eu comecei trabalhando com produção, assistente de produção, e depois entendi que eu gostava do roteiro, e que roteiro era um lugar para mim, porque durante um tempo também não era possível, assim como a direção. E eu acho que faltava esse tempo, faltava uma maturidade minha também. Mas foi muito também em razão de uma perseverança, de uma paciência selvagem, mesmo existindo um desejo muito grande meu pelas imagens, pelos filmes, para fazer o meu filme.  Só que como eu poderia fazer esse filme antes se esse filme é baseado em uma série de encontros que eu tive depois, de referências que eu tive depois? Mas eu já queria fazer há muito tempo, então realmente foi preciso uma paciência. Em termos práticos em relação ao filme, eu comecei a escrever esse roteiro por volta de 2016, 2017, tentei um edital e não rolou. Tentei novamente com o edital da Prefeitura de Niterói, e aí dessa vez rolou, e a gente filmou em 2019… mas aí veio uma pandemia que atrapalhou todo o processo de finalização do filme, atrapalhou essa distribuição, foi totalmente diferente do que a gente imaginava. E o tempo todo com ele eu me sinto assim: “cara, calma, vamos lá, vai vir, vai acontecer.” E se aconteceu, se tá acontecendo, é porque eu acreditei muito em mim. Eu sinto que eu precisei não desistir, precisei acreditar muito no meu trabalho, no que eu tenho para falar para as pessoas, então vem um pouco disso também.

Em relação à cena da ponte, a gente fez essa cena que eu queria muito… e é muito engraçado, porque o tempo inteiro eu tô falando para vocês de desejos. Eu tô me achando até um pouco repetitiva, mas a verdade é que é isso mesmo. Outro dia estava organizando as minhas anotações e aí eu vi um negócio de 2014, eu acho, 2015, que era uma anotação minha sobre uma cena com “Noite Preta”. Não era essa cena que está no filme, mas era um desejo de ter “Noite Preta” em algum filme. E a ponte pra mim era muito importante, se tornou muito importante, uma vez que o roteiro foi sendo pensado para Niterói e eu tive que ir lidando com as minhas memórias: ter sido uma pessoa LGBT crescendo em Niterói, e que fez muito esse fluxo migratório de ir para o Rio para poder existir em paz, sem ter o risco de você encontrar familiares na rua. Ao mesmo tempo também para você poder dar materialidade a esse desejo. Na minha cidade, nessa época em que fui adolescente, não tinha boate LGBT, não tinha uma festa… então a gente realmente precisava fazer essa ligação que consistia em passar pela ponte, ou pela barca. Mas a ponte para mim era muito marcante porque eu estudei no Rio também, quando eu tinha 16 anos, e fiz faculdade no Rio, também, então por muitos anos morando em Niterói essa foi uma imagem muito presente na minha vida, atravessar essa ponte.

Na cena da ponte Rio-Niterói a Zélia e a Bruna estão no sentido contrário mesmo, porque eu acho que é isso que a gente faz, a gente vai na contramão de um certo tipo de pensar cinema, de fazer cinema, de entender o que importa e o que não importa pra gente. Foi uma cena muito difícil de definir exatamente como ela ia ser, porque eu queria muito trazer uma coisa bem artificial… ela foi feita com uma projeção em estúdio, a gente filmou a ponte e está sendo projetada a ponte atrás. Eu pensei em chroma key, pensei em filmar na ponte com dublê… porque uma das referências também desse filme, sobretudo para a questão da moto, era o Feminino Plural, da Vera de Figueiredo. É um filme maravilhoso, que tá também nessa leva dos filmes feministas e dos filmes feitos por minorias de modo geral que a gente tem grande dificuldade de acesso. Eu assisti a esse filme, para você ter uma ideia, em 2014, no primeiro colóquio de cinema de autoria feminina que aconteceu na UFJF, e me marcou tanto ver aquela cena das mulheres todas andando de moto, sabe? Me remeteu às marchas de motocicleta que acontecem nos EUA. Então eu queria muito trazer essa figura da sapatona motoqueira, fora desse regime de feminilidade. E isso tem a ver com as minhas experiências, de ir num bar de motoqueiros e ver um grupo de mulheres motoqueiras e ficar pensando: “Cara, e se todas elas fossem sapatão, como é que ia ser?” 

