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O corpo fala: uma conversa com Dea Ferraz sobre o filme Agora

23/11/20 às 13:22 Atualizado em 23/11/20 as 13:24
O corpo fala: uma conversa com Dea Ferraz sobre o filme Agora

Dezembro de 2018. O Brasil se situa em um limbo entre a eleição e a posse de um governo de extrema-direita. Movida a produzir uma resposta ao momento histórico, a cineasta Dea Ferraz convida artistas ativistas – atrizes, músicos, poetas, bailarinos… – para um mergulho corporal em uma caixa cênica. As performances de cada um são acionadas por uma provocação jogada pela diretora: “diante do momento de país que a gente vive, como é que esse corpo sente e onde quer estar?”

Lançado no último mês de outubro no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, Agora dá prosseguimento a uma pesquisa da cineasta a respeito da noção de filme-dispositivo, algo que já se via em trabalhos como Câmara de Espelhos, Modo de Produção e Mateus. “O que me interessa hoje é justamente pensar uma imagem que assuma a sua intencionalidade, que quebre com a ideia de simulacro, que diga ao espectador ‘existe alguém fazendo e construindo essa imagem, existe um encontro acontecendo nessa imagem, existe uma performance acontecendo nessa imagem’”, explica Dea.

Pensado para atingir as telas de cinema, ou mesmo as galerias de um museu, o filme hoje se limita a uma outra caixa cênica: a das casas dos espectadores em meio à pandemia de Covid-19. Nesta entrevista para o Cine Festivais a diretora comenta sobre as motivações e as escolhas que tomou para realizar Agora.

Cine Festivais: Queria começar pensando sobre o nome Agora. No release do filme estava apontada uma participação de outro filme seu em um festival de documentários em Cuba chamado Santiago Álvarez. E o Santiago foi um realizador que fez um filme chamado Now (Agora), um trabalho importante até hoje para o cinema engajado, com um corpo a corpo muito forte com questões daquela época, no caso a violência policial contra pessoas negras nos EUA. Por outro lado fiquei pensando também na ideia de Ágora, vinda da Grécia Antiga, que era esse espaço público, enormes praças em que eram debatidas questões relacionadas à sociedade ateniense. Gostaria que você comentasse sobre o título do filme a partir dessas duas relações.

Dea Ferraz: Na verdade acho lindo que tu trouxe Santiago Álvarez e essa ideia da Ágora. Acabei de ler um texto sobre o filme em que o título era “Uma Ágora de Corpos”, ou algo do tipo. E acho que tem tudo a ver com o filme, né? Essa arena, sendo que na verdade o filme convoca o corpo a falar. Mais do que os discursos narrativos preestabelecidos pela linguagem da oralidade, a grande questão do filme era como evocar o corpo nesse lugar de fala e de existência, porque acho que o corpo diz muito mais do que a gente imagina, transcende a fala/oralidade quando a gente é capaz de se conectar com ele. Então acho que faz sentido pensar a partir dessa ideia de Ágora se a gente faz essa transposição para o corpo, uma arena de corpos que falam, que comentam e que vivem o tempo presente e o tempo histórico daquele agora, que para mim se desdobra até hoje.

Pensando a partir do que tu trouxe de Santiago Álvarez, acho lindo, mas hora nenhuma esse nome veio por esse caminho, sabe? Nem na Ágora grega nem no Now de Santiago. O que me levou a pensar o título do filme está muito mais ligado e relacionado talvez às cosmologias indígenas e africanas que pensam o tempo a partir de uma ideia espiralar. Acho que é mais a partir dessa reflexão que eu penso o nome. Óbvio, tinha um desejo muito grande de registrar aqueles corpos e aqueles sentimentos naquele momento, naquele agora, mas quando a gente pensa esse tempo em espiral, que é também o tempo da física quântica, a gente entende que o tempo se reatualiza. Sobretudo quando a gente pensa a partir dos corpos, que é o que o filme faz.

