O YouTube foi a casa de José Marques de Carvalho Jr. durante muitos anos. Como integrante dos grupos de humor físico Inútil e La Fênix, ele acumulou seguidores, curtidas e compartilhamentos. Em um momento seguinte, quando finalmente decidiu se dedicar ao seu objetivo maior, o cinema, obteve quase quatro milhões de visualizações para os seus dois primeiros longas-metragens (os documentários Observar e Absorver e Idioma Desconhecido), lançados diretamente na plataforma. Não se trata, portanto, de um “novato”, mas dentro do restrito circuito de festivais de cinema a sensação de descoberta se colocou quando o terceiro longa de Jr., O Sonho do Inútil, foi exibido no 10º Olhar de Cinema.
“Eu me dei conta de que não tem outro caminho: cinema é festival. Ali é que estão as pessoas importantes da arte no Brasil, né? Pessoas que se importam. Quando você coloca filme no YouTube, ele se perde ali. Tem um monte de vídeos juntos, e parece que o seu trabalho se desvaloriza muito rápido”, reflete o cineasta, cujo filme ganhou menção honrosa do júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).
Em O Sonho do Inútil, Jr. faz o seu filme mais pessoal. Apoiado por um arquivo de imagens caseiras guardadas obsessivamente ao longo de cerca de 15 anos, ele encara a timidez – de quem acha que sua voz é “de desenho animado” – e os parcos recursos – de quem utiliza o fone do celular para gravar a voz off – com o intuito de falar a respeito de seu bairro (Cordovil, zona Norte do Rio de Janeiro) e de seu grupo de amigos mais próximos (Aluã, Douglas, Daniel e Diego), que quando adolescentes encontraram na realização de vídeos para a internet um modo de se posicionar diante de um futuro incerto.
Adriano Garrett: Pra gente começar esta conversa eu gostaria de retomar uma cena de O Sonho do Inútil na qual você e mais dois amigos são presos por estarem grafitando um muro. No momento seguinte, quando já saíram da prisão, vocês fazem um deboche com a situação, o Toupeira diz que “não é aquela cadeia que a gente vê nos filmes americanos”. Trago essa cena porque eu acho ela muito simbólica da postura de vocês e do filme diante dessa realidade, na qual há um risco constante de ser preso ou de ser baleado pela polícia, ou de entrar para o tráfico…
José Marques de Carvalho Jr: Aqui [Cordovil, zona Norte do Rio de Janeiro] sempre foi muito violento. Teve uma época em que tava morrendo um por dia; era o embrião da milícia já começando a pairar sobre o bairro… Esse seu olhar pra essa cena foi interessante, porque o humor é a nossa defesa. A gente estava ali detido, e depois daquele momento conseguimos fazer uma piada. Então a gente lidava com todos os problemas da mesma forma: rindo.
Como eu falo no filme, a gente tinha que pular o muro para conseguir jogar bola. Não tem nenhum incentivo do Estado pra cultura ou pra arte. Então, pô, a gente estava gravando os nossos vídeos, ocupando a mente pra driblar as coisas negativas, vamos fazer um grafite numa pista de skate, um lugar que é conectado com a cultura hip-hop, e vem a polícia e prende a gente. Ou seja, até quando a gente está ali tentando fazer alguma cultura a gente tem essa repressão, né, cara? Isso é algo muito simbólico, porque mostra que o pobre não pode nem pensar em ser artista.
Aqui tem muitos jovens que lutam, que têm muito talento, e vários já pararam. Até o Daniel, meu amigo que participa do filme e que foi detido naquela cena do grafite, ele parou de desenhar… porque percebeu que não adianta, né? Tem talento, mas não tem oportunidade. E aí vai preso, tem que comprar jet. É só coisa que desanima, sabe?
Adriano: E aí pensando um pouco nesse gesto que vocês tiveram lá atrás de gravar esses vídeos inspirados no Jackass, que são vídeos que a gente pode chamar de autoflagelo, né? Queria saber como que você relaciona essa proposta, de estar sempre testando o limite do corpo de vocês, com a situação que a gente falou na primeira pergunta, de risco iminente.