Então essa cena é uma confluência de diferentes desejos, diferentes vontades, e eu acabei optando por deixar ela bem artificial. Tinha esse desejo de trazer um pouco esse artifício, aqui me colocando dentro de uma linha de cinema lésbico que acaba dialogando muito mais com documentário do que com o artifício propriamente, então pra mim era muito importante que tivesse isso. Ao mesmo tempo que também abre uma fissura temporal no filme, sabe? Acho que o tempo também tem uma dimensão que é muito importante no filme todo. Não é um tempo linear, mas ao mesmo tempo não sei se daria para dizer que é um tempo cíclico, apesar do começo e do final serem parecidos. E aí o uso da música e das cores também é uma forma de suspender um pouco o que seria uma temporalidade linear que estava se desenrolando ali naquela narrativa mais ou menos a partir do momento em que a personagem está na praça. Que também é um espaço importante pra mim, estudei na UFF, sou de Niterói, e a Praça da Cantareira é um espaço de sociabilidade importante na cidade. Então vem um pouco para quebrar isso, para mostrar que você não vai ver uma historinha linear, que talvez fosse um pouco uma expectativa de uma parte do público. E diverte, né, também é divertido. Isso pra mim era importante.

Adriano: Fiquei pensando também nessa perspectiva do olhar, em como essas personagens olham para a câmera e como a câmera olha para essas personagens. Me parece que naquele primeiro plano há um olhar um tanto quanto menos frontal naquela declamação da Zélia; e em outras partes do filme fala-se mais diretamente com a câmera, seja nos depoimentos com o mar ao fundo ou na cena final para o YouTube; me parece que é um olhar mais horizontal. Queria te ouvir um pouco sobre isso.

Érica: Não sei se o que eu vou dizer é o que você queria saber, se não for você pode insistir, continuar, que a gente chega lá. Uma das questões para mim com esse filme começa na verdade em 2017, quando eu assisto a um debate em Tiradentes sobre o filme da Juliana Antunes, Baronesa, e questionam a maneira como a câmera olha os corpos. E isso fez eu ficar muito pensativa, porque ela respondeu que filmou porque sentia desejo por esses corpos… enfim, a conversa foi bem legal, muito interessante, mas essa questão ficou em mim, sabe? Como filmar corpos de mulheres com desejo, como mostrar esse meu desejo, e como que a gente pode fazer isso fugindo de enquadramentos que foram criados por homens? Que é isso também, você não vai inovar, inventar a roda, sabe? Como que você faz com que a câmera se relacione com essas pessoas de um jeito em que a subjetividade delas não seja apagada, que provoque sensações, relações com o público, ao mesmo tempo sem cair nesses lugares comuns que os corpos de mulheres e pessoas trans são colocados no cinema. E eu acho que não é uma questão que tem resposta, sabe, não se resolve. E por não saber resolver é que eu fiz um filme, para tentar ver se no filme eu encontrava essa resposta. E eu não sei se encontrei, mas aprendi muito. 

Acho que por isso tem uma ideia conceitual muito forte nesse filme, que era ter as personagens quase sempre juntas, essa coisa bem coletiva, de ter vários planos de conjuntos, enfim, de forma a ter todas essas personagens em cena, em quase um plano mesmo. E na hora delas falarem é quando eu achava que a gente devia se aproximar, e se aproximar indo para o rosto delas mesmo e até fazendo o uso de enquadramentos que talvez possam ser entendidos como uma coisa um pouco batida, mas ao mesmo tempo para mim era muito importante que a gente estivesse próximo delas quando elas estivessem falando com a gente. Porque quando elas estão falando entre elas, elas estão entre elas, mas quando elas falam com a câmera, elas estão falando com o público. Então acho que foi um pouco a forma que eu encontrei de fazer esses diálogos, de essas pontes se materializarem na forma do filme mesmo. É isso, são tentativas. Mas eu respondi o que você perguntou ou não? Não sei se eu te desviei muito…

Adriano: Eu perguntei muito sobre essa altura do olhar, comparando sobretudo o início e o fim, que me chamou a atenção. Que talvez o fim tenha um olhar um pouco mais direto para o espectador.