Acho que os gestos que aqueles artistas performam e trazem para o filme são gestos que dizem respeito à história da humanidade, né? São gestos que o ser humano carrega em seu corpo. O gesto de dor, o gesto de leveza, o gesto de alegria, o gesto de cansaço, o gesto de luta, são gestos que dizem da história da gente enquanto ser humano. Penso que esses gestos, quando são acionados, têm a capacidade de reatualizar o tempo na gente, sabe? O que eu sinto, por exemplo, quando assisto ao filme… cada vez que o assisto ele me atualiza em meu próprio corpo. Ele diz mais de mim e do que eu tô sentindo naquele momento do que propriamente de uma narrativa específica, completa ou construída. Tem dia em que eu assisto ao filme e acabo super cansada; tem dia em que assisto ao filme e acabo com o sangue nos olhos; tem dia em que eu acabo aos prantos… então eu comecei a entender que o filme, e esse agora que o filme fala, é o agora do encontro de quem assiste com o filme. É um tempo histórico que vai em espiral se atualizando a partir dos gestos daquele corpo e se colocando a cada agora, a cada momento em que o filme se apresenta para quem está assistindo.

E dentro do filme tem os momentos que eu vou chamando “agora!”, “agora!”. Eu avisava pras pessoas que estavam improvisando: “ó, no meio do improviso vou pedir algumas pausas, vou dizer a palavra ‘agora’ e aí vocês pausam no gesto que tiver naquele momento acontecendo no corpo”. Pra mim era quase um jeito simbólico de dizer “se eu não posso parar o tempo histórico, o que eu posso parar é o gesto possível do agora”. Então se era a mão no ventre, eu queria ficar naquele gesto com Flávia (Pinheiro); se eram os braços abertos de Lucas (dos Prazeres), quase como se abrindo para tudo que pudesse vir, fico com ele; se era a língua pra fora de Silvia (Góes), que pra mim remete à deusa Cale, deusa da vida e da morte… Então o agora tem também esse lugar, da presença, do estar com esses corpos nesses gestos naquele momento, e depois se atualizando quando a gente assiste.

Você citou a ideia do tempo espiralar e também apontou como sua percepção varia a depender do dia em que assiste ao filme. Quando assisti ao filme fiquei pensando que ele também poderia ser exibido como uma instalação, em uma galeria, com o espectador entrando ali em momentos distintos, fazendo variar ainda mais essas re(l)ações. Você chegou a pensar nisso, ou sempre foi abordado como um filme “de cinema”? Essa questão da instalação passou pela sua cabeça em algum momento?

Passou e passa ainda. Na verdade quando a ideia do filme chega, e a possibilidade de realizá-lo vai se desdobrando e acontece, durante as filmagens eu me perguntava o tempo todo: “meu deus, isso é um filme? O que é isso que a gente está vivendo?” Era uma questão que rondava. Depois que acabaram as filmagens não, eu disse “isso é um filme, mas também pode ser outra coisa”. E essa outra coisa pode ser tanta coisa. (risos) Sabe? A forma dessa instalação, ou dessa possibilidade de levar o filme para outro espaço de relação com quem deseje se aproximar dele. Tanto eu vejo cada performance podendo ser revisitada na sua forma bruta, sem edição, sem montagem, quanto hoje fico vendo o próprio filme e tenho muita vontade de colocar ele numa experiência de imersão muito grande.

Tinha muito o desejo da sala de cinema. Acho que todos os filmes que a gente faz são pensados pra sala de cinema por que a sala de cinema tem uma espacialidade, uma experiência que passa pelo corpo. E para esse filme especificamente isso era muito central pra mim, imaginar essa caixa desdobrada, espelhada… a caixa da tela ia virar a caixa do cinema, o som ia correr a sala inteira, o chão ia tremer, sabe? Quando Lucas toca no final para Xangô, que é o orixá da Justiça, aquele toque quando eu assistia dentro da sala de mixagem era um som que tremia o chão, que chegava no meu corpo, então facilita que a gente acione outros mecanismos de sensibilidade, de relação com a imagem, e isso para mim era bem importante. Então ver o filme hoje sendo exibido nessa forma online, de uma forma completamente descontrolada, eu sinto que tem dois lugares em mim. Uma certa frustração, de dizer “poxa, aquela experiência que a gente tanto tentou construir se perde”, mas a gente ganha o descontrole, o filme poder ser acessado e visto da forma que as pessoas escolherem ver.

