O delírio é a redenção dos aflitos, dizia o título do primeiro filme de Fellipe Fernandes, um curta-metragem lançado em 2016 na Semana da Crítica, em Cannes. Naquela trama, o acúmulo de angústias da protagonista interpretada por Nash Laila estilhaçava o real e resultava em um gesto final de extravasamento.
Já em Rio Doce – longa-metragem inaugural do cineasta que estreou no 10º Olhar de Cinema e recebeu dois prêmios (Melhor Filme da Mostra Competitiva de Longas e Melhor Longa Brasileiro) – Tiago (Okado do Canal) não extravasa ao lidar com a descoberta da identidade do pai biológico, com as dificuldades financeiras e com a tentativa de ser um bom pai para a filha pequena.
“A ideia do filme era repensar essa masculinidade. Acho que o processo de extravasar essa angústia interna sem olhar para ela é o mais comum, é o que fizeram as gerações anteriores, o que fazem algumas pessoas dessa geração, sabe? E a ideia da gente era pensar o que é o outro caminho. Como é se ele simplesmente não extravasa? Se ele não vai pra farra, se ele não bebe. E se ao invés de tudo isso ele parasse, olhasse e finalmente conversasse?”, indaga Fernandes.
Para Tiago, no lugar do título do curta de 2016, parecem fazer mais sentido os versos de Belchior em Alucinação: “A minha alucinação é suportar o dia a dia / E meu delírio é a experiência com coisas reais”.
Em conversa com o Cine Festivais, Fellipe Fernandes falou sobre algumas das questões fundamentais para o processo criativo de Rio Doce.
Adriano Garrett: Vou começar evocando uma sequência de Rio Doce: o aniversário de Tiago na casa da mãe. Tem um momento ali em que o personagem do Carlos Francisco fala: “vamos colocar uma coisa para animar?” Pouco mais para frente, outra personagem, acho que a da Dandara de Morais, diz algo parecido, que “vai botar uma música para alegrar”. Aí fiquei pensando nessas duas falas, porque pra mim o seu filme é muito tocado em tom menor, sabe? Com uma contenção que está presente tanto na maneira como ele se desenvolve quanto como característica do personagem principal. Então a primeira pergunta é relativa à construção dessa contenção no filme, e se você acha que essas falas que eu destaquei podem servir como comentário mais amplo sobre o próprio modo como o filme se constrói, visto que a partir do momento daquela festa se vislumbra alguma mudança de rumo.
Fellipe Fernandes: Eu nunca tinha pensado a relação dessas falas com o todo do filme, mas acho que faz sentido isso que você levanta. A gente sempre pensou o filme nesse ritmo, nessa contenção. O nosso grande desafio, o que mais interessava a gente nesse processo de construção do roteiro do filme, era essa dificuldade de comunicação de Tiago. Ele tem uma dificuldade de se entender e de expressar o que ele sente. Existe um bloqueio geral de acesso que é muito comum; um homem hétero de periferia é instigado, instado a viver nessa anestesia, trabalhando sem nem refletir direito sobre nada. E aí isso gerava um grande desafio pra gente: “como é que a gente vai dar conta de uma jornada interior de uma pessoa que não se expressa?” Então fomos tentando nos aproximar de uma coisa um pouco mais sensorial, que era pra fazer a gente se colocar no lugar do personagem, e isso fez o filme ficar nesse tom – sem cair na contemplação, porque aí já seria um desvio do que a gente estava propondo. A gente não vai para aquele cinema puramente contemplativo em nenhum momento, mas ao mesmo tempo é um outro ritmo, é uma outra lógica de vida, na contenção mesmo. O tempo todo tentando se aproximar da experiência de vida e de mundo de Tiago.
Adriano: E como que esse desejo que já vinha do roteiro se encontra com o ator (Okado do Canal)? Você via essa contenção nele ou foi um trabalho de buscar construir isso aos poucos?
