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Confiar nas mãos, tricotar memórias: uma conversa com Catarina Vasconcelos

15/10/20 às 14:03 Atualizado em 18/02/21 as 11:19
Confiar nas mãos, tricotar memórias: uma conversa com Catarina Vasconcelos

No processo de seis anos que resultou no longa-metragem A Metamorfose dos Pássaros, houve uma altura em que a realizadora portuguesa Catarina Vasconcelos se questionou: “será que sou Penélope?” A curiosa analogia com a personagem da Odisseia de Homero que de dia tricotava sua manta e de noite a desfazia para não voltar a casar ganha razão de ser pela relação que Catarina estabeleceu com a memória da família (avó, pai, mãe). Esse processo que parecia não ter fim, segundo ela, era uma forma “de passar mais tempo com minha mãe, com as memórias dela, de minha família”.

A Metamorfose dos Pássaros é um filme artesanal e familiar que fabula a memória de pessoas próximas da realizadora, primeiro com foco em sua avó paterna, Beatriz, e posteriormente inserindo a si mesma e a sua mãe (que faleceu há 17 anos) como integrantes dessa narrativa que, como aponta Catarina, é acerca “da relação com as mães, e da relação com a morte e com a ida delas”. A abordagem poética da construção de som e imagens leva muito a sério um lema que acaba por permear todo o filme: “quando não se sabe, inventas”.

O filme estreou mundialmente em fevereiro, na edição inaugural da mostra Encounters do Festival de Berlim, voltada a “promover obras estética e estruturalmente ousadas de cineastas independentes e inovadores”. No Brasil o debute ocorreu neste mês de outubro na mostra competitiva do 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, que em 2020 promove uma programação online.

Nesta conversa com o Cine Festivais, Catarina Vasconcelos esmiúça as particularidades do processo criativo que a levou a construir A Metamorfose dos Pássaros.

Cine Festivais: Após entrar em contato com A Metamorfose dos Pássaros fui pesquisar pelos seus trabalhos anteriores e cheguei à sua página no Vimeo, onde encontrei um trecho de seu primeiro filme, o curta-metragem Metáfora ou A Tristeza Virada do Avesso. Pelas imagens que vi me pareceu que há semelhanças com o longa, no sentido de haver ali uma narrativa epistolar, ensaística e com um foco familiar. Então, para começarmos nossa conversa, gostaria que você falasse sobre a relação entre essas duas obras e sobre esse intervalo de seis anos que separa o lançamento do curta e o lançamento do longa.

Catarina: Metáfora ou A Tristeza Virada do Avesso é uma espécie de preâmbulo, para falar a verdade. No sentido de que eu acredito que nunca poderia ter feito A Metamorfose dos Pássaros sem ter passado antes por este curta. Ele foi feito quando eu estava vivendo em Londres, e este curta acabou por ser o trabalho de conclusão de curso. É um filme que fala da morte da minha mãe, e foi muito importante porque eu estava na Inglaterra enquanto havia uma crise econômica gigante abatendo Portugal. Então juntava-se um bocadinho as duas coisas: a ideia do 25 de abril – para que ele foi feito, no sentido dos direitos dos trabalhadores, das pessoas, – e essa memória do 25 de abril trazia-me inevitavelmente a memória de minha mãe, que era uma pessoa que sempre viveu essa data, da Revolução dos Cravos, com uma enorme vida, com uma enorme alegria, dizendo que era o dia mais importante de sua vida. E portanto Metáfora… acaba por juntar esses dois lados: um lado político, de contar a história de um país, ao mesmo tempo que contava a história de uma família. E nesse sentido acaba por ser um filme muito pessoal, e se calhar foi a entrada nesse mundo mais pessoal, da perda de uma mãe, que deu depois de alguma forma no início do que seria A Metamorfose dos Pássaros.

Fiquei pensando em como ambos os títulos possuem o prefixo “meta”, que traz a ideia de uma reflexão sobre si, e ao mesmo tempo nessas palavras: “metáfora”, transportar; “metamorfose”, mudar a forma. Acho que em A Metamorfose dos Pássaros a personagem Beatriz é retratada como uma certa metáfora da natureza, e em alguma medida quando ela falece a própria natureza se ressente disso. Então talvez você possa falar um pouco dessas duas ideias e desse prefixo “meta”, dessa reflexão sobre si.

