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A Cidade dos Abismos, de Priscyla Bettim e Renato Coelho

20/10/21 às 16:23 Atualizado em 24/11/21 as 16:20
A Cidade dos Abismos, de Priscyla Bettim e Renato Coelho

A melancolia entre o delírio e o deleite

Não são poucos os filmes que já tiraram uma casquinha da imagem-presença de Arrigo Barnabé. Ele já interpretou até Orson Welles em Nem Tudo é Verdade (Rogério Sganzerla, 1986), e mais recentemente teve presença marcante em dois filmes de Paula Gaitán: Luz nos Trópicos (2020), no qual encarnou um colonizador português muito louco, e Ostinato (2021), cuja dissonância formal combinava com o retrato íntimo do músico.

Não se chama Barnabé para um filme impunemente. Há algo na maravilhosa cacofonia da sua presença que contamina as imagens e sons desde o primeiro plano. É como um diapasão que, mesmo bem no fundo, vai estabelecer seu ritmo, seu tom, como pode ser verificado mais uma vez quando ele adentra a cena em A Cidade dos Abismos

Priscyla Bettim e Renato Coelho jogam muito bem com essa e com outras referências: os enquadramentos oníricos que transformam prostitutas em anjos do cinema da Boca do Lixo, com suas ruínas e neons; os portais vermelhos do absurdo de David Lynch; e um final bacante cheirando a A Idade da Terra (Glauber Rocha, 1980). Os mais inflamados podem até ver os closes granulados de Philippe Garrel e seu afeto pela opacidade dos olhares, ou as discussões de relação sem emoção de Muito Romântico (Melissa Dullius e Gustavo Jahn, 2018). De fato, o filme brinca tanto com imagens e encenações que frequentemente nos fazemos a saudável pergunta: “O que estamos vendo?”. As inserções de imagens duplicadas, efeitos de distorção, de iluminação, surgem no filme como fendas nas quais somos jogados. Filme dos abismos.

Mas o jogo de experimentações corre o risco de se transformar em um vazio entre o delírio e o deleite. E é nesse vazio que entra o diapasão da cidade desafinada. Apesar da beleza decadente das imagens, o tratamento sonoro do filme de Bettim e Coelho não engana: estamos realmente na merda. Não na merda caótica underground da São Paulo de Barnabé, mas imersos em um silêncio opaco, de fundo de banheira (poderia ser o som da capa do disco Previsão do Tempo [1973], de Marcos Valle). Sem dúvida, estamos diante de um filme pós-golpe.

Poucos sons ambientes, poucos sons de cidade, às vezes pássaros de uma floresta densa, às vezes notas de um piano dissonante, ou números musicais a capela, carros distantes. Não é a querida atmosfera de inferninho tão cara ao nosso cinema nacional que expõe a melancolia de A Cidade dos Abismos, mas a calculada apatia sonora.

Ainda assim, em alguma parte existe um som que vibra. Em um balcão de bar, três imigrantes senegaleses bebem cerveja, olham pra câmera e cantam, cada um de uma vez. Não sei se a voz reflete nos azulejos brancos das paredes e se espalha em prismas de luz, ou se a voz sai junto com o olhar brilhante de especialmente um deles, mas um tom ali soa diferente. É o tom que falta para a harmonia desarmônica do filme tropeçar e criar as condições para a dissonância de Barnabé aparecer em seu esplendor. 

*Este texto integra a cobertura do 10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba

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