Fellipe: Okado é o contrário de Tiago (risos). Ele faz mil coisas ao mesmo tempo. É dançarino, é cantor, é uma liderança lá na Favela do Canal, tem uma biblioteca, tem um centro cultural, faz oficinas, é comunicador do Favela News… Ele está sempre envolvido em mil coisas ao mesmo tempo e tem uma habilidade de expressão incrível. Ou seja, é muito o contrário do personagem. Só que ao mesmo tempo ele se entrega tanto às coisas que faz que quando ele está em silêncio, quando está parado, existe uma pulsação de comunicação ali, sem ele fazer nada. E acho que foi isso que atraiu a gente, porque precisávamos de alguém que estivesse nesse ritmo de contenção de Tiago, nesse tom menor, nessa coisa mais introspectiva, e ainda assim fosse capaz de nos envolver.
É um personagem muito difícil se você for pensar nesse sentido. A jornada dele é do não falar para o falar, então a gente tem um filme inteiro em que as coisas estão acontecendo ali na cabeça dele, na frente dele, e a gente mal sabe o que ele tá pensando ou sentindo. E aí você conseguir ter alguém que capture a atenção do espectador durante todo esse tempo era um desafio muito grande, e a gente via isso em Okado; ele conseguia cativar a gente mesmo sem estar falando.
A partir daí foi feito um trabalho junto com Fábio Leal e Carol Bianchi para poder compor junto com Okado, nós quatro ali, esse corpo de Tiago. Carol entrou muito nessa parte do corpo mesmo, da coisa física. Então tem aquele momento do banheiro em que Tiago tem um princípio de ataque de pânico, e outros momentos em que esse corpo é levado um pouco mais à tensão, e a gente construiu com Carol e Okado esse artifício. Já Fábio entra em toda a construção dramatúrgica e narrativa do personagem.
E a partir do momento que Okado já tem essa capacidade comunicativa muito grande, é fácil a gente dosar e criar uma partitura dentro do personagem. Seria mais difícil precisar trazer uma expressividade ou capacidade comunicativa maior do que o natural da pessoa. Como o caminho com Okado foi meio que o contrário, de a gente ir entendendo aonde a gente vai colocar essa expressão, acho que foi um pouco mais suave.
Adriano: No seu primeiro filme, o curta-metragem O Delírio é a Redenção dos Aflitos, havia um extravasamento pela via do delírio na cena final. Em Rio Doce me parece que o Tiago tem uma dificuldade justamente para extravasar, e de algum modo parece que a dor o contém. A gente vê essa interrupção pela dor em alguns momentos, como na cena em que ele dança diante de uma roda de garotos. Então eu queria que você falasse um pouco dessa relação do personagem com a dor, que parece nunca o deixar extravasar; ou talvez por ele não trazer tudo aquilo que ele pensa pra fora, a dor aparece.
Fellipe: Acho que os dois filmes, Delírio… e Rio Doce, têm focos de interesse muito parecidos. São personagens que estão passando por um momento de grande angústia e não conseguem olhar, não conseguem ver e não conseguem compreender a própria angústia. Pensando agora nessa conversa da gente, tentando colocar um paralelo entre os dois, para mim Raquel, do Delírio…, está nesse mesmo lugar de incompreensão da angústia dela e da crise interior, e aí ela recebe uma série de sobrecargas, uma série de lapadas uma em cima da outra (o cara não aparece, o prédio começa a fazer barulho…). Acontece tudo muito rápido e isso não dá espaço para elaboração dessa angústia, o que leva o delírio a se tornar a via possível de elaboração daquilo ali.
Já para Tiago, em Rio Doce, o delírio seria uma saída muito fácil – e é uma saída muito comum, se você pensar no alcoolismo, na dependência de drogas e outras coisas que existem durante várias gerações de homens periféricos. E a ideia do filme era repensar essa masculinidade. Acho que o processo de extravasar essa angústia interna sem olhar para ela é o mais comum, é o que fizeram as gerações anteriores, o que fazem algumas pessoas dessa geração, sabe? E a ideia da gente era pensar o que é o outro caminho. Como é se ele simplesmente não extravasa? Se ele não vai pra farra, se ele não bebe. E se ao invés de tudo isso ele parasse, olhasse e finalmente conversasse – mesmo que com uma estranha como a Laura, que é a meia-irmã dele? Então a tentativa da gente era justamente sair desse lugar do delírio e propor um outro tratamento, um outro olhar para essa angústia, um outro caminho. Eu vejo um pouco esse paralelo.
