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Suspender o cotidiano, sonorizar as sensações: uma conversa com Bruno Ribeiro

04/02/22 às 14:18 Atualizado em 10/02/22 as 15:22
Suspender o cotidiano, sonorizar as sensações: uma conversa com Bruno Ribeiro

Exibido na recém-finalizada Mostra de Tiradentes, e com estreia internacional marcada para o dia 11 de fevereiro, dentro da competição de curtas-metragens do 72º Festival de Berlim, Manhã de Domingo tem como protagonista a pianista Gabriela (Raquel Paixão), que está se preparando para um concerto importante. Ao ter um sonho com sua mãe, a personagem passa a se confrontar com sentimentos que por vezes só são compartilhados através de sua música. O filme aposta na experiência sonora e na performatividade de recitais de piano para desenrolar sua narrativa. 

“Para nós, esse era um filme que se passava num terreno híbrido entre sonho e realidade. Nós queríamos trazer uma coisa comum, a partir da nossa vivência com a experiência onírica, que é essa percepção forte de realidade [durante os sonhos], ao ponto de a gente começar a duvidar se a gente está vivendo num sonho. Essa era a sensação que mais traduz o que a gente estava tentando construir”, comenta Bruno.

Egresso do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense (UFF), Bruno começou a se notabilizar no circuito de festivais brasileiros com Pele Suja Minha Carne (2016). A partir de então, realizou obras como BR3 (2018) e Gargaú (2020), exibidas e premiadas em festivais nacionais e internacionais. Para ir junto com Manhã de Domingo a Berlim, Bruno criou uma vaquinha virtual que tem o objetivo de financiar a viagem de três integrantes da equipe à capital alemã.

Na entrevista a seguir, realizada presencialmente no Rio de Janeiro, o realizador compartilha sobre seu processo de investigação e troca percepções sobre Manhã de Domingo.

Lorenna Rocha: Acho que a primeira coisa que chama atenção em Manhã de Domingo é como os sentimentos de Gabriela, pianista interpretada por Raquel Paixão, são comunicados pela sonoridade do instrumento musical. Gostaria de saber como se deu a construção dessa dinâmica sonora-sensorial ao longo do processo criativo do filme.

Bruno Ribeiro: Em um primeiro momento, existia o desejo de buscar um tipo de expressividade que não se baseasse apenas no falar. O piano tem uma expressividade que é muito particular. E não é só uma particularidade dele, mas da relação da Raquel, dessa pianista, com esse instrumento. Para além da música em si, existe uma certa performatividade na forma de tocá-lo, e no caso do filme isso é algo específico da própria pianista.  Eu sempre me recordo do primeiro recital a que assisti da Raquel. Foi algo, inclusive, que ditou muito o que o filme viria a ser depois. Era muito perceptível para mim essa expressividade particular da qual eu tô falando, tanto do instrumento quanto da Raquel. 

Outra coisa que chamava atenção era como o público assistia ao concerto e olhava para ela, se mantendo em silêncio e a partir de um certo ponto de vista fixo, sem poder se aproximar ou vê-la a partir de outros ângulos. Isso ditava muito a forma da experiência daquela apresentação musical. Conversava muito com a Tuanny (Tuanny Medeiros, corroteirista) sobre isso, ela ia comigo a esses recitais. Era muito forte para nós como a distância, a performatividade, a música, a expressividade musical, ou seja, como todos esses elementos criavam uma certa composição, uma atmosfera que era muito única e que exercia um tipo de força que a gente queria de alguma maneira trazer para o filme.

Ao longo dos ensaios fomos entendendo que, muitas vezes, canalizar essa expressividade para a fala acabava diminuindo um pouco a força que a expressividade do piano tinha. Vimos que, nesse balanço entre silêncios e o piano, a gente conseguia dar mais força para esse elemento da música, e isso era muito importante para essa composição; que o piano, quando viesse [no filme], pudesse trazer certos elementos que achávamos que o dizer não daria conta por si só.