Jr: Cara, acho que tem algo psicológico por trás disso. Eu sempre quis fazer cinema, mas era algo distante pra caramba. Fui criado num bar, minha família tinha um boteco aqui, então o humor sempre esteve presente. Essa coisa de conviver com os amigos, zoar, jogar bola. Então quando eu vi o Jackass, logo depois conheci o Buster Keaton e tal, eu percebi: “pô, isso foi o começo do cinema, cara! Pode ser um caminho pra mim, já que é algo natural que eu faço com os meus amigos”. Assim, não fazia o lance da doideira em si, mas a gente estava sempre debochando, zoando, fazendo as nossas peripécias…
Pra mim, câmera era só fotográfica. Eu fui ter contato com câmera de vídeo muito tempo depois, quando um amigo me emprestou um celular, e lembro que foi uma questão de resgate de autoestima a primeira vez que me vi em um vídeo. Isso era por volta de 2005, 2006, quando a gente começou. Então a coisa de machucar o corpo é claro que foi influenciada pelo Jackass, mas também tem essa questão psicológica da falta de autoestima, da falta de se sentir importante, e de usar isso como uma performance artística mesmo.
Essa questão do corpo é uma forma de gritar, de pedir uma oportunidade. De dizer: “Meu irmão, estamos fodidos, não existe futuro, não adianta ter talento nem nada, então a gente vai se destruir…” É aquilo, a sociedade do espetáculo, né? A gente vai atacar como a gente pode. E na época o que a gente podia era isso: gravar e brincar com fogo, zoar. Era a única coisa que preenchia ali o lazer. Não tinha nada para fazer? Então a gente ia fazer merda… No bom sentido.
Adriano: Eu queria destrinchar melhor esse seu fascínio pelo cinema, que você diz que veio muito da relação com os filmes pela televisão, né?
Jr: Aqui no meu bairro demorou um tempo para ter um cinema próximo, então o acesso era mais pela televisão mesmo, na época de Intercine, Corujão. E tinha um primo que tinha muitos DVDs, que colecionava filmes clássicos. Ali eu tive acesso a filmes que me marcaram, como A Felicidade Não se Compra, do (Frank) Capra. Na minha cabeça de adolescente esses filmes foram me inspirando e aumentando a minha vontade de fazer cinema. Quando fui ficando mais velho a frequência de ida ao cinema aumentou, mas toda a minha construção de cinema foi com a televisão, de madrugada, sozinho, pensando em como eles faziam aqueles filmes…
Por que assim, eu faço documentários mas tenho muita vontade de fazer ficção. Só que pô, fazer os documentários já é difícil, e ficção é mais difícil ainda. Por isso que eu comecei no documentário, por que é uma coisa mais próxima do que eu consigo fazer com uma câmera humilde e tal. Por exemplo, em O Sonho do Inútil fiz a minha parte da narração com áudio do fone do celular. Então é muita dificuldade, cara, e eu tô muito feliz nesse momento porque tô vendo a repercussão do filme no Olhar de Cinema, e tá sendo algo muito fantástico, porque é aquilo que eu falo, a autoestima. Tipo a crítica que vocês do Cine Festivais fizeram, da Juliana (Juliana Costa). Olhar o filme e escrever um texto: isso pra mim é o maior prêmio. A pessoa se interessar pelo meu trabalho. Porque na época dos vídeos nunca teve essa relevância, até por causa dos vídeos também, que é algo que eu vejo que não tem muita relevância mesmo, mas falo do que tá por trás. Dessa liderança que eu tive, dos amigos que chegaram perto de mim e viraram personagens dos vídeos, o que futuramente se traduziu nesse filme.