Lembro que estava conversando com Amaranta [Cesar, professora da UFRB e curadora do CachoeiraDoc] e ela me disse”: “que nada Deinha, relaxa, solta esse negócio, deixa o povo fazer instalação dentro de casa. Deixa o povo escolher como quer ver. Quem quiser ver cinco minutos vai ver cinco minutos, quem quiser ver dez vai ver dez…” Essa fala dela me colocou num lugar interessante de liberdade. Foi quando eu comecei a me desapegar e deixar que fosse “uma instalação em cada casa”, que cada um possa construir o seu ritual, o seu momento de se relacionar com essas imagens e esses corpos, e isso também é muito bonito de pensar. Agora, eu ainda continuo imaginando o filme em um espaço imersivo. Se vai ser em uma sala de cinema ou numa galeria, isso acho que o tempo vai dizer. Eu sou uma pessoa do cinema, né? Eu não saberia nem o caminho de como fazer uma instalação. Até uma pessoa que viu o filme e a gente conversou muito foi Cao Guimarães, e ele o tempo todo coloca isso: “tem que pensar de outro jeito, tem que ir para outro espaço, pode ganhar uma outra forma”. E hoje fico vendo se a gente pensar uma caixa dentro de uma galeria, com esse som, a pessoa podendo entrar nessa caixa e espelhar a caixa do filme com a caixa em que a gente vive, ia ser uma experiência muito interessante… Tô falando do que eu acho, eu sou suspeita. (risos) Mas eu sinto que é um filme que convoca o corpo.

Tem um texto muito lindo de Suely Rolnik chamado Geopolítica da Cafetinagem no qual ela desenvolve uma ideia de corpo vibrátil. Ela diz que o cérebro da gente está dividido de duas formas, uma cortical e outra subcortical. E que essa subcortical é justamente onde está a nossa relação com o mundo do ponto de vista da sensibilidade, das sensações. Aí ela fala sobre como é importante acordar o corpo vibrátil. Porque dentro dessa ideia de sociedade ocidental em que a gente vive o corpo foi relegado a um adormecimento, né? A gente esqueceu de pensar pelo corpo, de sentir pelo corpo. A gente tá o tempo todo no lugar de uma racionalidade, de uma lógica de causa e efeito, de uma tentativa cartesiana de mundo, e o corpo atua e existe por outras dinâmicas, por outras capacidades e potências. Então eu pensava muito nesse corpo vibrátil de Suely, e acho que era uma vontade muito grande de acordar o corpo vibrátil de quem assistisse. Isso é uma das camadas do filme, né? Óbvio que eu também vejo o filme como o registro de um tempo histórico, e isso está lá, mas acho que ele excede aquele tempo e pode se desdobrar em outras relações.

Você falou desse ponto do registro histórico, e no único letreiro que aparece no filme, logo no início, você traz essa questão de ele ter sido filmado em dezembro de 2018, que é justamente naquela transição antes de o Bolsonaro assumir a presidência – ele já tinha vencido as eleições. Aí fico pensando em como o cinema brasileiro tem lidado com essa série de derrotas macropolíticas recentes. Me vem à cabeça um filme como Era Uma Vez Brasília, do Adirley Queirós, que talvez seja o filme que melhor reconheça uma derrota e um impasse que está posto. Percebo uma dificuldade geral no campo progressista e no cinema em particular de lidar com essa derrota, penso que é um desafio. Então queria saber como você pensa que o seu filme lida com esse tema.

Eu não sei, é meio doido pensar essa ideia da derrota… Fomos derrotados nesse grau de derrota? Do tipo “não há espaço pra mais nada?” Eu não sei. (pausa) Tô pensando, tentando voltar à própria ideia do filme. Porque naquele momento havia sim, óbvio, um sentimento de derrota muto imenso e literal e real. Fomos derrotados sim, um projeto fascista de governo venceu as eleições e a gente tinha que lidar e tem que lidar com isso agora. E eu acho que naquele momento a depressão era muito iminente. A tristeza, um desolamento, um sentimento até de congelamento dos corpos. Para mim era esse o sentimento que estava posto. Mais do que isso, tinha também uma questão relacionada à imagem, eu estava muito descrente da imagem. Era como se eu não acreditasse mais na imagem como potência artística ou possibilidade de comunicação. Estava vivendo uma crise política e artística. Se eu trabalho com essa linguagem e não consigo mais entender do que ela é capaz… Fiquei muito perdida.