Adriano: Nessa Mostra Competitiva de longas-metragens do Olhar de Cinema há três filmes brasileiros, sendo um deles O Sonho do Inútil, que é um filme que retrata cinco personagens, incluindo o diretor, sendo que quatro deles trilham um caminho muito próximo da arte, e ali é como se a arte fosse a única possibilidade de sobreviver a uma situação de vulnerabilidade social. E no caso do Rio Doce, na construção desse personagem do Tiago, parece ser o oposto: a arte parece ter ficado para trás na vida dele, e logo no início do filme ele demonstra aversão a retomar esse caminho. Queria que você falasse um pouco sobre essa escolha.
Fellipe: Esse trecho da vida de Tiago que a gente acompanha não é muito mais do que alguns dias. É uma coisa que fica a cargo do espectador imaginar, mas não se passa muito tempo desde a primeira cena que a gente o vê até a última. E eu acho que nesse momento em que o acompanhamos, Tiago é uma sombra dele mesmo, entendeu? Ele está muito distanciado de quem ele é, e isso está no cerne de toda essa crise. Pra mim é como se ele tivesse comprado os limites que a sociedade dá pra ele. São coisas externas, sabe? É essa tentativa de estar o tempo todo cumprindo a expectativa de pai, de homem, tentando o tempo todo dar o que pedem dele; sem olhar pra dentro para saber o que ele quer e aonde ele quer estar. E a arte de fato cumpre essa função daquilo que a gente estava falando antes, o extravasamento pode estar ali, e eu acho que Tiago não se permite nenhum tipo de extravasamento, nem a arte. Até o momento em que ele elabora tudo isso. E quando a gente bota aquelas fotos e aqueles vídeos nos créditos finais com ele cantando é pra mostrar que um outro Tiago é possível, e entender que aquele é um momento da vida dele. Mas eu vejo muito como essa impossibilidade imposta por ele mesmo. Naquele momento é impossível para ele extravasar de qualquer forma que seja.
Adriano: E esse uso dos materiais de arquivo acontece já a partir dos créditos iniciais, né? Com o vídeo de Tiago cantando quando criança, com a foto do pai biológico, com a foto que é mostrada quando ele reencontra a ex. Queria saber mais desse pensamento relacionado à inserção dos arquivos no filme, que pra mim soam como uma pulsão de vida que escapa da contenção que predomina no presente do personagem.
Fellipe: É exatamente isso, você foi muito na mosca. A gente pensa esses arquivos como uma forma de a gente entregar um pouco mais do personagem, entregar mais do que ele poderia dar naquele momento que a gente o acompanha. Ficamos pensando numa construção narrativa em que a gente não precisasse tirar o personagem daquele estado, e ainda assim a gente conseguisse mostrar esse contraste entre quem ele estava sendo e quem ele era, sabe? Que a gente conseguisse dar essa tridimensionalidade a ele sem precisar que isso estivesse na diegese, no tempo narrativo do momento. Porque desde o começo uma das coisas que me guiaram na construção desse roteiro era essa vontade de a gente fazer essa história acontecer num espaço muito curto de tempo. É um fôlego só. E como dentro desse fôlego a gente é capaz de alguma forma espelhar ou refletir a vida inteira de uma pessoa? Pra mim é essa a grande coisa: como em poucos dias ele repensa e repassa sua vida inteira. E aí os arquivos surgiram como um recurso estético e narrativo para a gente introduzir esses outros momentos de vida dele.
Adriano: No início do filme a gente tem aquela cena em que o Tiago está olhando para a foto do pai biológico ausente, e acho que isso faz com que essa informação deixe de ser entendida como uma grande revelação ou clímax do filme. Me parece que Rio Doce lida com esse acontecimento não como o seu centro, mas como integrante de uma rotina; parece ser mais um compromisso na vida do Tiago, e não é um compromisso que a gente poderia lidara partir de uma chave clássica, da pessoa que descobriu que ganhou uma herança, ou que tem um tio rico, que é um motivo muito recorrente no cinema clássico norte-americano. Então eu queria que você falasse como que pensou essa construção. Porque eu acho que assim o filme desloca a noção do que seriam os acontecimentos importantes desse roteiro.