Tô aqui em Cordovil, maior dificuldade para fazer as coisas, e o cinema me trouxe essa possibilidade. É um caminho difícil porque a gente sabe que cinema no Brasil é a elite que domina. Ver um pobre fazendo cinema é algo difícil. De onde eu venho não conheço ninguém que faz cinema, até a minha própria família não entende o que eu faço; sou um estranho no ninho. Ainda não cheguei em nenhum lugar, tô fazendo meu trabalho na humildade, fiz o primeiro filme, fiz o segundo, impactou muita gente na internet, agora tô tendo essa oportunidade de participar de um grande festival, mas a minha família não tem nenhuma noção disso, nem minha família, nem meus amigos do bairro. Então isso é muito simbólico, diz muita coisa.
Adriano: Eu vejo que o cinema muitas vezes é um ambiente fechado em si mesmo. Alguns cineastas, críticos, curadores, entendem muito bem os códigos, quais são os festivais mais importantes, qual é a identidade de cada festival… E uma coisa que acho interessante nessa sua trajetória é que seus outros filmes estrearam diretamente no Youtube e obtiveram um número grande de visualizações (cerca de quatro milhões, somando os dois longas), bem maior do que um público que você obteria nos próprios festivais. Então eu queria que você comentasse um pouco sobre como pensa essa circulação dos seus filmes. Como que você foi pesquisando esse cenário dos festivais? O que você esperava dessa experiência de festival?
Jr: Eu comecei produzindo vídeos pra internet e fiquei ali por muitos anos. Depois que o Inútil acabou entrei em outro grupo (La Fênix), então toda semana tinha gravação. A minha trajetória toda no audiovisual antes do cinema foi no Youtube, cheguei a viver disso, mas teve uma hora em que eu percebi que não estava chegando onde eu queria, e também teve esse momento de crise, fiquei com depressão, saí do grupo, minha vida perdeu sentido… Aí eu falei cara, meu plano inicial lá atrás era o cinema. Lá atrás, quando fiz o primeiro vídeo, eu já pensava em fazer um filme no nível do Jackass. Então a minha inspiração era entrar no cinema, na indústria, por aquela portinha ali, zoando e tal. E é óbvio que não era só aquilo, tinha minhas coisas por trás, que eu queria expressar.
Aí eu fiz o meu primeiro curta e a primeira coisa que pensei foi botar em um festival, e não no Youtube. Cheguei a participar de um festival, mas não achei maneiro… não é que eu fui tratado mal, mas foi isso que você falou, um ambiente em que eu não estava acostumado a transitar, então fiquei meio decepcionado. Depois disso voltei pro Youtube, que era o lugar em que eu tinha construído o meu caminho, então a coerência era que os meus filmes fossem para a internet. Aí joguei a minha energia nesse ciberespaço, fiz o primeiro curta, fiz o segundo. Depois disso falei: cara, se eu tô fazendo curta de 25 minutos, vou fazer um longa. Aí fiz o Observar e Absorver, que foi um filme que eu não imaginava que ia ter o impacto que teve na época do lançamento, em 2016. Muita gente compartilhou, tem trechos do filme que chegaram a ter 10 milhões de visualizações.
Aí eu falei: “cara, é o poder do cinema”. Porque antes eu tinha um alcance maneiro com os vídeos de humor, na época do La Fênix, só que eu não imaginava que com um documentário eu também poderia chegar próximo disso, porque eu sei que a gente está no Brasil e nem todo mundo gosta de ver documentário. Inclusive a galera que me acompanhava ficou sem entender. Eu fiquei a vida toda fazendo um tipo de trabalho, daí eu paro, sumo, e volto pra fazer um documentário? Poucas pessoas entenderam. E foi importante pra mim, uma libertação. Só eu sabia dentro de mim que era capaz de fazer um filme, entendeu?
Então o Youtube foi importante, as pessoas falavam “caraca, você tem talento, vai pra festival”. Só que aí eu fui teimoso, lancei o segundo longa (Idioma Desconhecido) também no Youtube, só que aí eu fui ficando fraco, né? A grana que eu tinha juntado foi acabando, e eu percebi que tinha que mudar de estratégia. Então me dei conta de que não tem outro caminho: cinema é festival. Ali é que estão as pessoas importantes da arte no Brasil, né? Pessoas que se importam. Quando você coloca filme no YouTube, ele se perde ali. Tem um monte de vídeos juntos, e parece que o seu trabalho se desvaloriza muito rápido.
