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Nós, de Letícia Simões

24/11/21 às 16:17 Atualizado em 24/11/21 as 16:18
Nós, de Letícia Simões

Casas compartilhadas

Tenho uma tia que foi casada por 20 anos com um homem que sempre chamei de tio. Ao longo desse período, eles moraram em alguns lugares distintos, entre eles João Pessoa e Berlim. Desde criança eu pensava que eles tinham como casal uma paleta de cores só deles, uma forma que se assemelhava à das estatuetas de cerâmica que eles tinham pelas casas em que viveram, um ângulo como o das joias que meu tio fazia, um ritmo dos gestos da dança da minha tia, um som dissonante de uma música experimental dos anos 1980, um cheiro de madeira. Apesar das muitas casas, eles tinham uma casa sem paredes e sem chão, que era a sua estética compartilhada. Quando eles se separaram, essas formas foram se dissipando e se transformando em outras, mas muitas permaneceram: algumas máscaras de papel machê, uns móveis com espelhos facetados, móbiles de madeira. A casa demorou pra ser demolida, acho que nunca foi por completo, e certamente ela permanece em cada um como constituinte de novas casas-formas-cheiros-cores que eles foram criando sozinhos ou com outras pessoas.

Nós, de Letícia Simões, é um filme sobre as memórias dos outros, ou ainda, sobre as casas dos que abandonaram as suas casas e criaram outras para si. Como em muitos dos trabalhos de Eduardo Coutinho, um anúncio de jornal funciona como disparador. Nele, Letícia convoca: “Se você não se identifica com o lugar em que nasceu e de alguma forma cria sobre isso, me escreve”. O exercício de alteridade proposto a partir daí visa criar uma casa com o outro, para o outro. Uma casa-identidade que é uma estética compartilhada entre Letícia e os entrevistados. Na articulação da sua percepção sobre as narrativas e a criação artística dos cinco entrevistados, a cineasta se coloca como um sexto personagem, criando, a partir das suas estéticas e narrativas, um imaginário próprio para cada um: Karim, Enver, Tsead, Eva e Pêdra. 

O filme pensa sobre e com a linguagem, essa grande criadora de mundos e de casas. Letícia estuda uma língua indígena na qual os adjetivos são tanto temporários quanto permanentes; constatam uma qualidade, mas também a desejam. Desse modo, nós somos casa indica tanto que este espaço de identidade é construído coletivamente, quanto também um desejo de que ele assim o seja. Dar nome é criar um lugar para habitar. Cada bloco de Nós é iniciado com uma carta lida pelo personagem, as quais seguem trechos de entrevistas. É interessante atentar para os conjuntos de palavras que constam nas falas, como se formassem um universo próprio, uma casa. As palavras que cada um escolhe para contar a sua história, para esculpir as suas memórias e pensamentos. A estas falas, Simões alterna imagens variadas, manipuladas, que ora tensionam ora sublinham as palavras-casa dos personagens. Karim diz: “home”, “pertencer”, “hiatos”, enquanto suas cores vibrantes, fusões e imagens inquietas em movimento vão costurando sua estética. Tsead diz: “raiva”, “cavalo”, “máquina”, “crise”, sobre imagens da selva, ou ainda: “pequenas”, “gostar”, “outro”, por cima de uma casinha de cachorro na neve. Eva e sua performance trágica e intensa falam: “contrabaixo”, e sua imagem diz “corpo”, “neve”, “máscara”. “Identidade”, “catástrofe” e “encruzilhada” saem da boca de Pêdra, enquanto a cor vermelha sai do cu.

Letícia Simões se inclina ao outro e também se coloca como personagem. Se aproxima e se distancia daquelas memórias. Se implica nas metamorfoses estéticas que propõe, na sobreposição de mundos. Na dicotomia identidade e alteridade, procura o tão difícil e almejado espaço entre. Nós tateia por um encontro com o outro que vá além da entrevista, da conversa, um ponto de encontro entre cineasta e personagens no meio exato do caminho entre eles, como se a arte pudesse fazer essa mediação. Simões trabalha com personagens sem casa, porque não quer entrar na casa do outro, como Coutinho ou Shirley Clarke já fizeram de formas insuperáveis; quer, isso sim, criar casas compartilhadas, mantendo uma distância segura o suficiente para que as estéticas dos personagens não extrapolem o seu filme-casa, para que não levem o seu ensaio fílmico para algum lugar obscuro das suas subjetividades do qual ela não possa tirar. Cria a sua casa na primeira pessoa do plural.

*Este texto integra a cobertura do 10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba

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