Muito do que a gente estava querendo colocar – não necessariamente falar como um discurso, mas colocar em termos de sensações/sentimentos – a gente via que era melhor traduzido através da chave da musicalidade, dessa performatividade, e não necessariamente do que era dito. Até mesmo porque o que é dito no filme não é falado num sentido de tentar direcionar uma história, uma narrativa. A fala também está num lugar de emissão de onda sonora, assim como o piano.

Lorenna: Queria retomar isso que você mencionou sobre a frontalidade do concerto de piano. Essa coisa de estar num espaço silencioso, vendo um recital, com uma distância específica. Acredito que isso tenha sido traduzido para os planos e enquadramentos; afinal, há um afastamento estabelecido pelo filme que produz certa solidão para a personagem. E que, de certo modo, tem a ver com a forma que ela está lidando com a morte e com a ausência da figura da mãe. Ainda assim, ela parece estar sempre sendo preenchida de alguma forma, sobretudo com as coisas que não conseguimos ver, que estão fora de campo. Como você observa essa relação entre o uso do fora de campo e os sentimentos da personagem? 

Bruno: A gente pensava muito sobre essa ideia de uma presença que não se vê, mas que se sente. A primeira imagem concreta que me veio na época em que eu comecei a pensar nesse projeto era dessa pianista que tocava um instrumento e que, não sei por qual motivo, eu sabia que ela estava sendo observada. Por mais que na imagem não tivesse ninguém observando ela, eu sabia dessa presença. A partir disso, a gente foi desdobrando as cenas que vão dando sequência à trajetória da personagem dentro do filme.

Havia um sentimento forte de iminência também. Há sempre um jogo dessa iminência, porque você está vendo algo acontecendo a partir do enquadramento que o filme te dá, mas me parece que você vai entendendo que esse enquadramento não dá conta de um cenário maior que está posto ali, e que, às vezes, se apresenta primeiramente pelo som. No primeiro momento do filme, quando ouvimos as primeiras notas do piano, estamos vendo uma tela preta. A gente pensava que dessa forma poderia criar uma dúvida se o que estava ouvindo ali era uma trilha musical ou uma música diegética de alguém que está tocando… “Que corpo é esse que estaria tocando?” Muitas vezes, essa iminência e presença chegam pelo som e só depois se concretizam pela imagem. E isso parecia dialogar mais com o tipo de atmosfera e o tipo de tom que a gente enxergava para o filme. 

Por isso é tão frequente essa dinâmica do olhar para fora de quadro. Um olhar um tanto demorado… Que posteriormente revela algo que observa de volta. É uma presença que no primeiro momento está fora de quadro e que pode ser sentida de alguma forma, me parece, porque ela está muito ativa dentro da trajetória da personagem. Eu acho que isso dialoga com meu próprio sentimento de luto. Existe uma percepção em mim, que eu acho que é até bastante compartilhada por outras pessoas com quem eu conversei sobre isso, que é essa experiência de presença que não se materializa numa coisa visual, mas de outras formas. A constatação de uma presença, que não está necessariamente posta ali. 

Lorenna: Que não é tocável…

Bruno: Exatamente. E eu acho que o filme vai lidando com esse sentimento de ausência, ao mesmo tempo que essa ausência ainda deixa um lastro de presença.

Lorenna: Você estava falando sobre esse lance do tempo, dos planos mais alongados. É engraçado que, quando eu assisti a um dos cortes pela primeira vez, esse tempo demorado me causava certa angústia. Elaborar esse tempo também tem muito a ver com a montagem, né? Vi que o montador do filme foi o Vinicius Silva e gostaria muito de saber como vocês chegaram a esse resultado que estamos vendo na tela. 

Bruno: Eu acho que toda a equipe tinha uma conexão muito forte no sentido de haver uma intenção do que se desejava construir ali. Uma coisa que todo mundo compartilhava, e que depois o Vinícius veio a compartilhar também como montador, é uma certa fé nesses tempos. Porque a vontade de ter tempos mais dilatados não vinha de um lugar puramente estético, não tem muito a ver com isso. A gente entendia que havia algo a ser preservado nesses planos mais alongados que só poderia ser preservado a partir de tempos mais dilatados. Acho que isso se conecta de novo com a experiência do próprio recital, na qual você se senta numa cadeira que está posta fixamente num certo ponto daquele ambiente, de onde você vai observar toda a apresentação. 