Érica: Sim, entendi. Isso que você tá falando é verdade, mas é porque as cenas têm funções diferentes, elas são pensadas de um modo diferente. Esse plano que abre o filme não é pensado como uma conversa, um diálogo, um monólogo dela para o público, mas sim como um vídeo do YouTube que ela está fazendo, sabe? Aquilo ali é para ser um vídeo no canal dela no YouTube. Eu não sei se dá pra entender bem que ela tem esse canal no YouTube… mas também não é tão importante isso. Então esse plano inicial não é pensado para o público porque até dentro da narrativa ele não é pensado é para o público. A referência que eu tinha para essa personagem e para essa construção dela como Youtuber veio de um canal no YouTube de uma uma mulher de mais ou menos uns 50 e poucos anos, estadunidense, que gravava vários vídeos, e ela tinha um canal que não tinha muitos inscritos, não estava preocupada com isso. Ela estava só gravando os vídeos que ela queria sobre assuntos diversos. Eu não vi a maioria, mas eu adorava esse vídeo, assisti várias vezes, que era ela declamando um texto em prosa da Adrienne Rich, mas como se fosse um poema, que fica muito lindo, deitada no sofá, e ela fala um pouco da ex dela, então ela tá no momento sensível, e ela fala desse poema de amor, porque acha muito bonito. Então essa cena e essa primeira parte do filme faz parte dessa construção da solidão dessa personagem. Quando ela grava esse primeiro vídeo, ela realmente está gravando para ela, apesar de ser um vídeo do YouTube. Ela não está pensando muito com quem ela está falando, ela só está precisando falar aquilo, porque acha muito bonito e toca ela de alguma forma. E no final não, no final, que já é no canal da juventude (risos), aí já é isso: é um canal de jovens pensado para chegar ao público, para ser um pouco mais experimental do que a linguagem tradicional do YouTube, ainda assim fazendo adesão a ela. E aí nessa hora o filme já tá falando diretamente com o espectador, diferentemente do começo. Então acho que foi isso que deu essa sua sensação. Mas legal você ter comentado isso porque eu não tinha tido oportunidade de pensar sobre isso ainda assim.

Adriano: É um pouco o movimento do filme rumo a esse desejo pela comunidade também, né?

Érica: Exato, total.

Juliana: Eu assisti ao vídeo desse debate que tu citou da Juliana Antunes, e fiquei pensando no seu filme em relação às discussões sobre sexualidade lésbica no cinema, ou indo mais ao limite, de uma pornografia feminista, uma pós-pornografia. E também pensei numa relação com o filme As Filhas do Fogo (Las Hijas del Fuego, 2018), da Albertina Carri, que também faz esse exercício; inclusive aquela cena da Bruna Linzmeyer se masturbando e olhando para a câmera me lembrou muito a cena final do As Filhas do Fogo. Quando o filme foi exibido aqui em Porto Alegre, a Albertina Carri veio para lançar e houve algumas perguntas do público sobre o fato de a penetração estar muito presente, de o filme ter muito vibrador, essa imagem fálica, e eu vejo que no seu filme tu foge disso, não sei se de forma proposital ou não. Mas tenho duas perguntas: a primeira é sobre como foi coreografar essa cena, quais os pensamentos que te atravessaram, como foi filmar aquelas mulheres naquele espaço; e a segunda é se tu queria fazer uma cena que desse tesão, que despertasse desejo, chegando um pouco nessa discussão da possibilidade de uma pornografia feminista.

Érica: Então, eu pesquisei pornografia por mais de dez anos; meu mestrado foi sobre pós-pornô na América Latina, esse ano mesmo eu já publiquei textos sobre isso. É um meio no qual eu estava inserida não como realizadora, mas como pesquisadora. Pesquisei muito pornografia feminista, escrevi sobre isso, mas acho que a forma que eu encontrei para essas discussões chegarem em outro lugar foi através do PaciênciaLatifúndio é um grande comentário sobre pornografia de um modo geral e tem uma série de referências também, (Georges) Bataille, pornô anos 70, sabe? Mas eu acho que acaba ficando num circuito muito restrito, o circuito de arte, o circuito intelectual da Universidade. Então os debates acabam ficando muito restritos. E a pós-pornografia não tem uma relação tranquila com o espectador. Ela pode deixar o espectador tenso… Latifúndio tinha muito isso, das pessoas ficarem com muito nojo e nervosas, e não gostarem de assistir, não terem assistido. Por ser muito explícito, muito direto, pode causar essas reações, que não acho ruins, são reações. E a forma que eu encontrei de traduzir um pouco essas questões e levá-las para um público que talvez tivesse um alcance maior foi através do Paciência…. Então tem um pouco de um pensamento sobre isso, de traduzir esses escritos dos últimos anos de uma outra forma.