Tinha essa sensação de uma espécie de limbo porque a gente tinha perdido as eleições mas ainda era antes da posse. Era uma sensação de abismo muito forte, “abismo” foi uma palavra que a gente usou muito nesse período e nas filmagens. Porque a sensação era de que esse abismo tinha crescido. Ele sempre existiu, sempre esteve entre nós, na nossa sociedade, mas a sensação é que ele tinha se ampliado, mais corpos se aproximavam da beira do abismo, e ao mesmo tempo é nesse momento que um dia eu me levanto da cama, dez dias depois da eleição, nesse contexto de dor, angústia e derrota, e é literalmente no meio do gesto de me levantar da cama que eu sinto que se desprende uma imagem do meu corpo, que é essa imagem que vira o filme, de uma mulher dentro de uma caixa tentando me dizer o que sente com o corpo. E depois de fazer o filme eu volto a acreditar na imagem. É quase como se fosse assim: “ok, perdemos, mas o que fazer com isso? A gente precisa reconfigurar essa derrota e seguir fazendo o que a gente sabe fazer”.

Diante dessa crise do cinema e da cultura nacional, eu fiquei muito tempo, e fico até hoje, dizendo “meu deus, a gente vai fazer o quê agora? Como eu vou viver se eu só fiz isso até aqui?” E eu sinto que a gente vai se reinventando, se recompondo, reexperimentando e recolocando essas questões pra gente mesma e pro mundo, porque eu acho que a arte está nesse meio do caminho entre um campo muito pessoal e um campo muito coletivo. Então eu preciso acreditar, sabe? Como diz [o escritor Eduardo] Galeano, nessa “utopia que faz caminhar”. Esse sentimento de derrota precisa se concretizar mas não pode se cristalizar, se não a gente não vai mais sair do canto pra nada. Acho que o cinema não pode se cristalizar na derrota. E no filme eu sinto que há ali vários estados de emoção, mas que no final há o toque pra Xangô, a gente chama a Justiça. Eu sou essa pessoa, eu tenho que acreditar nesse toque, nessa utopia, e acho que meu cinema talvez caminhe por aí, por não cristalizar a derrota. Eu não sei se isso é bom ou ruim… Nem sei se eu te respondi, Adriano. Parece que eu tô numa análise, porque eu não tinha parado pra pensar assim. Me diz o que você pensa.

Eu citei o filme do Adirley porque eu acho que é o trabalho que talvez lide melhor com essa questão do impasse, entende? Acho que muitos desses filmes que estão lidando com o Brasil de hoje pulam esse impasse, ou não se contentam em lidar com esse abismo. E eu acho que talvez lidar com esses impasses, com esses abismos, pode trazer outras questões.

Como se você percebesse que os filmes não quisessem olhar para o problema?

Isso, não quisessem olhar para esse abismo.

Ah, entendi. Para mim o Agora é justo o contrário, uma forma de olhar inteiramente para esse abismo interno e coletivo que se instaurou ali e pensar o que fazer com isso. Claro que cada um vai sentir esse filme de um modo muito particular, mas pra mim é quase como se fosse meio antropofágico, de se comer pra fazer nascer outra coisa. Sinto que a gente transcende a dor. Óbvio que estou falando completamente contaminada por aquilo que foram as filmagens, por aquele processo tão imersivo e tão intenso com aqueles artistas dentro daquela caixa, e de fato havia algo acontecendo, catártico mesmo. Mas tinha um desejo inevitável de olhar para o abismo. O abismo estava com a gente o tempo todo, a cada pessoa que entrava na caixa era essa a sensação. Não só esse abismo simbólico, como esse abismo que o próprio dispositivo coloca, porque eles não sabiam o que iam fazer; era se deixar levar pelo corpo a partir de uma provocação. Então eram muitos abismos com os quais a gente estava lidando. Do ponto de vista macro pra mim o filme olha pro abismo, engole o abismo e vomita o abismo, sabe? É quase como se ele fizesse esse movimento de transcender. Passando pela dor, por o que foi aquilo, mas não ficando nele, não estagnando.

Outros filmes seus, como o Câmara de Espelhos, também traziam de partida um dispositivo bem marcado, e fiquei pensando nessa ideia da caixa cênica preta. Por que ela tinha que ser assim, e como você pensou no conceito do filme?