Há uma outra questão, e era uma coisa que eu conversava muito com o Vinícius durante a montagem, sobre quando você se demora numa imagem, não necessariamente uma imagem de cinema; quando você vai observar uma pintura, por exemplo, o seu olho vaga por diferentes pontos daquele quadro, daquela imagem. A gente achava que esse vagar, dentro dos planos e das composições que a gente estava propondo, era uma coisa interessante, que contribuía para um certo sentimento de suspensão, algo que estava muito posto nas nossas conversas desde o roteiro até o momento final ali na montagem, na finalização, na edição de som. E que também tem muito a ver com a sensação de ouvir música. Quando ouço uma música com a qual eu me conecto, ela me causa certo tipo de suspensão, até num sentido de me desligar do meu corpo e de certa materialidade ali do momento, daquele espaço-tempo que eu tô habitando, e me leva a outros espaços. Esses planos dilatados no filme favoreciam esse tipo de suspensão.

Obviamente, existia uma preocupação para que isso não gerasse uma desconexão em quem está assistindo. Mas o Vinícius, a partir da sensibilidade e do olhar dele, sempre defendia muito esses planos mais longos. A gente até teve algumas tentativas de deixar as coisas um pouco mais picotadas, mais reduzidas… Apesar de termos percebido que esse movimento não fazia com que a linearidade dos eventos e a narrativa do filme se perdessem, sentimos que perdíamos justamente essas sensações e sentimentos que muitas vezes não eram tão traduzíveis. Eu tô usando palavras como “suspensão”, mas eu acho que grande parte dos sentimentos que a gente tinha em relação ao que estávamos fazendo não eram coisas tão fáceis de traduzir. Acho que isso se conecta com a questão da música, que traz elementos que  apenas o falar não dá conta mesmo.

Lorenna: Tem uma fricção interessante entre esses planos que produzem certa melancolia e o preenchimento que se dá através do som… Acho que esse jogo com as sensações também acontece com o nome do filme. Ele emite um tom meio solar, uns signos tipo “céu azul vibrante” ou “um dia alegre”. Mas o filme caminha por um clima meio gélido. Essa fricção também ocorre a partir da fotografia, né? Como foi sua troca com a Wilssa Esser (diretora de fotografia)?

Bruno: Quando entrei em contato com a Wilssa pela primeira vez, a gente não se conhecia pessoalmente. Eu já conhecia o trabalho dela, mas ela não me conhecia. Na época, eu não tinha nenhum roteiro desse projeto, mas tinha um registro da Raquel tocando. Lembro que mandei uma mensagem para ela, que era mais ou menos um parágrafo, dizendo “Wilssa, eu tô pensando nesse filme, que pra mim a pira dele é ser meio que um sonho. E a personagem é essa”. Sendo que na época que eu mandei o vídeo, a Raquel nem tinha ainda sido fechada como atriz! Mas quando eu vi o vídeo com a Tuanny, a gente meio que entendeu muito rapidamente que ela seria a atriz do filme. Acabou que mandei o vídeo para Wilssa e ela meio que topou de imediato. Eu não tinha nem falado de cachê, não tinha falado nada. Ela só viu aquilo e ela meio que entendeu alguma força que tinha naquilo. 

Quando a gente sentou para começar a pensar nessa visualidade do filme, entendemos que estávamos tentando construir uma certa rigidez visual em relação às composições desses planos e dessas cores. Em vez de tentarmos nos adequar a certas locações e pensarmos a partir delas, nosso referencial sempre foi a Raquel e sua performance no piano. Quando começamos a pensar nessas imagens, elas eram muito bem definidas, a decupagem era muito bem definida na nossa cabeça. Eu acho até que a produção foi um pouco difícil nesse sentido, porque buscar locações que dessem conta das imagens que estávamos criando na cabeça era bem complicado.  