E você me perguntou como eu fui inscrevendo o filme… é que esse filme, O Sonho do Inútil, eu fiz com um sentimento de que seria meu último filme. Porque no momento agora, por exemplo, eu não tenho computador. Tô fazendo um roteirozinho do próximo trabalho no celular, mas eu nem faço ideia de como vou fazer esse filme.
Adriano: É um filme de ficção?
Jr: Então, tenho roteiros de filmes de ficção, vários roteiros. E tem um que eu tô trabalhando e eu pensei: pô, eu não vou conseguir fazer esse filme, então vou fazer um livro, um e-book, né?
Então eu tenho muita vontade de fazer ficção, quero fazer mais um documentário ainda… E eu não imaginava que com esse filme (O Sonho do Inútil) eu ia conseguir quebrar mais esse muro, né?
Adriano: Você mandou ele pra muitos festivais? Já conhecia mais ou menos o perfil do Olhar de Cinema?
Jr: Não conhecia. E é até engraçado, porque é um festival internacional. Mas eu fui pegando, fui inscrevendo sem ler regulamento, só por aquela energia de querer ser visto por alguém. É até engraçado porque quando o filme foi aceito entraram em contato pedindo as legendas em inglês e eu não tinha, porque não falo inglês. E aí o festival comprou a briga do meu filme e decidiu legendar o filme. Cara, isso foi fantástico. Eles poderiam simplesmente cortar o meu filme, botar outro no lugar. Eu imaginei que ia acontecer isso, até fiquei meio receoso…
Eu não conhecia esse festival porque eu não sou desse universo. Eu conheço Gramado, o Festival do Rio, mas o Olhar de Cinema eu não conhecia. Foram surgindo as inscrições e eu fui me inscrevendo; não me inscrevi pra muitos festivais, mandei pra uns 15, 20. Até festival muito pequenininho, porque eu não tô focando só em festival grande. Quero que o meu trabalho seja visto porque eu acho que é um filme importante, cara. Não só por mim, mas pelos meus amigos, por tudo o que tá por trás.
O meu amigo (Douglas Santos) morreu. É algo que eu carrego dentro de mim. Não vou conseguir salvar ele. Tentei muito, mas eu não consegui. Então assim, é um filme muito triste. Eu estou feliz, meus amigos estão felizes nesse momento, quem sobreviveu, né? Mas é muito triste, eu chorei muito editando esse filme. É uma terapia muito pesada. Porque eu sei que esse momento aqui do festival vai passar. Então é aquilo que eu sempre tô falando, não cheguei em nenhum lugar e talvez nunca chegue. Talvez o meu propósito no cinema seja esse, um olhar de quem tá de baixo e fazendo os filmes que eu faço, né? Áudio com fone de ouvido… mas isso é o que eu posso fazer, e eu boto muita verdade e entrega. Você não precisa ter a melhor câmera e nem o melhor equipamento de áudio para fazer um filme bom. Eu acredito nisso.
Adriano: Já que você falou dessa gravação do áudio no fone de celular, me chamou muita atenção a sua narração, não só por essa questão técnica. Eu acho que essa questão técnica está na materialidade do filme, na mixagem, no sentido de você não dar um primeiro plano tão forte para a narração como outros filmes costumam dar. Mas além disso me pego pensando que é uma narração voltada para os seus amigos, entendeu? Não é uma narração que deseja trazer uma explicação, um didatismo sobre o que é o grupo. Então eu queria que você falasse sobre esse processo mesmo. Até porque você nunca tinha feito filme em primeira pessoa. Como que foi isso?