Acho que esse conceito de filme-dispositivo me toma há muito tempo. Em Câmera de Espelhos isso fica mais explícito porque também há uma caixa e também é um filme cheio de regras e de funcionamentos, mas também percebo que Modo de Produção é um filme-dispositivo, que Mateus – que é completamente diferente de todos esses que a gente está falando – também é um filme-dispositivo, então de alguma forma existe aí uma pesquisa da minha parte com relação a essa ideia de filme-dispositivo, porque me interessa essa tentativa de acionar algo de real. Mas para além da ideia de dispositivo eu sinto que a minha pesquisa também foi caminhando para essa ideia de caixa. O que me interessa hoje é justamente pensar uma imagem que assuma a sua intencionalidade, que quebre com a ideia de simulacro, que diga ao espectador “existe alguém fazendo e construindo essa imagem, existe um encontro acontecendo nessa imagem, existe uma performance acontecendo nessa imagem”. Essa ideia da performatividade, da teatralidade da imagem, de uma relação direta de construção dessa imagem com quem está assistindo ao filme, isso tudo me interessa. E me interessa porque eu acho que estamos vivendo um momento em que a gente está sendo invadido e quase enterrado por tantas imagens…

[A filósofa Marie-José] Mondzain fala das “visibilidades máximas”, das “visibilidades espetaculares”. Essa visibilidade espetacular da imagem não me interessa, e aí um caminho que eu vou encontrando para pensar a imagem é justamente uma imagem que abra um espaço de movência pro espectador. Que o espectador possa completar a imagem a partir dele mesmo, sabe? Onde a imagem não tenha que dar tudo o tempo todo pra quem está assistindo. E eu acho que a ideia de caixa me ajuda a pensar e experimentar isso, porque ela descontextualiza, esvazia a imagem de muitos elementos, e nesse vazio é onde eu acho que o espectador pode entrar sendo mais ele mesmo, sendo mais livre. Então a caixa me diz muito dessa ideia de performatividade, de intencionalidade e de espacialidade. Isso pra mim hoje é onde estou para pensar, para construir, para produzir a imagem.

Sobre o fato de ser uma caixa preta, nesse filme eu tinha uma vontade grande de recortar esses corpos, a luz precisava marcá-los, e eu acho que em uma caixa em branco isso talvez não marcasse os corpos. Mas sobretudo o que me interessa é que quando a gente marca os corpos com uma luz específica que está só ali, como se fosse uma fresta, ela permite a escolha da sombra, e isso para mim era importante: permitir que aqueles corpos pudessem escolher estar na sombra ou estar na luz. Eles sabiam que se dessem quatro passos para trás estavam na sombra e se dessem quatro passos para frente estariam na sombra de novo. Então dar essa possibilidade a eles era muito importante para mim, e eu acho isso muito forte no filme, como eles se relacionam com essa sombra. A Adelaide, poetisa, começa o improviso dela toda no escuro. Ela é uma cantora de rap daqui maravilhosa, começa num diálogo com ela mesma e está quase todo o tempo no escuro. Acho muito forte e muito simbólico que ela diga tudo aquilo antes de vir para a luz. Tem outro momento em que Raimundo Branco, um bailarino, fica no meio entre a sombra e a luz; acho diz da dualidade do que somos todos. Então pra mim essa caixa preta tem mais a ver com essa ideia de sombra e de permitir que a gente possa estar nas nossas sombras ou não, do que propriamente como uma ideia de racialidade.

Você fala de uma crise de oralidade e de uma crise da imagem, e no filme são poucos os personagens que tentam expressar pela oralidade aquilo que estão sentindo. Isso vem da escolha de quem participaria do filme ou foi algo que ocorreu de forma natural?

A escolha do elenco… não sei nem se a gente chama de “elenco”, de “personagem”, porque pra mim são pessoas que têm na arte suas formas de existência. Mas o que eu falei para Bruninha Leite, que assina a produção de elenco, quando a gente começou a pensar o filme, foi assim: “amiga, eu queria que a gente fizesse uma pesquisa por artistas ativistas”. Não ativistas no sentido panfletário da palavra, mas no sentido existencial mesmo. E eu queria muito que fossem artes diversas, não tinha o intuito de ficar só no campo do corpo; também queria tentar chegar na poesia, música, na pintura… queria passear um pouco por outras linguagens, e isso tinha a ver com um sentimento meu de que todos nós somos artistas e que essas formas de se expressar pela arte aparecem de várias maneiras, por isso era importante ter essa pluralidade das linguagens.