O trabalho do Diogo Hayashi, nosso diretor de arte, também entra nessa construção. Porque, para além da fotografia, esse trabalho das cores e da composição dos espaços também se dá muito devido ao trabalho e olhar do Diogo. Inclusive, ele e a Wilssa já haviam trabalhado anteriormente, no Temporada (André Novais Oliveira, 2018) e em algumas outras realizações. Ou seja, eles já tinham uma dinâmica muito boa entre eles e era muito bom trabalhar com eles por conta disso. A gente não precisava, por exemplo, ficar conversando exaustivamente sobre as coisas. Elas vinham muito facilmente a partir do momento em que a gente estabelecia um certo lugar comum sobre as sensações do filme.

Já em relação ao nome, Manhã de Domingo, a gente partiu um pouco da ideia de suspensão. Para nós, esse era um filme que se passava num terreno híbrido entre sonho e realidade. Apesar de que um filme nunca é a realidade, ele já está deslocado, suspenso. Para além disso, nós queríamos trazer uma coisa comum, a partir da nossa vivência com a experiência onírica, que é essa percepção forte de realidade [durante os sonhos], ao ponto de a gente começar a duvidar se a gente está vivendo num sonho. Essa era a sensação que mais traduz o que a gente estava tentando construir. Por mais que nós não quiséssemos que o filme residisse nisso… Não queríamos fechar uma interpretação certa para o filme, de que o filme é um sonho, por exemplo.

Nós partimos do lugar do sonho para tentar construir Manhã de Domingo, para construir essas imagens, esses sons, essas composições. Mas, de forma alguma, a gente queria que essa fosse a resposta ou uma interpretação absoluta sobre o que o filme é. Como se as pessoas só pudessem acessar ou se relacionar com ele a partir do momento em que elas se colocam nesse ponto de vista. Porém, era interessante brincar com essa ideia… Por isso que na primeira cena a personagem traz o relato de um sonho, né? O relato é importante de certa forma para tentar criar uma tônica das sensações, mas não para dar uma interpretação do que o filme é. Acho muito legal que as pessoas possam acessar o filme a partir de uma perspectiva que não seja necessariamente essa. Até porque, dependendo da forma como você enxerga a realidade, ela pode se assemelhar muito ao sonho… Não é somente o sonho que se assemelha à realidade; a realidade cria certas suspensões que te lembram o sonho. Ela pode ser algo onírico, e não só quando você usa drogas, inclusive. Você pode estar completamente sóbrio e ter esse tipo de experiência.

Lorenna: Até mesmo com a música, né?

Bruno: Exatamente. A música, dentro da realidade, é algo que pode provocar uma sensação muito onírica… Ainda sobre o título do filme, Manhã de Domingo parte de uma certa brincadeira de pensar que esse sonho aconteceria dentro dessa temporalidade específica. Então, por mais que você veja dia e noite, claro e escuro, a partir do nome você poderia entender que está vendo uma noite que se passa dentro de uma manhã de domingo. E a questão do domingo está num outro lugar, porque eu acho que o domingo é um dia muito particular. É um certo encontro entre dois universos que parecem muito apartados, que é esse universo do descanso/do lúdico/do lazer e esse universo do cotidiano/do trabalho/das obrigações. Ele é quase um não-lugar. É meio que um dia suspenso dentro da semana. Localizar esse dia da semana nessa manhã fazia muito sentido. E sobre as cores, talvez dando uma resposta mais objetiva dentre todas as que eu dei até agora: nós não queríamos que o filme fosse facilmente localizável num lugar naturalista. A gente queria flertar com algumas estratégias de linguagem mais naturalistas, mas criar certa dissociação e suspensão através do artificialismo das cores, da encenação… Essa palavra [suspensão] sempre volta, mas era uma palavra… 

Lorenna: Importante para o processo?

Bruno: É.