Agora falando propriamente dessa cena… era muito importante pra mim ter essa cena com todas transando no filme. No roteiro era diferente, era até uma referência mais direta a Go Fish, e tal. Mas depois foi se transformando, no processo de ensaio e de pré-produção, e pensando como ia ser essa cena… e eu entendi que a cena por si só já era muito impactante, a imagem já era impactante; eu não lembrava de ver no cinema nenhuma cena de orgia, suruba, enfim, sexo grupal, se você quiser de chamar sexo comunitário, como já ouvi também, entre mulheres ou pessoas que não são homens cisgêneros. Eu procurei e todas as referências que eu tinha eram de filmes dirigidos por homens ou de cenas com personagens homens. Uma referência importante para mim é o Yann Gonzalez, uma das poucas referências não mulher, não lésbica, mas é uma bicha, então tudo bem. Faca no Coração (Un Couteau dans le Coeur, 2018) é um filme que eu gosto muito, e tem uma cena de orgia só com homens que foi durante um tempo a que eu acho que chegou mais próxima do que eu queria, então a gente ficou trabalhando com essa referência por um tempo. E nisso a gente foi entendendo muito no diálogo a respeito dessa cena entre eu, a diretora de fotografia, a Cris Lyra, e o diretor de arte, que é o Martin Charret, que ela era muito impactante, e por isso todos os elementos que a gente estava pensando para ela seriam desnecessários, e que fazer a cena em estúdio só com o veludo azul pra gente representava alguns desejos de cor e de elementos que a gente queria.

Aí a gente foi construindo a ideia dessa cena e faltava a coreografia, como que eu ia fazer isso. E a única referência que eu tinha, nas artes de um modo geral, de uma cena de sexo com cinco mulheres, era de uma peça de teatro chamada Couve-Flor, texto da Rosyane Trotta, que eu assisti em 2014, 2015, uma coisa assim. Então eu conversei com a Marília Nunes, que é atriz e preparadora, e ela atuou nessa peça. E eu convidei ela para fazer a preparação de corpo para essa cena. Queria que ela remontasse o que tinha de memória dela do Couve-Flor, enquanto atriz, agora preparando o elenco. A gente teve muitos ensaios, quem fez a preparação do elenco foi a Sol Miranda, e a gente fez muitos muitos ensaios, acho que foram 18 no total, e dentro desses ensaios tiveram dois específicos voltados para a gente definir a coreografia, ensaiar a coreografia, e depois filmar. Então foi muito no desespero ali perto da pré do filme. E acho que essa ideia que eu tive ajudou muito, porque a Marília tinha todo um trato com elenco, sabia como deixar as pessoas à vontade, dentro dessa intimidade que as atrizes já tinham construído entre elas, mas para além… Uma intimidade outra e eu não tinha muita experiência, praticamente nenhuma, com direção de atores.

O Latifúndio não tinha atores, a maioria eram performers, artistas, ou eram amigos, não era um filme de ficção que tem um texto, uma construção de personagem. E aí chamei a Marília, conversamos com as atrizes, e depois de fazer vários exercícios de corpo a gente começou a trabalhar com as poses. A gente foi sugerindo poses e o elenco ia sugerindo também, e a partir disso a gente filmou esse ensaio. Assisti a esse ensaio filmado e a partir disso fui definindo um pouco quais eram as imagens que eu queria e quem iria interagir com quem, em que momento, porque a gente também foi testando um pouco isso. E a gente fez um novo ensaio, dessa vez já com o veludo, dessa vez já sem roupa (a outra vez foi com roupa), pra gente conseguir chegar o mais próximo possível da cena. E foi muito legal porque eu sinto que a gente conseguiu ter um cuidado com o elenco em relação a consentimento, por exemplo. Então a gente conversou sobre o que podia tocar, onde podia tocar, o que podia aparecer, o que não podia aparecer. Eu compartilhei com o elenco antes desse processo as minhas dúvidas, porque os caminhos para essa cena poderiam ser muitos, então eu compartilhei isso também, mostrando que era isso que eu estava pensando, mas que eu não sabia ainda e que em algum momento a gente ia saber, mas que elas também podiam fazer parte dessa construção. No dia a gente recolheu os celulares de todo mundo, o meu também, todo mundo desligou os celulares, a gente deixou o celular de todo mundo numa caixinha, porque eu não queria de forma alguma que vazasse algum tipo de imagem, para preservar o elenco.