Fellipe: Havia duas coisas que nos levaram a esse começo com ele já vendo a foto do pai. Primeiro, essa ideia de deslocar o pai da centralidade da narrativa do filme. A gente não queria que as coisas girassem em torno desse pai ausente; queríamos nos aproximar da experiência de Tiago. Porque o lugar que esse pai ocupa fica claro para ele no final, e é um lugar que não é central na vida dele. Então existia a preocupação de construir um filme em que o personagem do pai não ocupasse essa importância narrativa que determinasse a história inteira, ou guiasse completamente os rumos; a gente lidou com essa revelação e com a presença dessa família paterna como catalisadores de reflexões para Tiago.
Para além disso, essa cena no começo anuncia e estabelece a forma como a gente vai contar essa história. Essas fotos, esses arquivos… A partir dali a gente começa a mergulhar nessa experiência desses dias de Tiago usando como instrumento também essas imagens que estão fora dessa trama de alguns dias que a gente acompanha.
Adriano: Acho interessante que não tem esse deslumbre do Tiago no sentido da ascensão social. E aí fico pensando na decupagem dessa cena do almoço, porque imagino que deve ter sido muito debatida. Eu sempre me pego pensando como que é desafiador criar essas relações entre personagens em cenas passadas em uma única mesa, com muitas pessoas juntas. É um desafio de direção mesmo, de decupagem, então queria te ouvir sobre essa construção.
Fellipe: Foi realmente um super desafio, uma das cenas que a gente levou mais tempo para filmar. Milena Times, a primeira assistente de direção, foi essencial nesse planejamento; a conversa com Milena, com Pedrinho (Pedro Sotero, diretor de fotografia) e com o próprio elenco. Então primeiro a gente construiu toda a cena, e depois fomos pensar em como filmá-la. E aí era esse desafio em termos logísticos mesmo, porque se a gente tivesse todo o tempo do mundo estava perfeito, mas esse cinema que a gente faz não é assim, né? E a gente escreveu e ensaiou essa cena como sendo uma coisa enorme. Acho que no papel chegava a ter uns 20 minutos de cena, que era para que depois a gente pudesse reduzir e chegar no essencial. Então foram dois dias inteiros só de almoço. E aí um dos caminhos foi filmar tudo que fosse possível. Um plano de cada, um close de cada, planos-conjunto, planos gerais… A gente conseguiu construir um repertório muito grande de planos para conseguir levar para a montagem. Aí quando chegou na montagem foi de fato uma das primeiras cenas que a gente montou, que era também para entender o todo do filme, porque a partir dali é que as outras coisas iam acontecer.
Tem várias outras cenas no filme, mesmo na casa da família paterna, em que os planos são mais longos, mas nessa a gente entendia que não funcionaria desse jeito. Poderia até funcionar, mas não dentro do tempo de filmagem que a gente tinha. Então a saída foi ter uma quantidade muito grande de planos disponíveis, e que a gente pudesse resolver esse tamanho e essa decupagem na montagem, porque era a cena mais diferente do resto do filme, tanto pelos personagens quanto pela forma como a gente estava filmando.
Adriano: Uma característica que está presente nessa cena do almoço é uma espécie de interdito. De algum modo isso aparece muito no personagem do Tiago, que fala muito pouco, mas também acho interessante pensar nos interditos da família paterna. Por exemplo, não fica muito clara a motivação deles para revelar a história da paternidade ao Tiago. Pode ser um gesto natural, pode fazer parte de uma culpa burguesa, pode ser um gesto de confronto a esse pai que morreu… E aí eu queria pensar em uma certa contenção presente na personagem Catarina, que tem uma centralidade naquela estrutura familiar. A contenção de Catarina se nota até no modo como arruma o cabelo, né? E é uma contenção bem distinta da contenção de Tiago. Por isso queria que você falasse um pouco dessas contenções e desses interditos ali presentes.
Fellipe: A contenção de Tiago é aquela de quem está meio perdido, não sabe exatamente o que expressar e não se permite acessar essa fonte de expressão, entender o que está sentindo e pensando. Enquanto que Catarina, e a família em geral, elas passam por um lugar de não querer mostrar. É um desejo de contenção, algo que eu acho que não existe em Tiago. Ele está justamente nessa busca por encontrar uma outra forma de viver, nesse processo de passagem, de crescimento. Enquanto a contenção de Catarina, de Helena e daquela família é uma estratégia de sociabilidade: “eu não vou falar porque é melhor que não saibam exatamente tudo o que eu estou pensando. Eu tenho mais vantagem se eu não me expresso”.