Jr: Esse foi o maior desafio. Eu me sinto muito confortável quando estou por trás da câmera, produzindo as imagens, e não na frente dela, em destaque. Mas no caso deste filme não tinha como eu me pular, porque sou o fio condutor para chegar nos outros personagens. E ao mesmo tempo eu falei: cara, eu não posso querer falar que nem o João Moreira Salles. Eu sou aqui de Cordovil, a minha criação é uma, então eu tenho que ser o que eu sou. Então vou gravar no celular aqui, vou falar da forma que eu falo, e é isso. E a narração foi a última coisa que eu fiz, porque sou um cara tímido, tenho uma dicção horrível, me expresso muito mal. No momento em que não tinha mais nada pra filmar, fui assistindo ao filme e narrando no fone. Tem momentos em que eu chorei, não sei se dá para perceber que eu fico emocionado falando. Eu acho minha voz parecida com desenho animado, mas tive que encarar esse monstro, porque era preciso.
E foi como você falou, é um filme que não foca na narração. A narração é uma ferramenta, mas o filme é os meus amigos ali. Lembro que quando eu terminei meu segundo longa, Idioma Desconhecido, pensei: “caraca, mais um filme, e a minha vida continua a mesma coisa. Não vou conseguir furar essa bolha”. Aí que me toquei que não adianta ficar olhando pra fora, tenho que olhar pra dentro, pro lado, pra onde eu moro, pros meus amigos. Porque as imagens vão se perdendo. Perdi muita coisa já, esse processo do HD ficar ruim… Então o filme é uma oportunidade de poder fazer ficção, de poder viver de cinema. E esse filme é mais do que contar essa história, ele é para sobreviver mesmo. A sensação era de que se eu não fizesse esse filme, nós também iríamos morrer.
Adriano: Isso que você falou sobre a gravação do off, pra muita gente seria apontado como um erro…
Jr: Sim! Sem querer te cortar, mas eu tenho um problema com o áudio desde o meu primeiro filme. É um problema que me persegue. O Observar e Absorver eu gravei com um microfone e não fiz mixagem, o áudio ficou com ruído. Só que eu fico pensando: quando você vai retratar a pobreza, você vai filmar com uma câmera Full HD? Isso é algo verossímil? Quer algo melhor do que um filme feito por nós da classe baixa com fone, momentos em preto e branco, um áudio ruim, chiado? Isso para mim é narrativa também. A dificuldade que eu tenho para fazer meus filmes acaba gerando uma identidade muito forte, entendeu?
No Idioma Desconhecido, meu segundo longa, o amigo que mixou fez uma parada errada em alguns momentos na música, ficou mais alto que o diálogo dos entrevistados, e eu adotei isso para o filme. Por que eu falei, caraca, isso é genial, porque a questão do inconsciente é essa: existe uma música tocando mais alto do que o nosso pensamento. Então são defeitos que eu adoto na minha linguagem. Porque é muito fácil você ter um áudio bom, a imagem perfeita. Agora, você ter coragem pra assumir a precariedade… Não é todo mundo que eu vejo fazer assim.
Adriano: Essa precariedade, como você falou, constitui a própria matéria do filme. Não adianta você fazer um filme em Cordovil tentando simular um áudio de Hollywood ou coisa do tipo…
Jr: Assim, eu quero fazer um filme com áudio bom. A questão é que eu só tinha como fazer desse jeito, então eu adotei, e depois que ficou pronto eu achei que ficou bom. Não é algo que me incomoda. É como se te chamassem pra uma festa, e você só tem uma roupa rasgada. Você não vai na festa? É mais ou menos isso. Vou vestir o que tem e vou sair pra rua sendo o que eu sou.
Adriano: Você citou que alguns vídeos que vocês fizeram se perderam, mas esse filme só é possível devido a uma certa obsessão que você tinha em guardar esses materiais. Um dos primeiros planos do filme traz você olhando pra tela de um computador, e de alguma forma você tá ali mirando todo esse passado, esse HD de memórias. Então fico interessado em te ouvir a respeito dessa obsessão arquivística, e também se era algo só seu.