Lorenna: Voltando à personagem de Raquel, percebo que a Gabriela está sempre em trânsito, acho que tanto no plano literal quanto metafísico. Gargaú também tem essa estrutura, essa coisa de ter um acontecimento específico que faz com que a personagem se desloque. Mas Manhã de Domingo tem uma fantasmagoria muito particular. Às vezes parece que a Gabriela lida com várias dela mesma… Faz sentido? Se quiser embarcar nessa viagem… 

Bruno: Acho que é uma pergunta sobre quem são essas outras pessoas que estão orbitando ali…

Lorenna: Não acho nem que seja sobre quem é, mas sobre como a composição do filme produz uma multiplicidade de presenças para a personagem, ou um duplo dela mesma. Foi algo que estava com vocês desde o início ou que foi sendo encontrado durante o processo do filme? 

Bruno: Muita coisa eu tô pensando agora, junto com você. Estou tentando entender uma coisa que ainda tá num lugar de muito desconhecimento pra mim. Acho que isso é uma coisa importante… Eu me lembrei de uma informação que acho que pode ser um bom ponto inicial, porque essa é uma pergunta difícil de responder. Algumas pessoas que assistiram ao filme e vieram falar comigo perguntavam sobre a cena da piscina, quando a Gabriela olha para o outro lado da piscina e vê alguém. Muitas pessoas me perguntavam: “é ela ali?” E aí você acabou de falar, né, a questão não é sobre se é ou não é, mas eu acho que essa pergunta de alguma forma lida exatamente com essa questão ali do duplo no sentido de que… Aliás, vou reformular aqui. 

Primeiro, existe uma questão sobre a forma como eu sinto que pessoas pretas se relacionam a partir do olhar, mesmo que se desconheçam. Acho que grande parte das pessoas negras, que já passaram por essa experiência de estar andando num certo lugar, em especial locais em que essa presença preta não está dada… E aí entra esse marcador do piano e da música clássica também, né? Mas, enfim, existe uma relação que se estabelece no olhar, que dá uma sensação de espelhamento, nesses encontros que acontecem. Existe alguma conexão que se dá entre essas pessoas através do olhar. Esse seria um ponto, um desdobramento possível de resposta. 

A outra coisa, que se relaciona à questão do luto e dessa coisa que eu estava falando sobre ausência/presença, e que pode ser até uma coisa meio freudiana, que é a relação de espelhamento com os nossos pais. Em que ponto a gente se dissocia ou se associa, não só dos nossos pais, mas de quem nos gera, de quem veio antes da gente? Obviamente, não há uma resposta para isso, mas é porque esse elemento do duplo ainda está muito mais no terreno das perguntas do que de respostas que eu possa te dar sobre isso. Nossa, Lorenna, que difícil essa pergunta… pior que eu já falei sobre isso tantas vezes com a galera da equipe, mas falar agora, por algum motivo, é difícil.

Lorenna: Então eu vou deslocar um pouco a pergunta inicial, porque tem esse lance do “quem é?”, que parece que pede a figuração de algo ou alguém, né? Isso tem a ver com a última questão que eu queria te fazer, mas eu não sei se você ainda tem mais alguma coisa pra falar sobre isso do duplo…

Bruno: Porque assim, dentro desse terreno dos sonhos, a fantasmagoria é muito presente. Essas pessoas que você vê nos sonhos, seja pessoas que você vai associar a quem você conhece na “vida real”, seja pessoas que você não consegue associar a ninguém… Elas são sempre fantasmas, né? Principalmente as que você conhece são duplos de alguém. Eu acho que é meio que sobre isso. Dentro do campo onírico, meio que todo mundo é todo mundo ao mesmo tempo, sabe?

Lorenna: E tem a ver com a personagem, porque ela está ali nessa busca pela mãe, mas me parece também haver uma busca de si mesma…

Bruno: Exatamente. O que ela está buscando, né?