Mas na hora existia outro elemento do dispositivo que era a preparação desses corpos e desses artistas. Tinha um desejo muito grande que a gente criasse um set que fosse muito acolhedor, muito amoroso, e que as pessoas se sentissem muito à vontade. Então eu chamo Lívia Falcão e Sílvia Góes, que são duas amigas-irmãs com quem eu já trabalho há muito tempo, em quem confio muito, para fazer essa preparação. Então o que acontecia: a pessoa chegava no set, eu recebia, conversava com ela num campo super pessoal e afetivo, de acolher, de receber, de agradecer por ter topado participar, e depois entregava para Silvinha ou para Livinha, que se revezavam. Elas ficavam de 40 minutos a uma hora trabalhando com cada corpo, já dentro da caixa, numa proposta que era de conectar eles com o próprio corpo naquele momento. Quando estava chegando perto de dar uma hora a equipe toda entrava na caixa em silêncio, cada um em seu lugar, na sua posição, Lívia ou Sílvia entendiam que o tempo estava chegando, elas iam finalizando o trabalho e saíam da caixa. Essa foi uma forma que a gente encontrou para que esse fluxo fosse mais orgânico, que a gente não perdesse o trabalho que tinha sido feito. Antes de bater claquete eu agradecia, pegava na mão, olhava nos olhos, dizia “tamo junto, você não precisa fazer nada que não queira, a gente tá aqui com você”, batia a claquete e eu fazia a provocação (“Diante do momento de país que a gente vive, como é que esse corpo sente e onde quer estar?”). Como eu acho que tem uma diversidade de linguagens de cada um, o corpo aparece, isso é muito interessante. O próprio Dante, que é artista plástico, tem um momento de corpo; ele coloca o corpo na roda e escolhe fazer isso a partir desse trabalho de preparação que tinha sido feito.

O que eu acho interessante para pensar essa oralidade no filme é que a palavra também faz parte do corpo, né? A questão é que pra mim, quando ela surge no filme, parece que se descola mais do corpo do que de uma ideia de razão. Mesmo Joy (Thamires), que é a única que fala muito claramente do quanto o corpo está cansado (“meu corpo está cansado, eu nasci resistindo”), mesmo quando ela dá o texto, para mim é quase como se seu corpo estivesse falando, e não a mente, ou o campo da racionalidade, ou do discurso politico pronto. Ela fala num lugar muito de conexão com esse corpo naquele momento. Então acho que a oralidade se coloca no filme sempre por essa via, que não é a via do discurso concreto, do discurso amarrado, do discurso formatado. Acho que é aí que se estabeleceu a crise da oralidade, né? Quando a gente formata um discurso e quer enfiar ele goela adentro de quem está na nossa frente, mesmo que seja na diferença. A gente perdeu a capacidade de diálogo na diferença. E eu fico com essa intuição de que o corpo é um caminho de resgate para essas relações, para esse contato com a diferença, porque no corpo a gente se percebe mais igual, se percebe mais gente.

Você falou de uma crise do discurso formatado, e eu venho pensando como várias das palavras e dos símbolos históricos da esquerda foram apropriados pela direita nos últimos anos, sobretudo a partir de 2013. A palavra “resistência”, por exemplo, virou uma espécie de commodity se a gente pensar nesse campo da esquerda, nesse sentido de obter uma legitimidade prévia, e também há uma série de apropriações. Vale pensar como esses radicais de extrema-direita se entendem como uma resistência ao comunismo (risos), por exemplo. Então as palavras vão perdendo sentido, né? Como você acha que seu filme se relaciona com isso.