É engraçado porque a gente discutiu muitas vezes nos primeiros encontros por que elas chamam ele para um almoço, e a gente entendeu muito de cara que não interessava resolver essa questão.
Existem muitas possibilidades, como você colocou, mas interessa muito mais pra gente o que se dá quando esse almoço acontece, quando ele vai lá e a gente tem o confronto dessas duas formas de sociabilidade, sendo uma delas estratégia e a outra não.
Adriano: E o filme também refuta a lógica do melodrama, ou mesmo do barraco, por assim dizer, que era algo que poderia acontecer ali naquele encontro. E apesar de ficarem bem claros os muitos defeitos de classe de uma personagem como Catarina, acho que ela não é uma megera completa como uma Dona Bárbara (de Que Horas Ela Volta?), tem algum tipo de nuance ali. Então eu queria que você falasse um pouco sobre isso também: como que era importante dar essa construção um pouco mais nuançada para essas personagens.
Fellipe: Era uma tentativa de dar tridimensionalidade aos personagens, que acho que deixa tudo mais interessante. Nós temos no Tiago um guia para adentrar o universo no qual encontramos esses personagens, e para que isso fosse interessante era preciso que esses personagens não fossem planos, tivessem alguma profundidade. Todas as questões políticas do Brasil em 2018, a eleição de Bolsonaro, deixavam isso muito claro, que a gente podia ter pessoas que a gente amava e que estavam ali desejando uma coisa completamente diferente da gente, com outras ideias políticas, e a gente fica meio confuso, né?
Seria muito mais fácil, talvez, se as pessoas fossem um pouco mais planas, mas eu acho que parte da dificuldade de existir em sociedade e em comunidade, no caso do filme pensando mais na questão da família, é que as pessoas não são uma só, e a resposta emocional que a gente precisa ter a cada uma delas é muito mais mais difícil e mais complexa do que a gente gostaria de construir.
E esse era um desafio com as três irmãs. Acho que mesmo com Laura, que talvez seja alguém com quem a gente consiga se identificar pela melancolia, existe um conflito de classe ali muito claro, e de certa forma uma dificuldade de lidar com a complexidade do outro. Em alguns momentos daquela conversa no final, que é uma oportunidade de abertura para Tiago, ela achata a individualidade e a complexidade dele. Ela não se dá conta da complexidade daquelas relações e daquela pessoa.
Em Catarina isso vem mais forte porque eu acho que ela vai para um extremo muito grande. E é isso, são mais frequentes personagens como Dona Bárbara, no sentido de ser apresentado só um lado, mas aí é mais difícil para as pessoas se reconhecerem, e me interessava também que as pessoas não achassem Catarina uma megera, sabe? E acho que vão existir espectadores que vão ver o filme e vão achar ok; vão achar Tiago exagerado naquele final, quando ele dá um fora nela. Eu estava interessado nesse lugar de debate também.
Adriano: O filme fala um pouco sobre as distâncias Centro-Periferia. A Laura, quando está em Olinda, encara a cidade como espaço de lazer noturno, a um Uber de distância. E a relação de Tiago com esses espaços é bem diferente; há uma necessidade de deslocamento já colocada no início do filme, quando a moto dele está na oficina. Queria que você comentasse como pensou essa relação do filme e do personagem com essas distâncias.