Lorenna: O filme não responde isso também. Mesmo que apareça a figura da mãe, eu acho que é como tu falou, o sonho como ponto de partida e nunca como uma única chave para fazer a leitura do filme. A busca e o deslocamento dela não existem porque existiu um fim. É o trânsito que, por si, produz algo…

Bruno: Porque esse trânsito às origens é um tipo de trânsito que eu acho que tá muito colocado nesses últimos anos, dentro de um cinema feito por pessoas pretas, mas não só. E não só dentro do cinema. Entender algo que veio antes, e que muitas vezes parece que se perdeu… Essa sensação de que se precisa resgatar algo é uma coisa que realmente está muito posta. Mas isso não se dá apenas no campo da materialidade. Não é só sobre você pegar um transporte e ir para onde você nasceu ou cresceu. Às vezes, esse trânsito pode se dar em outros lugares, inclusive no lugar do sonho, na arte ou internamente. Isso no filme, talvez, não se localize tão bem. Do tipo: “mas espera aí, a partir desse dado de que poderia ser um sonho, estaria ela de fato pegando uma van indo para casa?” Acho que não interessa. Porque o que interessa é que há o trânsito. Isso talvez seja inegável. Mas a forma que ele está acontecendo, o que se busca e o que se encontra não é algo fixo. E não precisa ser mesmo, sabe?

Lorenna: Isso tem tudo a ver com a última pergunta que queria te fazer. Observando sua trajetória, parece que há dois momentos. O Pele Suja Minha Carne (2016) e BR3 (2018) têm uma relação forte com a questão do verbal, da auto enunciação e da representatividade. Mas parece haver um deslocamento no seu processo de criação… O Manhã tem alguns signos da negrura que são “inegáveis”: a Raquel é preta, o boy dela é preto, a Nina Simone tá ali, na sala dela. Mas, tanto a fantasmagoria como esse negócio de estar em trânsito, vai tornando a personagem um pouco não-representativa. Eu queria te ouvir um pouco sobre esse deslocamento: o que te motiva a sair desse registro tanto da auto enunciação e do verbal, quanto da representação/representatividade?

Bruno: Muito boa essa pergunta. Primeiro, vou falar de algo que eu acho que é comum a todos os filmes. Por mais que isso não seja sempre tão identificável, todos eles invariavelmente vão partir de alguma investigação pessoal. E, quando eu falo isso, muitas pessoas podem entender que estou querendo dizer que os filmes são autobiográficos. Na minha cabeça, nunca fiz algo que fosse autobiográfico. Nem mesmo o Gargaú localizo nesse lugar. É claro que, dentro das estratégias que são criadas com esses filmes, você vai conseguir localizar, principalmente para quem me conhece pessoalmente, certos elementos que podem estar num diálogo [comigo]; na minha presença em frente às câmeras, não só atrás, ou num certo tipo de gosto musical que se impõe pela escolha de uma música. Independentemente do que seja, você pode remeter a características que vão se conectar à minha biografia, a quem eu sou, à minha personalidade, o que for. Mas quando eu falo de investigação pessoal, eu não estou falando sobre isso. Geralmente, acho que as pessoas depositam muito, numa certa ideia de tema e narrativa, um espelhamento biográfico ou uma auto-afirmação. Do tipo: o que tá na boca do personagem ou o tema do filme é o que diz respeito ou é um dado biográfico sobre a pessoa. Por que a montagem, por que o tempo que se olha o que se olha não é tão importante, ou às vezes até mais importante, do que algo que a personagem está dizendo?

Mas, por que estou falando sobre isso? O deslocamento que acontece desses dois primeiros curtas em relação aos dois últimos, não é que nos primeiros eu estivesse mais interessado em afirmar um discurso ou algo sobre mim. O que acho que muda é que… Assim, eu vivo num certo tempo e reajo a ele. Não tenho como fazer cinema no vácuo. Ainda mais sendo uma pessoa preta que cria. Estou dialogando, de certa forma, com algumas respostas que esse contexto me dá. Mas uma coisa que sempre me incomodou dentro dessa chave de leitura, sobretudo dos meus dois primeiros trabalhos, é que ela os localiza apenas no temático e no que eles são no sentido do verbo. Sendo que acho que há outras coisas ali. 