Jr: Era algo só meu. O Aluã, por exemplo, nunca teve computador nem rede social. A maioria não tinha computador, eu mesmo ia muito em lan house, depois consegui arrumar um computador. Então quando eu comecei os vídeos eu editava no Windows Movie Maker e o PC não tinha muito espaço. E olha a burrice: eu gravava os vídeos, editava, excluía o bruto e só ficava com o vídeo editado numa qualidade horrível, de Movie Maker. E pra gravar mais vídeos eu tinha que excluir os anteriores, então eu perdi muita coisa daquele começo por causa dessa mentalidade… burra, ignorante. Só depois que eu fui entendendo que aquilo ali… cara, no futuro isso aqui é tipo uma máquina do tempo, né? A gente está preso aqui nesse arquivo. Sabe quando você vai escrevendo uma carta para você ler daqui a 20, 30 anos?
Aí comecei a ter o cuidado de guardar melhor essa parada, porque achava que isso aí iria se tornar algo. Porque sinceramente, eu não tinha Plano B não. Quando eu iniciei nos vídeos, falei: cara, eu vou me jogar nisso aqui, vou fazer isso aqui virar o meu trabalho. E eu consegui. Vivi de Youtube, inclusive muito bem. Viajei, pô, fui pra Polônia… então fui muito bem-sucedido naquilo que me propus a fazer, os vídeos de humor físico. Aí quando tive condições de comprar um computador melhor, um HD, eu falei: “pô, cada vez mais eu vou cuidando desses arquivos”, porque eu sabia que uma hora eu ia me jogar no cinema, não tinha como fugir.
E eu tentei, viu? Em 2009 tentei fazer o primeiro curta. Até lancei um tempo atrás e hoje em dia está privado no Youtube, chama Mínimo Existencial. Eu tinha assistido aquele filme O Homem com a Câmera (Dziga Vertov, 1929). “Foda, irado isso aqui mano”. Mais uma vez tive a sensação que tive com Jackass, com Buster Keaton. “Isso é cinema? Caraca, é a história do cinema”. Nessa época eu ainda não ganhava dinheiro, aí eu trabalhei por duas semanas na central da Vivo distribuindo chip de graça, e em seguida comprei minha primeira câmera. Porque antes era só câmera emprestada, celular e tal. Então continuei fazendo vídeos de humor, mas fui fazer o meu primeiro curta. Onde eu ia, filmava, inspirado nesse filme do Vertov. Caminhava pelas ruas da zona Norte, também ia bastante pra Ilha do Governador gravar com o La Fênix… Só que aí eu fiquei inseguro de lançar. “Caraca, será que isso tá bom?” Então não lancei, guardei.
Adriano: A que você atribui o fato de não ter lançado esse filme lá em 2009?
Jr: Faltava essa coragem. Por incrível que pareça, eu tinha coragem de fazer as maiores doideiras nos vídeos, mas batia essa insegurança, porque quando você fica muito tempo fazendo uma coisa, você fica meio que refém do público. E de fato, quando eu comecei a lançar os filmes, nem todo mundo achou maneiro. Antes de fazer O Sonho do Inútil, eu já tinha tentado fazer um outro documentário sobre o Inútil, muito precário. Não botei no YouTube, mas eu botei para baixar no Megaupload. Então eu já vinha tentando fazer cinema, mas eu percebi que não estava bom, e isso me desanimava. Aí eu voltava para aquela ideia: “pô, não tenho capacidade pra fazer, então vou ficar preso nesses vídeos de humor”. Faltava incentivo, até mesmo no próprio La Fênix. Teve uma espécie de sabotagem, porque eu sempre roteirizava além de dirigir, só que os vídeos nunca tiveram créditos nos finais. Então eu fiquei anos ali, o La Fênix ficou bem conhecido, e eu nunca tive crédito. Isso te deixa muito fodido mentalmente. Porque eu volto a dizer: antes de eu fazer os meus filmes, dentro de mim eu sabia que eu poderia fazer eles. Só que pela falta de incentivo ao redor, você vai postergando. Então eu precisei ficar depressivo, fodido, pra poder falar: não, cara, eu vou fazer cinema. Aí pude começar a fazer, e as pessoas agora começam a me enxergar finalmente como um cineasta… Cineasta em formação. Eu ainda tô aprendendo, imagino que vou evoluir muito.
