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Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa!, de Isael e Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero

15/10/21 às 11:57 Atualizado em 10/02/22 as 15:27
Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa!, de Isael e Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero

Fazendo território ao andar*

O cinema de Isael e Sueli Maxakali, político por essência, é feito para afirmar a existência de seu povo, sua aldeia, sua cultura, pelo registro de seu mundo visível e invisível. Como dito pelo casal em mesa na 16ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, a presença da câmera intensifica e integra os rituais da aldeia, e, acrescento eu, visibiliza o invisível. Dar a ver no cinema dos Maxakalis tem um significado mais amplo do que o registro documental antropológico: é a operação de materialização de uma realidade imperceptível a uma sociedade adoecida. 

Poucos cinemas conseguem filmar o ritualístico como o dos Maxakalis. Em Xupapoynãg e Yãmîy, dois curtas-metragens de 2012, Isael e Sueli nos inserem nos rituais dos yãmîys, espíritos do mundo de devir mutante, que se desdobram um no outro assumindo formas variadas. É nos planos-conjunto em movimento, nos entre-corpos moventes, que os yãmîys se manifestam. Assim também em Yãmiyhex, as mulheres-espírito (2019), que desvela a sociabilidade feminina na aldeia por meio do rito. 

Em Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra é Nossa!, Isael e Sueli Maxakali levam a dimensão política do seu cinema ainda mais longe. Se nos filmes anteriores eles materializaram espíritos, neste eles restituem o seu território. Narrar, caminhar, escrever: constituir tempo, espaço e existência. O movimento do grupo dos Tikmũ’ũn, como os Maxakalis falam deles mesmos, vai desenhando no espaço um mapa territorial, uma delimitação geográfica. Eles tomam aquele território com seus corpos e suas falas, inscrevem sua presença no mapa. Cada paisagem percorrida tem uma história, um passado na memória que eles parecem evocar com seus passos. Caminhar é mapear o espaço com os pés; narrar é mapear com a memória. Caminhando e narrando eles seguem ocupando cada metro daquela região tomada à força pelos brancos por meio de violência e assassinatos. 

Mas essa ocupação não passa em branco pelos invasores daquele território. Quando a cidade que está dentro do território mapeado pelos Maxakalis atravessa o caminho, a atmosfera hostil é deflagrada pela fala de um comerciante local: “Venham filmar isso aqui! Todo dia eles roubam a minha lâmpada! Isso vocês não mostram!”, performa na expectativa de amedrontar e ser ignorado pela expedição indigena de recuperação de território. Qual a sua surpresa quando a câmera se volta em plano-sequência e avança na sua direção, interessada no que ele tem a dizer. “Na verdade quem rouba a lâmpada é o Virgílio, os outros são nota 10, estão de parabéns…”, diz o sujeito, claramente constrangido e em posição de recuo. 

A câmera dos Maxakalis não teme o que aquele homem pequeno tem a dizer. Como Isael afirma em outro momento: “Nós não temos medo dos brancos; eles roubaram a nossa terra, eles têm que ter medo da gente”. Sueli então avança com sua suavidade cirúrgica em direção ao homem já acuado, e rebate: “O que é uma lâmpada perto dos 30 Tikmũ’ũn que vocês assassinaram?” (Aqui penso na curiosa utilidade da lâmpada nesse contexto em que os filmes de Isael e Sueli quase que invariavelmente são realizados com luz natural, em oposição a um universo enclausurado da habitação individual do reclamante, na qual a lâmpada se faz necessária inclusive durante o dia.)

Escrever também é um gesto repetido de registro, ocupação e afirmação de presença. Ao chegar em um ponto da estrada em que um Tikmũ’ũn foi encontrado morto, escrevem com tinta vermelha na parede: “NŨHŨ YÃG MŨ YÕG HÃM” (essa terra é nossa). A escrita é filmada através de um celular, que por sua vez é filmado pela câmera de registro do filme. Uma tripla inscrição no mundo. Em outra cena, um grupo escreve o nome de 21 Tikmũ’ũns assassinados na lousa de uma sala de aula. Escrever é registro e materialização. É também da repetição desses gestos (caminhar, escrever, narrar) que Isael e Sueli Maxakali extraem a força política daquelas imagens.

Outra arma (literalmente) branca virada contra o invasor é a ideia de posse: essa terra é nossa! Os Maxakalis precisam reivindicar propriedade na lógica do inimigo, mas a afirmação segue um complemento: “essa terra é nosso parente, nossa mãe, nossos antigos surgiram dela”. É uma tragédia epistemológica e legislativa que nós brancos não compreendamos a sentença contrária para legitimar propriedade: nós somos dessa terra. Tragédia similar é a presença de jagunços a cavalo ou de motocicleta que surgem pontualmente para inibir a presença Maxakali. 

A terra que não se pode percorrer com os pés não deveria nunca pertencer a uma só pessoa. Não há conciliação possível. Tudo em Essa Terra é Nossa! indica a separação desses mundos. O território que os Maxakalis delimitam e materializam ao andar parece invisível aos olhos de quem escolhe ignorar as leis dos mundos, deste e do outro. Isael Maxakali se pergunta: ““De onde vieram esses brancos?”

*Jogo de palavras com Fazendo Caminho ao Andar (2021), filme de Paula Gaitán

**Este texto integra a cobertura do 10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba

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