É uma ideia super linda. Eu já tinha pensado na proximidade dos títulos, “metamorfose” e “metáfora”, mas nunca tinha pensado nessa coisa do “meta”, e tens toda a razão. São filmes que acabam por ser bastante autorreflexivos, que acabam por ter esse lado de uma enorme introspecção e de uma enorme reflexão. Sim, parte de uma esfera bastante pessoal, mas acaba por ir para uma esfera bastante universal que é a nossa relação com a morte e a nossa relação com o fato de virmos a perder uma pessoa ou alguém que amamos muito. Portanto acho que ambos os filmes têm essa relação, e creio que isso foi muito importante.

Ao começar a trabalhar em A Metamorfose dos Pássaros a respeito de uma mulher que eu não tinha conhecido, que era minha avó, eu tive também de entrar um pouco no universo dela, que morre dois anos antes de eu nascer. Ela morre em 1984 e eu nasço em 1986. E a Beatriz era uma mulher que criou esta família em terra enquanto meu avô Henrique estava no mar. Portanto ela era realmente, para mim, a metáfora de uma espécie de uma árvore onde os pássaros voavam em volta dela e pousavam nos seus ramos, e era ela quem dava alimento e abrigo a esses pássaros.

Ao mesmo tempo o amor da minha avó Beatriz pela natureza fez se sentir em variadas coisas, no jardim que tinha na casa deles, e anos mais tarde em um terreno no sul de Portugal, no Alentejo, onde minha avó plantou todo o terreno com inúmeras árvores de fruto. E é bastante impressionante ver que as árvores de onde nós ainda hoje tiramos laranjas foram plantadas pelas mãos dela. Para mim era muito evidente que essa mulher tinha uma relação com a natureza muito, muito grande, e eu conseguia relacionar-me com ela através desse enorme amor.

Minha avó era uma mulher muito religiosa, com uma grande crença em deus, tal como meu avô, e eu não. Não sou católica, não sou crente, mas comecei a perceber que conseguia me relacionar com minha avó nesta crença maior que é uma crença na natureza. E acho que nesses últimos seis anos, que foi o tempo que demorei para fazer esse filme, foi um tempo também para perceber que se calhar este deus maior, que é a natureza, poderia me trazer também algum consolo, no sentido que nas estações do ano você tem a primavera, o verão, o outono, o inverno e depois outra vez a primavera. Vinha essa ideia de a morte dar sempre origem à vida. Então para mim essas metáforas do mundo da natureza começaram a ser fundamentais também para explicar uma certa relação com uma coisa intocável, que não tem corpo, que é a morte. Uma coisa que traz um enorme sofrimento e uma enorme tristeza. E ao olhar para a natureza, nesta busca, eu senti algum consolo.

Tendo em vista esse ponto de partida, dessa mulher que fica no ambiente doméstico e desse homem que está no alto-mar, fiquei pensando que talvez essa história seja muito antiga, né? Estava presente, por exemplo, na Odisseia de Homero. Com Ulisses exercendo esse papel de aventureiro e Penélope permanecendo nesse ambiente doméstico. E aí acho que o que o seu filme faz é colocar esse foco maior nessa experiência feminina, da Beatriz, subvertendo essa narrativa fundante da cultura ocidental. Em algum momento essa relação passou pelo seu processo?

Sem dúvida. Eu comecei a pensar muito sobretudo no fato dos meus avós terem uma relação que se dava sobretudo à distância, e de eu não conseguir entender como se tinha uma família de seis filhos à distância. O meu avô só esteve presente no primeiro parto, portanto só viu o meu pai nascer. Ele só conhece minha tia Teresa quando ela já tinha quatro anos. Portanto o tempo que meu avô passava no mar era uma enormidade. E tu tens toda a razão quando fala que esta é uma história já muito antiga, do homem que vai embora e da mulher que fica em terra. Mas ao mesmo tempo para mim o fascínio era na mulher, e não no homem que vai. É nela que fica acá, que fica a tomar conta dos filhos, da educação, e a criar essa ideia de família. Desde logo se tornou muito evidente que para mim a tônica estaria sempre na visão dessa mulher, para mim isso era fundamental.

Ao mesmo tempo que eu estava a fazer o filme de forma a entender um bocadinho melhor quem era essa Beatriz, para mim foi fundamental estudar sobre o que era ser uma mulher na época da ditadura do Estado Novo em Portugal. E comecei a perceber que as discrepâncias entre os trabalhos das mulheres e os trabalhos dos homens eram enormes. Ainda hoje em dia se sente isso, mas naquela época era uma discrepância absolutamente brutal. Uma ideia já imposta do que é o papel da mulher e o que é o papel do homem. Portanto o filme tem assim uma espécie de um piscar de olhos a essas questões sobre um sexismo que se vivia naquela época e que ainda se vive. Do que é que são as tarefas das mulheres – “as mulheres tomam conta da casa, tomam conta dos filhos, engravidam, as mulheres fazem abortos… -, enquanto os homens fazem as enciclopédias, fazem as guerras, descobrem o mundo…” Esse momento do filme é um pouco irônico para nós percebermos como dividimos de forma tão quadrada o que são tarefas de uns ou de outros só baseando-se nos gêneros.

Ao mesmo tempo acho muito bonito você ter falado de Ulisses e de Penélope porque usei essa metáfora para mim própria. Houve uma altura em que eu já estava a ficar um pouco preocupada com o desfecho do filme, que estive um pouco bloqueada, e estava numa sessão de terapia com minha psicóloga e ela me disse “Catarina, se calhar, tu és Penélope.” A história de Penélope era que só quando ela terminasse de tricotar a sua manta é que voltaria a casar. E o que Penélope faz é que de dia ela tricota a manta e à noite desfaz tudo. E houve uma altura em que eu pensei: “será que eu sou Penélope?” Porque essa era a minha forma de passar mais tempo com minha mãe, com as memórias dela, de minha família. Portanto é muito engraçado você falar dessa história de Ulisses porque ela foi invocada por outra perspectiva, mas o mito de Ulisses e de Penélope esteve sempre aqui presente de alguma forma.

Que ótimo isso! E a partir daí fico pensando nas várias distâncias dessa história. No casal que mantém um relacionamento à distância. Na distância geracional entre você e sua avó. Penso que vocês são convocadas a preencher essas distâncias, a fabular a partir delas. Como isso passou pelo seu processo?

Quando comecei a fazer o filme eu tive uma série de entrevistas, de conversas com meu pai e com meus tios para saber mais sobre essa mulher e também para saber mais do meu avô. Meu avô ainda estava vivo quando eu comecei a fazer o filme, ele morreu no meio do processo do filme, há dois anos, e portanto ainda tive oportunidade de falar com ele. As conversas foram de uma enorme generosidade, senti que minha família me dava muita informação sobre quem tinha sido a Beatriz, sobre eles próprios, sobre a relação dela com eles, deles com ela. Mas depois havia uma sensação muito esquisita, muito estranha, porque eu sentia que eles não estavam a ser completamente honestos, que não estavam a dizer tudo, que tinha qualquer coisa que não estavam a contar. Essa sensação de que havia algum mistério, algum segredo, que percebi mais tarde que isso é a forma como as famílias operam: há coisas que não são ditas, há coisas que não se contam. E que isso faz parte desse mistério que são esses organismos vivos que são as famílias.

Então nessa altura pensei “ok, se eu não conheci essa mulher, se há coisas que eu não conheço, se há coisas que não me são ditas, então eu tenho de as criar, eu tenho de as inventar”. Me surgiu um bocado essa ideia de que quando não se sabe, inventas. Que é uma ideia que está um pouco ao longo do filme: criar memórias para que essas distâncias se aproximem. E isso foi uma coisa que começou a ganhar forma bem de início, depois dessas conversas com meus tios e com meus pais, um entendimento de que o filme nunca poderia ser um documentário no sentido de uma só realidade. Existiam várias realidades para se falar. Havia a morte da Beatriz, havia o crescimento de uma família, havia a morte da minha mãe, havia o meu olhar. Portanto todas essas distâncias, todas essas histórias tinham que se encontrar de alguma forma. Então o filme desde cedo bebeu nesta ideia de ficção documental, e eu acho que a ficção também entra aqui para encurtar distância. Ela entra para poder me dar uma espécie de chão seguro sobre coisas que não sei. Uma possibilidade de inventar memórias. E creio que isso foi muito importante ao longo de todo o filme. Mesmo depois no fim para desconstruir o filme, para dizer que há aqui coisas que não aconteceram bem assim. O meu pai chamar-se Henrique e não chamar-se Jacinto. Essa possibilidade de brincar com a história, mesmo sobre coisas que eram muito sérias.

Queria que você contasse um pouco sobre a relação entre a imagem e a palavra. Assistindo ao filme parece que são duas coisas muito abraçadas, mas que não aparecem numa lógica simplesmente ilustrativa. Há um emaranhado que faz com que elas se abracem, mas em algum sentido elas também estão dissociadas. É um filme que é muito centrado nessa ideia da palavra, mas no qual as imagens também nos dizem muito, e por vezes evocam sensações outras. Queria saber como isso se deu no processo de criação, o que costumava vir antes…

Há uma coisa importante porque eu não estudei cinema. Estudei design de comunicação na Faculdade de Belas Artes em Lisboa, e quando estava a estudar nessa faculdade uma coisa maravilhosa era que existiam muitas disciplinas em comum com outras áreas. E eu antes de ir para Design estive quase a ir para Pintura, mas sou péssima a desenhar, sou péssima a pintar (risos), mas sempre nutri um enorme amor pela pintura, sempre me fascinou muito. E eu acho que o mais próximo da pintura acabava por ser o design, portanto também fui por aí. Mas acabou que por gostar muito de História da Arte a pintura foi uma coisa sempre presente na minha vida. Então quando eu comecei a escrever o filme muitas das imagens que me vinham tinham a ver com quadros, com pinturas do Renascimento, com coisas que eu já havia estudado. E de alguma forma eu sentia que elas diziam coisas que eu queria dizer. Era como ir rebuscá-las, aquelas naturezas mortas, e dar-lhes vida.

No filme existe muito essa ideia de quadros vivos. Portanto, quando comecei o processo do filme eu escrevi um roteiro em que de alguma forma descrevi muito bem, ou o melhor que pude, as cenas visuais que nós íamos ver. Quando comecei a filmar e falei com meu diretor de fotografia, o Paulo Menezes, e comecei a falar sobre a ideia de pintura, de natureza-morta, de luz, foi muito comovente porque o Paulo começou a ficar com um brilho muito forte nos olhos e começou a dizer que estava muito feliz porque ele próprio estuda pintura. Então de repente tínhamos duas pessoas – o Paulo não só é um grande diretor de fotografia como se tornou um grande amigo – e eu senti que nós quando estávamos a realizar o filme as imagens tinham esse sentido da construção de um quadro. E o Paulo trabalhava a luz como um artista trabalha a luz, com uma enorme sensibilidade. O olhar do Paulo estava sempre à procura de uma luz justa, vamos chamar assim. Então isso foi a primeira parte do filme.

Depois quando filmamos tudo eu tive um processo de edição com o montador, o Francisco Moreira. Às tantas terminamos o primeiro corte do filme e eu combinei com o Francisco que precisava de passar agora algum tempo só eu com aquele primeiro corte para escrever a voz off. Quando estávamos a filmar eu tinha umas notas de voz, do que seria dito, mas ainda não tinha nada muito desenvolvido. Por isso quando acabei o primeiro corte com o Francisco passei cerca de cinco, seis meses sozinha a escrever sobre aquele primeiro corte. E foi um período muito importante, fundamental, porque os filmes têm essa ideia coral: no meu caso começou sozinha, depois entrou muita gente, entrou uma equipe de cinema, entrou minha família, que são as pessoas que estão no filme, depois estive com Francisco na montagem e depois voltei a estar sozinha. Era como se o filme tivesse voltado a si próprio, e era como se eu estivesse a olhá-lo de novo. Então escrever sozinha foi muito importante. E para mim também havia uma outra ideia que estava desde o início que era que eu queria que o filme tivesse essas várias vozes, como se fosse um coral. Eu estudei música quando era mais nova, toco violino, e sempre me fascinou muito nas orquestras essa coisa de que há um tema, e o tema primeiro está nas cordas, depois vai pro oboé, depois passa para a flauta… uma ideia de ordem na desordem. E isso era uma coisa que eu queria muito que o filme tivesse, esse lado mais coral de várias vozes. Isto para dizer que eu não queria de todo que as imagens fossem ilustrações. E não queria que as palavras fossem ilustrações das imagens. Por isso foi importante ter dois momentos distintos para pensar profundamente este texto. Pensar esse texto com a mesma sensibilidade com que pensei com o Paulo Menezes as imagens. Pensar as palavras dessa forma.

Você colocou essa ideia da luz justa, e me parece que nessa construção do roteiro há uma busca também pelas palavras justas, né?

Sim! Sem dúvida. Isso era uma coisa muito importante: ter as palavras certas, as palavras justas. Porque sim, é um filme que parte dessa esfera pessoal, mas era importante que ele não ficasse fechado, era importante que chegasse a outras pessoas, a outras famílias. Porque verdadeiramente o assunto de que trata é um assunto altamente banal, a morte de uma mãe. É uma coisa que infelizmente muitos de nós vamos passar ou passaram por ela. E por isso para mim era importante que essas palavras também fossem justas para outras pessoas. Ao mesmo tempo que era importante esse caráter de reflexão sobre a ideia de fim de vida, mas também a ideia de como continuamos, como sobrevivemos, como refazemos nossa identidade quando perdemos alguém que é tão importante para nós.

Em uma outra entrevista você disse que durante o processo do filme, nesses seis anos, você deixou de assistir a filmes familiares…

Sim! (risos) É verdade.

Então eu queria que você comentasse porque tomou essa decisão e que tipo de influências tanto cinematográficas, pictóricas, literárias você estava aberta a receber, já que aos filmes familiares você havia colocado essa espécie de barreira.

Eu sempre vi muitos filmes sobre famílias, filmes que vou chamar de mais privados – privados no sentido da existência muito clara da relação do realizador com o assunto que está a ser retratado. Mas eu queria muito que o filme pudesse sair dessa esfera demasiadamente pessoal, e criasse imagens que comunicassem fora dessa esfera pessoal – partindo daqui sim, mas que tivesse outras influências. E por isso talvez tenha sido muito importante esta espécie de jejum de filmes de família, porque também existia uma forma de uma certa narrativa que eu queria… (pausa) – não estou a dizer que são todos iguais, nada disso, mas era como se eu estivesse à procura da minha forma de contar essa história.

Eu não vi filmes de família mas vi outros filmes, li muitos livros e estudei muitas pinturas – estudei a forma como alguns pintores trabalhavam, a forma como viam a luz, também a forma como alguns compositores escreviam suas composições, para mim isso foi muito importante para a ideia de criar uma obra. No caso da pintura foi fundamental estudar alguns pintores do Renascimento como Jan van Eyck, Petrus Christus, que têm uma relação extraordinária com a representação da luz. Alguns pintores italianos, holandeses, que parecem que estão a representar o mundo pela primeira vez. E para mim há um lado muito comovente nisso. Por exemplo, me comovem muito os quadros do Giotto porque é como se o mundo estivesse a ser representado pela primeira vez; a ideia da perspectiva aparece pela primeira vez. E eu queria muito beber dessa sensibilidade que eu sentia em muitos pintores. Embora essas imagens tenham sido altamente pensadas, claro.

No filme também estamos a falar de crianças, há um jogo constante dos meninos que se escondem, saem do armário, se tapam com penas. A morte de um pássaro, o contato com a morte pela primeira vez, isso era uma coisa que para mim era um bocado importante na construção das imagens. Esse quase realismo mágico de olhar o mundo. Por isso acho que as referências vinham muito daí. Ao mesmo tempo que digo isso também acho que foram fundamentais filmes de pessoas que eu admiro muito. A Agnès Varda é um grande exemplo disso, no sentido de ser uma pessoa que consegue fazer filmes onde ela entra constantemente e os filmes têm um enorme caráter pessoal, mas nós em nenhum momento sentimos que aquilo não diz respeito a nós. Nos sentimos envolvidos naquilo, aquilo faz parte de nós, mesmo que tenham sempre um caráter altamente pessoal. E esta forma de envolver o outro na nossa esfera era para mim super, super importante.

É ótimo você falar da Varda porque é um extraordinário exemplo de como esse pessoal e esse universal estão muito presentes. E também são filmes sempre muito bonitos, que transbordam uma certa beleza e uma certa construção poética também. E pensando em A Metamorfose dos Pássaros, não sei se você tem acompanhado as reações ao filme aqui no Brasil, após as exibições no Olhar de Cinema.

Tenho ficado super comovida com essa reação. Não era algo que esperava. É muito bonito.

Sim. E aí uma questão que eu teria seria o quão ciente você era do grau de beleza, do grau poético que a sua narração e as suas imagens tinham. Porque como espectador uma questão que sempre me vinha era o que viria no plano seguinte, como manter aquela beleza, e de algum modo o filme consegue ir sempre se reinventando, tomando outros caminhos…

Houve uma frase que me deixou uma vez muito perturbada quando eu era mais nova. Dostoiévski escreveu que “a beleza vai nos salvar”. E aquilo perturbou-me imenso porque eu era nova, a minha mãe estava doente, e eu pensei: “que disparate de afirmação! Desde quando que a beleza salvou alguém no mundo?” Isso foi uma frase que eu li quando tinha 15 anos e nunca me esqueci. Passaram-se os anos, hoje estou com 34 anos. A minha mãe morreu quando eu tinha 17 anos, então passei metade da minha vida com ela e a outra metade sem ela. E hoje em dia acho que essa afirmação do Dostoiévski é extraordinária, no sentido de que há qualquer coisa na inquietação da procura pela beleza que nos faz procurar um mundo melhor. E se calhar face a uma coisa tão triste como é a morte, do outro lado da balança temos que ter coisas tão belas como a beleza.

Não sei se faz sentido falar assim, mas acredito de alguma forma que isso nos pode trazer algum tipo de consolo. Eu não quero escapar à morte, mas quero saber conviver com ela. Conviver com este fim que nós vamos todos ter e que nos traz tanto sofrimento. E talvez essa ideia de uma procura pela beleza, de tentar trazer alguma beleza à vida ou de tentar procurar a beleza com os nossos olhos possa ser uma forma de tentar viver o melhor possível esta vida, que tem coisas extraordinárias. A procura pela beleza é uma inquietação, é esta necessidade de encontrar o outro prato da balança em relação a uma coisa que causa um grande sofrimento. E se calhar só se pode combater o sofrimento com as coisas que são boas e que são belas. Daí eu estar completamente ciente de que o filme traria pra tanta gente tanta beleza não era uma coisa que eu estivesse a pensar. Estava sim muito preocupada com as palavras serem justas, com as imagens serem justas, com as imagens poderem evocar uma coisa às vezes não muito terrena, mas não sei se estava consciente desta relação grande com a beleza.

Você citou essa questão da ambivalência, e por isso me lembrei do momento em que há a transição para a segunda parte do filme, em que você aparece como uma personagem, que é feita a partir dessa fotografia que aparece a partir de um fundo branco, e nela consta tanto o signo do nascimento quanto o signo do falecimento, né? Em alguma medida é uma imagem que carrega uma gama enorme de significados que estão presentes tanto na construção das palavras quanto das imagens. Então queria que você falasse um pouco sobre essa imagem e como ela serviu como espécie de motivador ou de guia para que essa segunda parte ganhasse a forma que ganhou.