Foi muito nesse caminho de tentar entender como fazer isso, mas propondo pra mim um desafio que era não usar os códigos comuns da pornografia. Não por um pensamento, que eu imagino que seja de algumas pessoas que pensam sobre isso vendo o filme, no sentido de: “ah, eu tô fazendo aqui um comentário contra pornografia…”, “anti-fetichização…” Não foi muito nesse lugar. Eu queria fazer algo diferente da pornografia porque a pornografia eu já sei fazer. Então eu queria tentar descobrir como que a gente acessa esse tesão sem recorrer à pornografia, que é fácil pra mim enquanto diretora, mas também sem recorrer a certos códigos históricos do cinema para marcar o desejo de mulheres ou de corpos designados como mulheres, como o hiperdimensionamento do som. A gente fala muito sobre isso na pornografia especificamente, esses gemidos muito altos e exagerados, mas o cinema traz muito isso também. O som tem um papel muito importante nessa construção do desejo, nessa evocação do tesão e principalmente quando esse desejo não é de um homem cisgênero. Porque pro cinema é mais difícil mostrar, a gente tem essa evidência, do real, que é o gozo, por exemplo, do esperma, que não acontece com pessoas que têm buceta. Então como trabalhar isso? O audiovisual encontrou esse caminho do exagero do som, então esse foi um outro desafio que eu coloquei para mim também, de seguir outro caminho. 

E aí acho que uma outra camada que existe é a desgenitalização, que eu acho que também pode ser apreciada pelas pessoas a partir de um outro viés, mas que pra mim tinha mais a ver com isso de fugir da pornografia. A pornografia setoriza muito os corpos, divide muito os corpos por partes. Então é muito detalhe: um pedaço de corpo, um detalhe de genital, um detalhe de mão, um detalhe de peito. Comecei a ver várias cenas de sexo de filmes que eu gostava e o que eu poderia trazer dali, e era muito comum isso: ou você decupa pensando esse corpo em partes, e foca muitas vezes no genital, por exemplo quando a gente está falando da pornografia; ou tem uma câmera na mão que passeia pelos corpos e que busca um pouco trazer um movimento, uma leveza, talvez fugir um pouco do distanciamento, talvez uma imersão E eu também não queria fazer desse modo, porque já vi muitos filmes assim. Então foi um desafio que eu me propus, pensar essa cena e como ela seria, e eu acho que no decorrer desse processo fui entendendo que esse “sexo lésbico”, sapatão, sempre tão disputado nas discussões feministas, tanto em relação ao cinema, quanto em outras artes visuais… que ele não existe, sabe? Ele é irreal. E se ele não existe, se essa representação é impossível, então eu posso fazer ela do modo como eu quiser. E a maneira que eu escolhi fazer foi puxar um pouco pro artifício também, porque eu achava mais divertido, mais bonito, mais interessante. 