Uma coisa que buga minha cabeça, que eu não consigo entender, é porque os meus filmes estão passando em faculdade e eu não consigo viver do meu cinema. Eu não consigo entender isso, cara. É por que eu não entendo de burocracia, de captar em editais e tal? Porque assim, a minha produtora é uma piada, né. Ninguém Filmes. Tipo, não tem ninguém aqui me ajudando por trás…
Adriano: É uma piada sem CNPJ?
Jr: Eu cheguei a criar um CNPJ, mas já dei baixa, porque não tava conseguindo pagar o MEI. Então já está desativado. Até mesmo pro Olhar de Cinema isso foi difícil, porque eu preciso ter um CNPJ pra emitir nota, e tenho que ficar pedindo a amigos. Eu não existo pra Ancine, nenhum filme meu tem CPB (Certificado de Produto Brasileiro), e isso dificulta a comercialização. Então acabo refém desse conhecimento burocrático que não possuo. Antes eu vivia esse pensamento romântico de que com talento vou conseguir, mas eu vi que não adianta ter nada de talento. Por isso que fiz O Sonho do Inútil com o sentimento de ser o último filme. Até por conta da pandemia, né? Perdi muita gente aqui em Cordovil por conta da Covid. Fazer esse filme também foi enfrentar a pandemia, porque não foi fácil sair para gravar. Eu ficava desesperado tendo que pegar transporte público… Uma das cenas mais icônicas pra mim, em que eu gravei meu amigo saindo com a filha dele recém-nascida na varanda, foi por causa da pandemia, porque eu não podia chegar perto da criança. A pandemia interveio no filme. Gerou essas imagens que eu acho muito poéticas.
Adriano: E antes disso tem talvez a minha cena preferida do filme, que é quando a criança tá para nascer e o Daniel vai pedir um café num carrinho de cachorro-quente em frente ao hospital. Essa singeleza com que você retrata isso, uma mistura de banalidade com o extraordinário.
Jr: Isso daí foi fantástico, porque meu filme tinha essa carga da morte do Douglas, né? E esse momento equilibra um pouco, é um momento bonito de nascimento. Porque eu não queria que a morte do meu amigo fosse o clímax do filme. Eu driblei o máximo que pude, porque pra mim é muito difícil ao mesmo tempo estar feliz porque o filme está passando no festival, mas meu amigo morreu. Na minha cabeça é um sentimento muito conflituoso. E na minha opinião um momento importante que consegue sair disso é a conversa do Aluã com a mãe dele. E ao mesmo tempo tem o Daniel sendo um ótimo pai. Então esse filme é muito louco, porque as cenas vão se completando de uma maneira muito diferente.
Adriano: Pra gente terminar a conversa eu queria retomar o tema do arquivo, porque normalmente a memória das populações pobres costuma ser mais apagada, até por uma questão financeira, de não ter recursos para comprar um HD. Então essa memória costuma ter um recorte classista muito grande. E a preservação é um nó muito fundamental no cinema brasileiro. Há uma institucionalidade muito precária, vide a situação da Cinemateca Brasileira, e boa parte dos cineastas não tem esse pensamento preservacionista que você tem…
Jr: Quando eu consegui comprar minha primeira câmera eu fazia muito desabafo de madrugada no meu quarto – inclusive tem um trecho disso no filme – porque eu sempre fui esculachado socialmente. Minha família não me esculachava, mas não me apoiava, não entendia, e até hoje não entende o que eu faço. Então pra mim era muito duro não ter incentivo, e eu desabafava para a câmera. Foi difícil compartilhar isso, porque é uma coisa muito pessoal, mas eu sabia que seria importante para as pessoas entenderem o que eu estava vivendo e o que eu pensava. Então eu estava ali ferrado financeiramente, mas com a câmera na mão e com a vontade de fazer filmes. Por isso foi importante ter esse olhar documentarista, de preservar. Saber que o que eu estava fazendo de alguma maneira era importante. Então nesse filme eu tô codirigindo com o tempo, é uma codireção. Por isso que ele é forte, tem muita vida ali. A gente vai morrer, tudo vai passar, mas talvez o filme fique.
*Este texto integra a cobertura do 10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba