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Nutrir o dissenso, provocar o debate: uma conversa sobre a plataforma Indeterminações

05/04/22 às 15:19 Atualizado em 06/04/22 as 11:39
Nutrir o dissenso, provocar o debate: uma conversa sobre a plataforma Indeterminações

Quando se reuniram para formular um projeto comum, a historiadora, crítica e pesquisadora Lorenna Rocha, do Recife, e o jornalista, crítico e curador Gabriel Araújo, de Belo Horizonte, pensavam em realizar um seminário que discutisse a atividade da crítica cinematográfica produzida por pessoas negras no Brasil. Com o passar do tempo, essa ideia persistiu, mas acabou acompanhada por uma expansão do escopo de atuação, agora calcado nos eixos de preservação, memória, pesquisa, publicação e formação. Nascia assim a Indeterminações – plataforma de crítica e cinema negro brasileiro, criada em 2021.

Nos próximos meses, a Indeterminações trará a público três iniciativas complementares. Para começar, nos dias 28 de abril, 5, 12 e 19 de maio, nas noites de quinta-feira, acontece a primeira edição do seminário Práticas Críticas do Pensamento Negro, projeto que é patrocinado pelo BDMG Cultural e tem apoio cultural do Goethe-Institut São Paulo e da Embaixada de Belo Horizonte nos Estados Unidos. Serão quatro debates online e gratuitos transmitidos ao vivo pelo YouTube. No centro das discussões estarão temas como a metodologia da crítica cinematográfica, a história e historiografia do cinema negro e brasileiro e o impacto no presente de marcos históricos como o Dogma Feijoada e o Manifesto do Recife.

Em um segundo momento, até a primeira semana de junho, serão publicados 12 textos inéditos escritos especialmente para a plataforma. Os autores são, além de Lorenna e Gabriel, os críticos: Adilson Marcelino, Ana Júlia Silvino, Bernardo Oliveira, Fabio Rodrigues Filho, Felipe André Silva, Heitor Augusto, Juliano Gomes, Letícia Bispo, Manu Zilveti e Mariana Queen Nwabasili. Cada um deles recebeu três perguntas que guiaram seus ensaios: de que modo se deu a sua formação enquanto crítico?; de que modo essa formação se relaciona com o cinema, seja o cinema brasileiro ou o cinema negro em específico?; e qual é o seu projeto de crítica?

Por último, virão a público os resultados do Mapeamento do Corpo Crítico Cinematográfico Negro Brasileiro, pesquisa iniciada em dezembro de 2021 que tem como objetivo localizar, quantificar e produzir uma cartografia do cenário crítico brasileiro a partir das corporeidades negras. Até o início de abril o levantamento já havia identificado 40 profissionais, e o formulário disponível no site indeterminacoes.com segue aberto para novas contribuições. Podem respondê-lo tanto pessoas que estão iniciando na crítica cinematográfica quanto aquelas que já possuem uma trajetória na área.

Em conversa com o Cine Festivais, Gabriel Araújo e Lorenna Rocha falaram sobre a gênese da plataforma, comentaram seus desejos e expectativas para o futuro da Indeterminações e defenderam um ambiente de debate em que a discordância e a provocação intelectual encontrem um lugar possível.

Adriano Garrett: A pesquisadora Janaína Oliveira publicou em 2016 um artigo chamado Kbela e Cinzas, o cinema negro no feminino, no qual apontava o cinema negro brasileiro como um “projeto em construção”. Em 2018, quando foi chamada a republicar esse artigo no catálogo do FestCurtasBH, ela já identifica o cinema negro no Brasil como um “movimento”. Durante esse momento de transição bem recente, vocês estudavam em universidades públicas e estavam começando a atuar no campo cinematográfico na crítica e em atividades correlatas, então gostaria de saber como essa transformação foi percebida ao longo de suas trajetórias e se vocês identificam algum marco pessoal nesse caminho?

Gabriel Araújo: Eu entrei na faculdade em 2015, paralelamente a essa emergência dos cinemas negros brasileiros, que talvez a gente possa dizer que começou por volta de 2013/2014, com muitos filmes realizados por cineastas negros e negras, principalmente nos curtas-metragens. Sou formado em Comunicação Social pela UFMG e também fiz uma formação complementar em Cinema por lá. Antes de entrar na graduação, o cinema era um entretenimento que estava ali e eu aqui. Eu não me via no cinema; e falo isso pensando não só sobre possibilidades, mas em uma questão de vontade mesmo. Por não existir possibilidade, não havia um engajamento necessário para estar lá, para compor aquele campo de alguma forma. Então o primeiro marco para mim foi na faculdade, quando comecei a estudar cinema e a ter contato com cineastas mineiros e brasileiros de uma maneira um pouco mais recorrente. Isso se dá na crítica – por meio, por exemplo, do Fale de Cinema, que era um “coletivo democrático de cinema” do pessoal da faculdade de Letras – e também na pesquisa, com projetos nascidos a partir das disciplinas da universidade.

No meio desse percurso eu diria que existe um segundo marco, um estalo para pensar o cinema negro brasileiro, que se deu justamente por meio de um filme, Pitanga, dirigido pela Camila Pitanga e pelo Beto Brant. Fui à Mostra de Tiradentes de 2017 com uma amiga – Amanda Lira, parceira de diversos projetos no início dessa trajetória no cinema – e a gente conheceu Camila e Antonio Pitanga nesse rolê. Eu lembro de dizer para o Antonio que eu nunca tinha visto algum filme dele, e ele, todo fofo e educado, falou que eu era jovem e tinha muito tempo pela frente e muita coisa para fazer. Acabou que no festival não conseguimos pegar a sessão do filme, mas em um segundo momento, quando Pitanga estreou em um cinema de Belo Horizonte, a gente se encontrou sentado numa sala vazia com Antonio Pitanga e seus vários e vários personagens ali na tela. Aquele corpo negro “errante”, “malandro”, “galanteador”, e toda aquela relação que ele mantinha com os personagens da sua própria vida… Foi aí que se deu esse estalo, e acho importante demarcar que isso ocorreu por meio de um ator, e não de um cineasta. Por meio do Antonio eu comecei a me interessar por esse tema, a pesquisar mais sobre isso e também a me engajar nesse processo.

E complementando essa fala da Janaina Oliveira, do “projeto em construção” em 2016, do “movimento” em 2018, eu acho que agora a gente pode tentar ousar ainda mais para pensar um movimento ou um campo em disputa. Pensar justamente essas pluralidades e valorizar as contradições dentro do cinema negro brasileiro, e a partir daí refletir sobre o que a gente pode fazer daqui pra frente.

Lorenna Rocha: Entrei na universidade também em 2015, no curso de História da UFPE, e a minha trajetória está muito entranhada com o teatro. Acho esse dado super importante porque ele molda as coisas sobre as quais eu tenho refletido. Pensando em retrospectiva, a minha inserção no teatro já veio alimentada por uma discussão muito forte sobre os teatros negros, porque dentro do Quarta Parede, site no qual trabalho até hoje, a minha referência de crítico é Bruno Siqueira, que tem uma larga pesquisa sobre teatro negro, só que parecia que eu não conseguia fazer uma relação disso com o cinema. É uma parada até estranha de se perceber, que bate com essa sensação de distância que o Gabriel citou. Comecei a publicar críticas de cinema em 2018, quando fiz o Janela Crítica [oficina de crítica cinematográfica do festival Janela Internacional de Cinema do Recife], e o que era uma parada muito distante passou a ser muito motivador do ponto de vista do processo de escrita, algo que eu também estava descobrindo no teatro.

Acho que a questão dos cinemas negros só foi aparecer realmente em dois momentos. Primeiro, quando eu participei do Talent Press Rio [programa da Berlinale voltado a jovens críticos de cinema falantes da língua portuguesa], em 2019. Foi quando eu saí da esfera local, do tipo de discussão que existia aqui em Recife, e fui para um lugar [Rio de Janeiro] que trazia nas discussões uma pegada mais nacional do que aquilo que eu estava vivendo. E em seguida, quando fui para a Mostra de Tiradentes, em 2020. Ali fui entender o que era um festival de cinema em suas múltiplas conjunturas, porque apesar de ter participado por dois anos do Janela, um no Janela Crítica e outro como imprensa, vejo ali um lugar de conforto, por ocorrer em um cinema que eu conheço e trazer uma dinâmica de cidade que me é muito próxima.

Quando vou pro Talent e pra Tiradentes estou meio que sozinha no mundo, recebendo muita informação, conhecendo pessoas, observando os lugares e me questionando sobre tudo aquilo. Lembro que antes de ir pra lá eu comecei a assistir a vários filmes do cinema negro. Assisti a Kbela (Yasmin Thayná, 2015), Pele Suja Minha Carne (Bruno Ribeiro, 2016), Cores e Botas (Juliana Vicente, 2010)… Assisti a Alma no Olho (Zózimo Bulbul, 1973) pela primeira vez. E ali eu comecei a ler coisas também, inclusive foi nessa época que cheguei a esse artigo que você mencionou da Janaína Oliveira. Então Tiradentes tem importância para mim, não Tiradentes em si enquanto evento, mas esse movimento de sair do meu lugar. Tinha começado a contribuir com o Sessão Aberta em 2019, construí essa interlocução com Bruno Galindo, que já estava muito empenhado em pensar cinema negro, então a ida para Tiradentes já trazia essa proposta de intervenção e diálogo. E daí em diante as coisas foram se movimentando enquanto leitura, proposição e posicionamento.

Adriano: Nessa última fala, Lorenna, você citou alguns curtas-metragens brasileiros dirigidos por pessoas negras, e a gente sabe que historicamente há uma lacuna grande na recepção crítica e na construção de uma historiografia a respeito dos curtas. E aí trazendo uma palavra que você já utilizou, “posicionamento”, pensei na proposta da mesa de abertura do seminário Práticas Críticas do Pensamento Negro, que quer refletir sobre o próprio exercício da crítica. Então queria saber de vocês como que voltar o olhar para filmes não-hegemônicos, aqui pensando nos curtas com esse recorte do cinema negro, pode produzir novos desafios metodológicos e ser também um tipo de posicionamento diante do campo cinematográfico?

Lorenna: Essa aproximação com os curtas foi quase que uma imposição em um primeiro momento, porque era o que havia ali de repertório possível para ser acessado. Acho que quando a gente traz os termos “método” e “meta-investigação” isso tem um pouco a ver com pensar para onde a gente está olhando (e aí entram os curtas-metragens), mas também tem a camada do posicionamento com relação à crítica do ponto de vista prático, porque uma das perguntas centrais para nós sempre foi: “como é que a gente mantém esse trabalho (que muitas vezes não é considerado como um trabalho)?” Pensar na crítica não como legitimação, porque legitimação é promover hegemonias, mas dentro de um cenário em que os filmes se perdem a qualquer momento, em que os curtas-metragens ainda são pouco valorizados, em que as produções pretas são pouco valorizadas de uma maneira geral dentro de um circuito maior. A gente tem poucas criticas desses trabalhos e poucos criticos que realmente consigam ter uma continuidade em sua atuação.

Quando a gente diz que vai fazer um mapeamento para tentar localizar as pessoas, não é para dizer que “essas são as vozes representativas”. É sobre a gente entender que corpo é esse, na tentativa de se agrupar, criar procedimentos para que haja continuidade no nosso trabalho, na nossa investigação, no nosso processo de escrita. Quantos de nós já pararam de escrever devido a questões financeiras, já que a crítica, na maioria das vezes, não é uma atividade remunerada? E isso pras pessoas pretas se impõe de uma maneira um pouco mais forte.

Gabriel: Acho importantíssimo esse lugar do trabalho. É uma coisa que me frustra muito, porque não é simples conciliar um trabalho crítico – que demanda complexidade e tempo – com outras atividades que nos permitam sobreviver, pagar as contas no final do mês. Mas eu queria fazer um complemento indo para uma direção mais teórica. Estava até lembrando de um texto da Danddara sobre Cinema de Preto, curta-metragem que ela dirigiu em 2004. Nele está escrito que “fazer cinema de preto é fazer um cinema do possível e do necessário, do realizador visionário, do exibidor viajante, das plateias em formação, malgrada a lógica monopolista dos multiplexes. É cinema multiformatos multiassuntos, multimeios”. Então eu acho que para lidar com esse cinema “multiformatos, multiassuntos, multimeios” que nos é apresentado nós precisamos deslocar um pouco o modo como pensamos a crítica de cinema. Por isso que eu acredito que não é apenas trocar os corpos, porque um corpo negro não está pressuposto a fazer um pensamento totalmente decolonial ou totalmente disruptivo. É literalmente mudar o olhar, e esse é o grande desafio.

Quando a gente cria uma mesa chamada “Crítica negra como método”, queremos justamente investigar essa possibilidade. De que modo a gente muda o olhar? De que modo a gente pensa as influências e as referências afrobrasileiras/negras/ameríndias como uma lupa que nos ajude a investigar certas coisas? De que maneira a gente racializa uma obra sem necessariamente apontar o que é uma boa ou uma má representação? Acho que são todas essas complexidades que nos mobilizam de alguma forma quando estamos escrevendo, planejando, criando esses projetos.

Adriano: Na descrição desta mesa que você citou está escrito: “Como fazer da crítica negra um exercício de não-dispersão, uma vez que a continuidade da escrita crítica possibilitaria a criação de memórias sobre as produções negras e a reformulação das disputas políticas que estão imbricadas ao campo artístico brasileiro?” Queria ouvir um pouco mais sobre essa ideia de não-dispersão. Como ela perpassa a trajetória de vocês nesse campo da crítica expandida (textos escritos, podcasts, entrevistas, pesquisas, curadorias, entre outras formas de atuação) e faz parte da gênese do Indeterminações?

Gabriel: A gente trazer essa palavra tem a ver com uma fala da Grace Passô durante a Mostra de Tiradentes de 2021 na qual ela disse que talvez o maior exercício de criatividade durante uma produção artística seja o de criar estratégias para que não nos dispersemos. O mundo pede a nossa dispersão a todo momento e de todas as maneiras: vida pessoal, vida coletiva, vida social, Bolsonaro no poder.. Principalmente nesses dois últimos anos de pandemia, manter uma certa dose de concentração e de produção crítica, teórica e de pensamento foi uma coisa complicada. Por isso que a gente valoriza muito essa dimensão do trabalho, pra não falar que a crítica sai de uma hora pra outra; ela exige tempo, estudo, a concentração necessária para que isso aconteça ali.

E quando a gente pensa em corpos negros, eu acho que essa dispersão também acontece de outras formas, a partir das “n” maneiras com que o racismo aflige corpos e corpas negras no cotidiano brasileiro, seja de forma subjetiva ou imaterial – pensando em violências simbólicas -, seja nessas violências mais efetivas, quando a gente pensa em morte, assassinato, genocídio. Então acho que ainda existe, para além de tudo o que tínhamos comentado antes, uma estratégia para que a gente continue produzindo frente a tudo isso. Porque o fazer critico também é um fazer artístico, acho que ressaltar isso é importante.

Lorenna: Queria falar sobre essa noção de crítica expandida que você trouxe. É algo que a gente não tinha pensado nesses termos, mas que, ouvindo agora, acho que nos abraça. Nossa produção textual sempre veio acompanhada de outras coisas: o podcast, as lives, as entrevistas… Isso me bateu muito forte na entrevista com o Bruno Ribeiro para o Cine Festivais, porque ali foi uma parada de construção conjunta de um pensamento sobre Manhã de Domingo. Acho importante saber que a realização do pensamento crítico pode se dar de várias maneiras, e que isso também pode tirar um pouco a hierarquia entre a pessoa que escreve e o público leitor, ou entre a pessoa que escreve e as artistas. É de interesse nosso construir uma parada que seja mais em conjunto.

A outra questão que tangencia isso é a ideia de plataforma. O Diego Araúja, cofundador da Àràká, disse em uma live que “plataforma” é uma coisa na qual você pousa e depois vai embora, mas aquilo que você teve nesse espaço também vai com você. Acho que é muito isso o que a gente está tentando construir. Porque para fazer um incentivo à critica num lugar expandido a gente também precisa atuar de várias outras formas. Essa é uma discussão que tenho sempre com o Gabriel, se a gente bota ou não nossos textos críticos no Indeterminações. Estou agora em um hiato depois de deixar a Revista Cinética, colaborei recentemente com o Cine Festivais, mas também tenho a vontade de fazer um espaço meu. E aí por enquanto isso não tem lugar no Indeterminações, porque a gente não pretende ir só para esse lugar do texto escrito; queremos sobretudo lançar discussões de maneira pública e acessível.

Em um texto da Letícia Bispo que vai sair pelo Indeterminações ela conta sobre o engajamento da Verberenas em tentar tornar mais acessíveis as discussões que estão nos textos da revista. Isso é uma coisa que temos tentado fazer no Instagram, trazendo trechos de filmes e textos como um processo de partilha e uma comunicação direta com um público que não necessariamente vai abrir o site para ler o texto, mas que pode ficar contaminado com alguma coisa.

E falando sobre a gênese do Indeterminações, ele nasceu como um seminário. Passamos muito tempo com essa ideia, mandamos e-mails para várias instituições privadas buscando financiamento e quase ninguém respondia. Os primeiros contatos externos que fizemos foram com o Nicho 54 e com o Goethe-Institut São Paulo. O Goethe abraçou a gente de imediato, a Débora Pill [coordenadora de programação cultural] gostou muito da ideia. E com o Nicho tivemos uma conversa com Fernanda Lomba e Heitor Augusto que foi uma virada de chave, do tipo “acho que a parada que vocês estão fazendo é um pouco maior”. E aí surgiram todas as ramificações, o mapeamento do corpo crítico negro, a publicação de textos inéditos.

Adriano: Poderiam falar um pouco mais dessas publicações? Como foram definidos os recortes dos textos?

Gabriel: Pensando justamente nesse ritmo de plataforma, que vai e volta, a gente preparou uma série de ações para o primeiro semestre. Começamos agora com o seminário, que vai de 28 de abril até 19 de maio, sempre às quintas-feiras, totalizando quatro mesas. Logo depois a gente está planejando um primeiro momento para a publicação desses textos e um segundo momento para divulgarmos o resultado do Mapeamento do Corpo Crítico Cinematográfico Negro Brasileiro. Falando especificamente sobre os textos, foi uma vontade também muito inspirada pela ideia de livro de artista. São três perguntas fundamentais que a gente fez para essas pessoas: 1 – de que modo se deu a sua formação enquanto crítico?; 2 – de que modo essa formação se relaciona com o cinema, seja o cinema brasileiro ou o cinema negro em específico?; e 3 – qual é o seu projeto de crítica? A partir disso a gente gostaria de refletir justamente sobre diversos caminhos possíveis, já que ninguém nos dá os caminhos, né? Não existe uma faculdade de crítica ou um manual para quem quer seguir a atividade crítica. E esses textos que vamos publicar também não apontam para um manual, mas eles compartilham experiências e fazem com que conheçamos um pouquinho da subjetividade dessas pessoas para além do pensamento teórico.

Para isso convidamos 10 pessoas, o que totaliza 12 textos, porque Lorenna e eu também vamos escrever. A gente fez esse convite pensando numa diversidade tanto de gênero quanto de região, mas sobretudo buscando intercalar gerações. Pegar, por exemplo, o Adilson Marcelino, que é um crítico super engajado e que já trabalha há muito tempo aqui em Belo Horizonte, o Heitor Augusto, o Juliano Gomes e o Bernardo Oliveira, que também são referências na área, e colocá-los em diálogo com pessoas que estão articulando pensamentos e projetos críticos mais recentemente, como Ana Júlia Silvino, Manu Zilveti, Fabio Rodrigues Filho, para justamente compor um panorama. E que dentro disso também estejam abarcadas diferenças, contradições e discordâncias.

Adriano: Até pouco tempo atrás havia uma resistência grande à autodeclaração de cineastas com filmes inscritos em festivais, sendo que até hoje há quem zombe desse campo nas fichas de inscrição. Se a gente não tem dados, é como se aquele problema não existisse, não pudesse ser trazido ao debate público. E quando esses dados existem é possível complexificar essa discussão, ir para outros lugares. Digo isso para tratar do mapeamento do corpo crítico negro. Como vocês colocaram, me parece que ele deseja ir além da ideia de “ponto de partida” e pretende dar a ver complexidades e tensões, inclusive a partir dos dissensos presentes nos próprios artigos que serão publicados na plataforma…

Gabriel: Um projeto que nos inspirou bastante pensando no mapeamento foi o Negritude Infinita, com a sua pesquisa sobre festivais de cinema negro, e posteriormente o Arquivo Presença, da Casamata. Numa de suas divulgações eles falam que um mapeamento nunca será completo, por uma série de razões, e que por conta disso todo resultado é uma especulação. Gosto muito dessa construção argumentativa, porque a gente não pretende esgotar nada. Embora a existência de 40 pessoas negras atuantes na crítica de cinema no Brasil – número que temos até agora, com o formulário ainda aberto – já tenha um certo valor estatístico, a gente sabe que ele não representa a realidade como um todo, mas representa algo.

Nós temos uma noção mais expandida de cinema negro. A própria Tatiana Carvalho Costa, quando está pensando na ideia de QuilomboCinema, fala como o cinema negro está para além dos cineastas que estão produzindo filmes; ele compreende também essa gama de pesquisadores, críticos, curadores… Mas quantas pesquisas ou quantas iniciativas estão voltadas para esses outros elos desse QuilomboCinema que não são cineastas? Eu acho que esse é um ponto de partida interessante. Olhar para esse pensamento crítico, catalogá-lo, mostrar que ele existe e o que ele está fazendo também é um ponto de partida pra gente dar um estalo nessa própria rede, que, como a gente está sempre falando, é uma rede plural e diversa, inclusive em suas opiniões, porque a contradição é sempre boa.

Por isso que nas perguntas do mapeamento, além daquelas mais diretas, a gente também tem uma série de questões subjetivas para entender mais sobre essas pessoas na individualidade. Quem são elas? De onde elas vêm? De que modo se deu a formação dessas pessoas? O que possibilitou que esse corpo crítico exista hoje? São questões que a gente não quer responder, mas que a gente gostaria de esbarrar. E mesmo ainda em andamento, o mapeamento já se mostrou surpreendente só pelo número de respostas recebidas, sendo que não conhecíamos grande parte dessas pessoas. E acho que isso vai se expandir quando esses dados forem analisados em conjunto a ponto de pensarmos quais interpretações podem ser tiradas a partir dali. Sempre sabendo que sim, existem lacunas, e que sim, esse mapeamento nunca será completo.

Lorenna: Nesses últimos dias a gente estava pensando sobre uma pesquisa do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa – UERJ) sobre raça e gênero em filmes brasileiros de grande público. Esse levantamento olha para o cinema comercial das últimas décadas e constata ali uma ausência de diretoras negras, e acho que até hoje ele é reproduzido de maneira um pouco problemática, porque isso meio que abafou a produção das mulheres negras curta-metragistas. E aí, dentro desse complexo de coisas, a mostra Diretoras Negras no Cinema Brasileiro (2017), que foi organizada pela Kênia Freitas e pelo Paulo Ricardo de Almeida, aparece quase como uma intervenção dentro do campo para dizer: “ó, tem mulheres dirigindo aqui!”. Claro que dentro do cenário brasileiro essa pesquisa do Gemaa foi muito importante, mas a forma como esse diagnóstico é repassado também produz um problema. E aí também acho que isso está associado, retomando o começo da nossa conversa, a essa hierarquia entre curta-metragem e longa-metragem, circuito independente e circuito comercial.

Estou dizendo isso pra pensar no Mapeamento do Corpo Crítico Cinematográfico Negro Brasileiro e no nosso desejo de entregar esse diagnóstico acompanhado de complementações, sobretudo de ordem econômica e social. O mapeamento não vai se findar quando a gente fizer essa primeira publicização, inclusive porque nossa ideia é deixar o formulário aberto permanentemente e ir atualizando essa pesquisa. Então eu acho que o mais importante disso tudo, para além do diagnóstico, é a gente realmente construir possibilidades de fomento dessa atividade e reivindicar para si esse lugar da crítica não mais como algo judicioso. Isso não interessa, ao menos ao Indeterminações. A gente quer produzir relação e encontros. Temos inclusive o desejo de realizar um fórum mais para frente.

Queremos estimular cada vez mais uma elaboração de discussões críticas, estéticas, poéticas, políticas para o cinema negro. Por que não é só o que vem do espaço acadêmico que é uma ferramenta para a gente pensar o cinema negro. O lugar da crítica é uma possibilidade. Esta entrevista é uma possibilidade. Outras entrevistas são possibilidades. O conjunto de cartas que Juliano Gomes publicou, Bruno Galindo publicou, eu publiquei, é pensar cinema brasileiro e negro, sabe? Isso é estimular o debate público, tornar também o debate acessível e tornar a crítica esse lugar possível de investigação, que talvez nos tenha sido negado por muito tempo. A gente está reivindicando esse lugar, que não precisa de forma alguma ser textocêntrico.

Adriano: Pensando nessa noção de crítica expandida, vejo que a curadoria tem se tornado nos últimos anos um dos caminhos possíveis para esses profissionais. Dos 12 nomes que escreveram artigos que serão publicados no site do Indeterminações, pelos menos dois terços têm uma atuação como curadores, fazendo parte de equipes de festivais ou propondo mostras individuais. E aí gostaria de citar dois textos que refletem sobre isso, o primeiro deles o “Reivindicando os estudos de filme e mídia pretos”, de Racquel J. Gates e Michael Boyce Gillespie, em que consta o seguinte trecho: “Os filmes pretos prosperam em arenas outras que não o multiplex padrão. O que pode significar dar tanta atenção a esse contexto quanto ao burburinho industrial/comercial?” Logo depois, são listadas iniciativas de curadores e curadoras dos EUA que programaram uma série de eventos em 2018. Já no contexto brasileiro, Juliano Gomes defendeu em artigo recente para o livro “Cinema Brasileiro em Resposta ao País (2015-2021)” uma necessidade de “se repensar a inflação desmedida das figuras responsáveis pela curadoria”, e propôs “um deslocamento da energia para os filmes, para as relações entre eles”. Como vocês enxergam essa questão e como ela pode impactar o pensamento sobre crítica nos tempos atuais proposto pelo Indeterminações?

Lorenna: Acho esse texto de Juliano muito provocador. Os textos dele, de Francis (Francis Vogner dos Reis) e de Felipe (Felipe André Silva) trazem questões sobre curadoria, autoria, individualização, relação com as questões de identidade – que sabemos que estão postas agora a muito custo. Acho que falar sobre autoridade e autoria é também buscar outras formas de se posicionar dentro disso que a gente chama de campo do cinema brasileiro e de campo do cinema negro brasileiro. E claro, sempre em convergência, sempre se tocando, sempre se contradizendo, sempre em tensão. Como você falou, as pessoas até hoje ainda tiram onda porque tem lá a marcação racial e de gênero dentro de um formulário. Então essa tensão é real, porque o projeto racista existe, isso é incontornável também.

Mas eu dei essa volta toda porque por muito tempo “coletividade” foi sinônimo de “homogeneidade”. E agora acho que, numa outra camada, essa coletividade virou sinônimo de “apaziguamento”, e eu acho perigoso a gente achar que o coletivo é o que está apaziguado. Quando a gente olha para esse cenário e propõe o projeto do Indeterminações, isso é uma tentativa de criar outras possibilidades, de intervir nesse lugar. Tanto o lugar de autoria como o lugar da curadoria partem de uma centralização histórica de poder, sobretudo na curadoria desses últimos anos, que passa por um processo de legitimação, porque antes o trabalho do curador não era esse que a gente entende hoje, tanto que algumas pessoas falam sobre essa tensão entre “curadoria” e “programação”.

O texto do Francis tem uma crítica à mostra Cinema Brasileiro, Anos 2010: 10 Olhares. Ele questiona a proposta de curadorias individuais. Por que essa centralização? Por que não reunir aquele grupo de pessoas para pensar esses últimos 10 anos do cinema brasileiro? Isso faz parte de uma tendência. E quando falamos que o Indeterminações não é sobre mim e o Gabriel, é claro que entendemos que existe uma tendência capitalista de nos colocar nesse lugar da representatividade, que eu acho que individualiza muito as coisas. “Você me representa”, então você é esse espelho, essa referência, e acaba centralizando tanto o poder quanto a forma como os debates circulam, as possibilidades de agrupamento…

No teatro negro a questão da autoria não é tão centralizada na direção. Existe uma coisa muito mais aberta, um leque de possibilidades para dialogar e considerar os teatros negros, por talvez se atentar para a forma como a criação se dá, porque ela é agenciada por várias forças. Esse lugar da curadoria, nesse sentido, é um projeto muito contraditório. Ao mesmo tempo que dá força, porque algumas pessoas foram ganhando nome e projeção nesse cenário, parece que vira a única referência que a gente pode ter. Isso também faz com que a gente não consiga olhar para outras direções. O perigo é acabar ofuscando outras atuações e outras formas de mirada e posicionamento dentro desse campo.

Gabriel: O cinema negro assume para si esse lugar de contra-hegemonia, mas ao mesmo tempo reproduz uma série de contradições. Ele assume um caráter coletivo, mas a gente também consegue enxergar figuras individuais com projeção e poderes de forma muito nítida nesse movimento. E isso não é uma crítica de forma nenhuma nem ao campo nem a essas figuras, mas é pensar de que maneira que a gente consegue ser efetivamente contrário a certas lógicas de uma indústria cultural quando também existem pessoas que desejam alcançar e reproduzir isso. É justamente esse pensamento do Gillespie e da Gates que você comentou. Muita gente está ali nesse front de batalha, mas também há muita gente que gostaria de produzir um Pantera Negra da vida. Como é possível lidar com essa complexidade não sendo ingênuo a ponto de romantizar essa experiência negra da irmandade, da coletividade, do apaziguamento, como Lorenna disse, mas também apostando nessas contradições inclusive fundantes: de que cinema que a gente está falando? Quais histórias estão sendo contadas? Quais pessoas estão escrevendo essas histórias? Como é que isso se relaciona com o campo cinematográfico?

Me lembro de Paulo Emílio Sales Gomes em “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, que demarca muito bem esse posicionamento do cinema brasileiro frente a um cinema hollywoodiano ou estrangeiro, mas isso tudo também está mudando à medida que a Netflix começa a olhar para cá e passa a apostar em cineastas muitas vezes sob essa lógica neoliberal da representação. Começa a apostar em carreiras que reproduzem a mesma lógica de um certo cinema já posto, mas coloca ali um pretinho e uma pretinha para criar dinâmicas falsas de representação.

E como que a gente pensa na complexidade das pessoas que nesse meio, seja aderindo ou contrapondo-se a esse discurso? Daí que talvez venha uma função da crítica e da curadoria de balançar um pouco essas estruturas. Tentar conciliar filmes comerciais com filmes independentes e tentar pensar pontes ou rupturas entre esses dois mundos. Digo isso pensando muito na minha experiência. Eu demoro muito tempo para me definir enquanto crítico justamente por não articular uma certa e constante produção crítica da forma convencional, digamos assim. Porque a gente pensa na crítica muito pelo lado do texto, mas existe toda uma outra crítica que acaba que a gente faz cotidianamente e que muitas vezes não é valorizada ou sequer nomeada. Já com a figura do curador eu me identifico mais facilmente, pensando na experiência do Cineclube Mocambo e em outras experiências de seleção e programação de filmes.

Uma coisa que eu acho que deveria ser pressuposto, mesmo em curadorias individuais, é a aposta no coletivo. É tentar sair um pouco do lugar comum e conversar com outras pessoas. Obviamente isso é mais fácil de fazer em curadorias coletivas, porque existe a conversa, o debate, a troca, mas sair do lugar comum deveria ser pressuposto em todas essas situações, justamente para tentar evitar essa individualização forçada que Juliano está comentando no texto dele. E o que eu acho um pouquinho mais complexo ainda é essa personificação de filmes na figura de curadores ou de críticos específicos que levantam essas bandeiras. Por isso temos que continuar conversando e apontando possíveis contradições nessas relações, justamente para que essa conversa avance.

Lorenna: Uma coisa importante de falar é que hoje virou hype ser curador, sabe? É um exercício massa, eu tô entrando nisso agora e tem sido muito bom descobrir esse mundo. Estou trabalhando agora no Janela de Cinema, tive uma experiência ótima no FestCurtasBH… Mas pensando de maneira geral, e não apenas na minha trajetória, me parece “muito mais interessante” ser curador do que ser crítico. Assim, de longe. Muito mais atrativo. E isso tem a ver também com o lugar da exposição. Não é que seja confortável você programar, nunca vai ser. Você não sabe como é que uma sessão vai bater, como é que se media a conversa, são muitas coisas envolvidas. E o próprio ofício está longe do ideal do ponto de vista das condições de trabalho. Mas eu acho que já se tornou também uma parada muito hype, por isso que individualiza, né?

Gabriel: Até porque não necessariamente as discussões das curadorias vão a público. Enquanto que na crítica se dá justamente o contrário; nela você está expondo pro mundo uma opinião, um argumento, uma conversa.

Lorenna: Justamente isso. E tem alguma nuance de proteção nisso tudo, que é compreensível dentro dessas corporeidades que a gente está falando aqui, pretas e não-brancas. Mas chega a ser quase perigoso se a gente mantém nesse lugar, porque também vira uma parada de concentração que no fundo é uma prática colonial.

Adriano: Pra gente fechar nossa conversa queria ouvir de vocês sobre o futuro do Indeterminações. Esse primeiro semestre, pelo o que vocês falaram, já está bem delineado, com o seminário, as publicações, o mapeamento, mas o que vocês pensam para além disso?

Lorenna: Um milhão de coisas (risos)

Gabriel: O que a gente pode falar que é uma vontade, e que vai acontecer em algum momento de alguma forma, é a continuidade do seminário. Ele foi planejado inicialmente com dez mesas e a gente conseguiu realizar quatro agora com esse aporte que a gente ganhou do BDMG Cultural e do Goethe-Institut São Paulo, então ainda há pelo menos outras seis mesas para acontecerem na segunda etapa do seminário. Isso é um ponto. Os outros são vontades de explorar as possibilidades dessa plataforma. Buscar parcerias com outros coletivos, não necessariamente instituições, mas com outras pessoas, outros festivais e mostras. Tudo isso está no nosso horizonte.

E queria finalizar com um convite para as pessoas participarem do seminário. Sempre ficamos incomodados quando tem algum debate transmitido no Youtube e no espaço do chat só vão subindo os coraçõeszinhos e ninguém manda nenhuma pergunta ou comentário. Então nosso convite é pra vocês se engajarem nessas discussões. Porque não é uma coisa daqui para cá, a gente está efetivamente apostando em formas de tornar isso o mais dialógico possível.

Lorenna: E não é nem sobre os corações (risos) A gente também dá nosso “biscoito” pras pessoas, mas o que talvez seja mais importante pra gente é tentar criar divergência, indeterminar. O nome Indeterminações não é sobre não ter lugar, mas sim sobre jogar com esses lugares de uma maneira que não seja pela lógica da conveniência. Também espero que todo mundo consiga encontrar um lugar possível para a discordância, para a provocação.

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