Então, diante da minha experiência nesse tempo em que vivo, que observo e do que me retorna a partir do que eu entrego, começo a entender que não dá para esperar que o mundo vá ter, não só comigo, mas com pessoas pretas artistas, a disposição de ter um olhar mais atento e cuidadoso sobre o que nós estamos fazendo. Porque sempre haverá uma inclinação de circunscrever nossos trabalhos em certo vocabulário ou em algumas discussões que estão postas e que são externas a eles. Não que não se toquem. Tanto nós quanto os trabalhos estamos inscritos num certo tempo-espaço. Então, é óbvio que as coisas se tocam. Mas é sempre muito reducionista na minha cabeça quando você parte de um trabalho negro para afirmar um discurso político que pode estar colocado; mas que se você se demora nele, o discurso acaba centralizando tudo e o reduz; ou seja, você perde outras camadas. 

O que eu quero dizer com isso tudo é que… Há uma investigação minha em curso ao longo dos filmes, e que talvez eu precise de um distanciamento ainda maior para conseguir enxergar e dizer “nossa, eu vim daqui, tô passando…” Bom, consigo ver certas coisas que hoje me interessam menos e que estavam nos primeiros filmes e tal. Mas acho que não tem tanto a ver com uma questão temática. Eu acho que sim, há discursos nos filmes, mas eu acho que os dois primeiros acabaram sendo cooptados por uma necessidade ou por um certo discurso que os abraçou.

Lorenna: Uma imposição discursiva sobre os filmes…

Bruno: É isso. Porque, por exemplo, uma discussão sobre tempos e composições, que é uma uma discussão que a gente tá tendo agora sobre Manhã de Domingo, nunca houve sobre Pele… e BR3. Pelo menos não comigo. Alguém talvez tenha falado isso com alguém, mas nunca chegou até mim. Então esse é o ponto que eu tô colocando. O deslocamento não é só comigo mesmo, dos meus interesses. É, na verdade, um deslocamento que parte de um lugar de diálogo constante com o que eu vejo acontecendo no meu tempo-espaço.

Lorenna: E de certa forma é um deslocamento da própria crítica, né? Pensando agora na minha posição, seria confortável, talvez, falar sobre Manhã de Domingo em uma outra chave. Mas escolhemos na entrevista falar dessa posição, que não está descolada do mundo, mas que é a de pensar a partir da materialidade do trabalho. Então, acho que há um deslocamento propositivo no método de investigação dos filmes pretos. Outras formas são possíveis. Você queria acrescentar algo antes de a gente encerrar?

Bruno: Só queria dizer que gostei muito das perguntas. E sobre esse último aspecto que você disse, acho que toda essa conversa pública em relação à representatividade negra, ou de corpos não-brancos, ou de corpos LGBTQIA+; tudo que está circunscrito nesse debate de representatividade e de identidade tem sua importância. Não acho que sejam debates esgotados, como algumas pessoas podem achar. A questão é que a gente não pode se ver refém disso. No momento em que isso se torna o nosso grande referencial de análise, a gente está dando um grande tiro no pé, a gente está na verdade meio que tapando os nossos olhos.

Lorenna: Domando a criatividade também, em algum sentido.

Bruno: Sim, total. Tem uma coisa que o Juliano Gomes [crítico de cinema] estava falando no Instagram sobre a Elza Soares, chamando atenção para as análises sobre ela e sua obra, sobretudo as que começaram a ser elaboradas após o falecimento dela. Ele falava sobre análises que se contentam em localizá-la apenas como “uma mulher negra forte” e que sua música “anunciava essa força da mulher negra” e que “afirmava um certo espaço”, etc. Acho que é uma leitura extremamente reducionista e até mesmo desrespeitosa com uma obra tão múltipla como a da Elza. Acho que esse é um problema que a gente sempre enfrenta dentro desse corpo negro que produz pensamento, que produz arte. Eu sou muito crítico a isso e acho que as coisas precisam ser contra balanceadas. Os debates precisam existir sobre as diferentes facetas do que é a existência negra no mundo. Mas a partir do momento que um debate assume o lugar de destaque e começa a impedir que outros existam, isso se torna um problema.

*Este texto faz cobertura do Cine Festivais para a 25ª Mostra de Tiradentes

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