Eu estava um pouco cansada dessa promessa do real que a gente tem que ter sempre… Que é isso, se você é um cineasta homem hétero filmando lésbicas, então você não vai conseguir capturar o que é de verdade naquele sexo. Aí se você é lésbica já vem uma pressão muito grande para que você tenha uma representação fidedigna… e as pessoas são diferentes, né? As pessoas se relacionam de modo diferente, as pessoas transam de modo diferente. Então eu entendi que não fazia sentido me relacionar com o real, e por isso que essa cena tá nessa chave do artifício, uma cena mais onírica mesmo, na qual essa sensorialidade vem pelo movimento dos corpos, então são os corpos que se movimentam diante da câmera, não é a câmera que está passeando ao redor dos corpos. Eu queria uma câmera um pouco mais calma nessa relação para deixar que isso viesse à tona, e a trilha da Natália Carrera também foi muito importante, tivemos trocas muito incríveis. Eu queria que a ausência desse som direto não fosse tão sentida, o que é difícil porque a respiração é muito importante na construção do tesão, na construção do desejo. Eu cheguei até a gravar algumas respirações depois, mas não funcionou. No fim eu falei: “Gente, não é isso. É só trilha. Não tem som direto e é desse jeito que eu quero que essa cena venha para o mundo.” E acho que consegui um resultado que me deixa bastante feliz. Acho que deixou o elenco feliz também, à vontade, orgulhoso. Isso é muito importante.

E em relação a As Filhas do Fogo, é legal que tem gente lembrando dessa cena, eu adoro. Conheci a Albertina Carri, mediei conversas com ela quando do lançamento do filme, e depois, no ano passado, a gente fez uma live e foi muito legal. Adoro o trabalho dela, e As Filhas do Fogo eu gosto especialmente. Mas é interessante você ter falado que a cena da masturbação te lembrou, porque para mim são cenas muito diferentes. Acho que ela tem um impacto do tempo do plano, é um plano muito longo, se não me engano acho que são 7 minutos. É um plano bem longo de masturbação, e o do Paciência… não é assim. Mas ele tem uma outra camada de relação com o espectador e de consentimento também, porque a Bruna olha pra câmera. Foi ali naquele gesto que eu encontrei, talvez, uma uma forma de explicitar esse consentimento: “Sim, você pode me ver. Sim, a câmera vai ter acesso a isso aqui.” É a personagem dela que faz essas conexões, que traz a personagem da Zélia pro grupo, enfim… ela dá esse consentimento para câmera. Não é exatamente algo que eu acho que tem que ter, mas para mim foi importante que fosse feito dessa maneira. Foi uma forma de trabalhar esteticamente essas questões que vinham me consumindo já há bastante tempo. 

Sobre essa coisa do falo… cara, não foi uma questão para mim. Poderia ter, não tem, justamente porque eu estava buscando fugir da realidade. Se eu trouxesse esses elementos, para mim, Érica, talvez soasse um pouco como ponto de contato com o real. Isso não me incomoda em absoluto no As Filhas do Fogo, eu adoro. Acho que a gente tem um problema de achar que todas as pessoas transam igual, que porque os desejos são compartilhados, então as práticas vão ser compartilhadas. Não são, né, não são. Então é isso, não tem a ver com uma ideia de não ter o falo. Eu acho que isso, por exemplo, está mais marcado no Latifúndio, que é um filme pornográfico que não tem o pênis ejaculando, diferente da maioria dos outros filmes, mas tem um cu piscando, tem uma buceta fumando, tem outras genitálias e genitalidades fazendo comentários sobre outras coisas. Naquele filme, por exemplo, não ter essa imagem do falo era importante, porque ela é dominante no cinema pornográfico. Já nesse filme, acho que tem mais a ver talvez com a ausência de homens no filme. Não tem personagens homens no filme, à exceção daqueles que fazem a figuração ali na praia, e que estavam lá jogando bola, e eu achei bom, continuei e deixei no filme, porque acho que insere um pouco as personagens na vida real, e já tem um pouco isso na cena anterior, em que ouvimos uma notícia sobre um estupro. Aquilo já vem para deslocar quem estava pensando que elas estavam vivendo numa realidade paralela, muito segura, muito tranquila, muito perfeita, que é o espaço doméstico, traz essa conexão com o real. E aí quando elas estão na praia e aqueles rapazes estão lá jogando bola, é isso, sabe, a vida continua acontecendo fora de casa. Acho que para tentar fugir um pouco da ideia de que ali é um espaço idealizado, e não é, é um espaço possível.

E sim, eu queria fazer com que essa cena desse tesão, esse era o objetivo, e aí vinha o desafio de não recorrer a todas as maneiras que eu sabia até então de como despertar o tesão através da imagem. Então espero ter conseguido. (risos) Espero que as pessoas fiquem com tesão assistindo ao filme.

*Este texto integra a cobertura do 10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba

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