É, a sensação dessa crise da oralidade se dá muito nesse lugar de como as palavras foram esvaziadas, palavras que são primordiais pro pensamento sobre o mundo, sobre o país, sobre o que a gente vive, e que parecem que, como tu dissesse, foram quase cooptadas. Eu acho que isso é o que faz o capitalismo, na verdade, como ele vai se entranhando na nossa construção de subjetividade e por consequência nas palavras que a gente escolhe usar, e como ele vai reinventando e refazendo essas palavras. Acho que é [o filósofo] Peter Pál Pelbart que fala um pouco sobre essa ideia de esvaziamento das palavras, de como a gente precisa resgatar ou reinventar inclusive as palavras. Tem um livro da n-1 edições que eles usam a palavra (Re)existir, e acaba que foi outra palavra que hoje em dia vejo muito as pessoas usando. Aí acho que passa por aquilo que eu estava falando, pensar que talvez a gente tenha que começar a abrir mão das palavras para se entender a partir e outros códigos, de outras existências, e o corpo é esse lugar de existência, de comunicação, de desprendimento de imagens. E a imagem pode ser uma linguagem muito mais livre do que está posto. A sensação que eu tenho é que a imagem está sendo super ocupada, super preenchida, super visibilizada, super espetacularizada, e aí a gente vai entrando nessa crise da imagem. A palavra parece não dar mais conta. Se ela não dá, o que é que dá? A pergunta é essa. Como eu trabalho com imagem, me pergunto do que uma imagem é capaz. É uma pergunta que me invade quase todos os dias desde as eleições. E eu só vejo a possibilidade de potência da imagem quando ela é esvaziada, mais do que quando é preenchida. Aí é como chego nessa construção da caixa em Agora.

Também queria saber sobre esse código que você usa, que faz parte do dispositivo, que é o “Agora!”. Para mim remete a algo lúdico, por exemplo à brincadeira de “Estátua!” e aos significados que isso possui. É um código que estabelece hierarquia, uma espécie de comando, mas tem também essa ideia de algo mais lúdico…

Para além do ponto de vista prático que eu já comentei, tinha também a questão de que não era uma pausa na imagem, era uma pausa no corpo; e uma pausa no corpo nunca é total. A gente para o corpo, mas o corpo segue em movimento, o sangue tá correndo, suor tá escorrendo, mão tá tremendo, A pausa não era pausa porque o corpo seguia, como a gente segue, como a gente precisava seguir. Então ver essa energia contida nesse corpo em pausa era uma forma simbólica de ver essa energia contida em nós mesmos. O que fazer com isso? Era muito interessante porque era como se ali eles pudessem redefinir o próximo movimento. Eles não precisavam ir para onde estavam indo, então isso era bem bonito de ver. Alguns deles explodiam quando retornavam, e essa explosão era muito simbólica para mim.

Acho que tem também uma outra camada que tenta se aproximar de (Giorgio) Agamben e (Aby) Warburg, que são dois filósofos da imagem que têm alguns pensamentos sobre a ideia do gesto. É engraçado você falar sobre a brincadeira de “Estátua!” porque Agamben vai usar outra brincadeira, uma dança que chama fantasmata, para falar dessa ideia do gesto sem medialidade; o gesto, para ele, é aquele que não tem intenção de existir. Como se a gente brincasse de “Estátua!” e o corpo parasse num gesto que a gente desconhece, que não controla. Então tinha um pouco essa tentativa de observar esse gesto de que fala Agamben. Já Warburg, que veio antes, diz que um quadro nunca é só um quadro, é um congelamento de um gesto no tempo. O gesto sobre a tela congela um corpo, um jeito de ser. E Agamben retoma isso para pensar esse gesto que acontece sem a gente controlar. Então acho que tinha essa vontade de pensar esse gesto livre, que vai nascer dessa provocação.

Mas isso tudo é muita viagem, visse Adriano? (risos) Porque no fim acho que quando a gente pensa um filme isso tudo tá muito dentro de mim. O que o filme provoca nas pessoas é o que vai ficar. Tá para além de mim, do que eu posso pensar, do que eu posso querer. Com certeza nada disso que eu estou falando tá no filme, e que bom que não está, porque a intenção é justo outra, que ele possa acionar essas camadas desses corpos de uma forma muito mais livre de intenções, por mais que tenha uma intenção por trás. Não sei se é importante esse pensamento todo. Quando um filme vai pro mundo ele transcende tudo isso, eu não controlo mais. Tem pessoas que vão se relacionar com o filme e vão super mergulhar, entender, e outras vão dizer “que porra é essa?”, e tudo bem. Filme nenhum tem que dar conta de nada. Um filme não se encerra nele mesmo, tá sempre aberto pro outro, ganha uma outra dimensão agora que saiu de mim. Cada filme que eu faço parece que sai de uma parte do meu corpo, e quando sai, sai, eu não controlo mais. E que bom que eu não controlo e que vai chegar de outras formas em quem tiver aberto pra receber.

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