Um dos momentos mais complicados na criação do filme era fazer a passagem da vida do meu pai e da minha avó e fazer essa justaposição com a minha vida. E este foi o último plano a ser realmente feito. Já estávamos na montagem e a transição antes era outra. Eu sempre tive essa fotografia perto de mim, é uma fotografia muito especial, não é?, o momento do nascimento de alguém, neste caso o meu, e era como se essa fotografia estivesse sempre ali à espera que se fizesse luz na minha cabeça de como que iria utilizá-la. E essa fotografia tinha que ser ela própria a passagem. Mas é muito interessante porque as coisas que parecem mais evidentes são aquelas que são as últimas a fazer um click na nossa cabeça. Então eu acho que esta imagem acabou por adquirir um enorme espaço no filme. Não só espaço, como também a passagem que ela faz, a passagem do tempo que nós sentimos também na revelação da própria fotografia, acaba por ser fundamental para poder nos mostrar o tom do que vem aí. E sim, tens toda a razão, é uma fotografia que é meu nascimento, que foi em um hospital, e a minha mãe morre em um hospital. Então é como se aquela fotografia fosse uma espécie de uma cápsula do início e do fim. E pra mim continua a ser um momento muito comovente pessoalmente. É como se de repente nós percebamos que está a ser um filme acerca das mães, e da relação com as mães, e da relação com a morte e com a ida delas. Sendo que até ali houve uma certa celebração da vida. Então acho que é um momento que acaba por ser fundamental.

Eu fiquei com curiosidade para saber qual era a outra transição que você tinha pensado na montagem.

Ah, era péssima! (risos) Estou brincando. Meu irmão faz o Jacinto mais velho. Temos o menino mais pequeninho a fazer o Jacinto que é o meu primo, o Manuel, depois temos o meu irmão, e a passagem seria do meu irmão para mim. E eu nunca teria aquela imagem da minha mãe, o que seria uma enorme tragédia agora que penso nisso, porque aquele é um momento em que nós vemos realmente o nascimento de alguém e que pensamos em todas essas questões que existem na maternidade, nas expectativas que há na ideia de ver alguém crescer, e no caso da minha mãe isso foi lhe tirado pela sua morte muito prematura, aos 49 anos, portanto era muito importante que aquela fotografia estivesse ali.

Nós conseguimos ver nas imagens e nos sons do filme uma marca muito pessoal, artesanal. Por isso queria pensar também no espaço que ele ocupa nesse circuito de festivais de cinema que tem as suas expectativas sobre o que é o “novo”, a “revelação”. Gostaria que você dissesse como se enxerga dentro desse ecossistema institucional dos festivais, pensando que o seu filme estreou em uma nova mostra (Encounters) no Festival de Berlim deste ano voltada a “cineastas inovadores”.

Uma coisa muito extraordinária que aconteceu em A Metamorfose dos Pássaros foi que toda a produção do filme se adaptou à minha forma de trabalhar. E isso foi de uma enorme generosidade de toda a equipe com quem trabalhei. Adaptaram-se ao meu tempo; o filme demorou seis anos para ser feito, e não é por acaso. Foi o tempo que demorei nesse processo mais artesanal, como você chama com razão. E essa é minha origem, é daqui que eu venho, desse lado mais manual, vou chamar assim. Essa é a única forma que eu sei de fazer as coisas, não sei outra. (risos) Nesse sentido acho que é importante que qualquer pessoa se mantenha fiel àquilo que faz, àquilo que sabe fazer e à sua língua, à sua forma de passar as suas impressões e ideias. E nesse aspecto para mim… eu não posso ser outra coisa. Não consigo, porque não sei fazê-lo de outra forma. E isso também está muito relacionado com o próximo filme que já estou a escrever, que é um filme que não poderia deixar de ser sobre esse assunto, sobre a morte. Eu nesse aspecto sou muito pouco criativa. (risos) Mas acho que uma coisa importante é termos um assunto que nos inquieta verdadeiramente, uma coisa que nos inquieta de tal forma que nós conseguimos passar seis anos a trabalhar à volta dela sem perdermos a nossa força motivadora. Portanto o próximo filme, que nesse momento tem o nome de trabalho de Pintura Inacabada, é também sobre esse assunto, sobre o fim da vida. E já pelo título percebe-se que eu continuo a trabalhar às voltas da minha manualidade e do lugar onde vim. Mesmo se eu quisesse fazer de outra forma, penso que não conseguiria… Confiar nas minhas mãos acho que é fundamental.

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