Fellipe: Eu cresci em Rio Doce e Jardim Atlântico, entre esses dois bairros de Olinda, passei ali minha vida toda de colégio, e só comecei de fato a frequentar Recife a partir do momento em que fui para a faculdade, a UFPE; pegava um ônibus que levava duas horas pra chegar. Rio Doce é no extremo norte de Olinda, e Recife fica ao sul de Olinda, né? Então a gente atravessa a cidade de Olinda inteira, e dependendo do lugar de Recife a gente atravessa a cidade de Recife inteira para chegar. E essas distâncias, no fim das contas, conduzem boa parte da sociabilidade da gente. Quando as coisas acontecem ali pelo Centro de Recife e você mora no final de Olinda, a sua forma de interagir com esses círculos e acessar esses lugares é diferente. E por isso que a moto ganha essa importância no filme, no sentido de que ela confere certa autonomia, né? A gente está falando de uma cidade em que o metrô vem do centro para as zonas Sul e Oeste de Recife, ele não vem para o Norte de Recife ou para Olinda, então a gente só tem ônibus, e aí também só existem duas grandes avenidas de acesso que vivem engarrafadas… Enfim, tem toda uma dificuldade mesmo. E pra mim quando a gente vai falar de Rio Doce, vai falar de pessoas que moram nesses lugares, é importante pontuar esses deslocamentos. A gente não consegue entender Rio Doce só em Rio Doce. Para entender Rio Doce a gente precisa entender o que é o Centro e o que é a classe média, o que é a zona Norte ou a zona Sul de Recife.
Adriano: Pra gente terminar nossa conversa queria chegar numa das falas finais do Tiago, aquela em que ele diz pra Catarina que “tá tudo no lugar”. A gente pode interpretar essa fala de diversas formas. Tem esse medo mais palpável de ter a casa roubada, que existia por exemplo naquela cena do pesadelo em O Som ao Redor, esse risco à propriedade; tem o lugar social, pensando no que o reconhecimento dele como parte daquela família pode alterar. Mas para além dessa situação da família recém-descoberta, essa frase também pode remeter ao lugar dele como pai. Fico pensando até que ponto o lugar dele como pai e como homem foi alterado, até porque a gente sabe que essa figura do “pai de fim de semana” é bem recorrente aqui no Brasil e em outros lugares. Então eu queria que você falasse sobre essa frase (“tá tudo no lugar”) pensando esses dois lugares, tanto o de Tiago como pai, quanto a relação dele com a família do pai biológico.
Fellipe: Era muito importante pra gente construir um final que não fosse nem apaziguador e nem reconciliatório… em relação a classe, em relação a gênero, em relação a raça. Que a gente mergulhasse naquilo, que a gente visse aquilo, mas que as coisas não fossem resolvidas completamente, por que elas não são, né?
O primeiro argumento a gente escreveu em 2014, então fomos trabalhando essas ideias, esses temas, esses conceitos, e acho que em algum momento a gente acreditou que poderia ser massa fazer um filme feel good, que terminasse com um gesto mais bem definido de esperança. E aí as coisas foram acontecendo no Brasil e no mundo e se tornou impossível esse gesto se dar dentro de um filme no qual a gente queria fazer justamente esse retrato contemporâneo, esse instantâneo.
Mas dentro disso também tinha a questão de como não cair numa coisa que fosse apenas um lamento ou um cine-denúncia. E aí como é que a gente conseguiria dar pelo menos um sopro de esperança? Ou que pelo menos a gente abrisse a possibilidade para que esse sopro existisse para o espectador. Isso em relação à filha, né? Não era uma coisa de definir e dizer: “ah, de uma hora pra outra ele virou um bom pai”. Não é isso. Mas a gente vê que existe ali um gesto ou uma tentativa de mudança, que não sabemos onde vai dar.
E em relação à Catarina, era muito importante que depois daquela conversa com Laura, que inclusive apresentava um outro lado de Catarina, a gente deixasse claro que uma coisa não anula a outra. Nem um momento de identificação dele na melancolia com Laura, nem a complexificação da personagem Catarina anula tudo aquilo que elas representam e toda a distância e o abismo que existe entre eles ali. E era muito importante que a partir do momento que Tiago tivesse conseguido falar alguma coisa, ele tivesse a possibilidade de dar alguma resposta para Catarina. Porque durante o almoço todo ele passa só engolindo; percebendo, entendendo e sem conseguir expressar nada. E era importante que essa resposta não tentasse resolver nada também. São questões muito complexas, né? Não vai ser no filme, em nenhum filme, e muito menos em uma cena ou num personagem que a gente vai conseguir dar algum apontamento de pacificação. E nesse sentido a fala caiu pra gente como uma luva nessa representação de que as coisas podem mudar por um lado, num pequeno gesto, mas que no final das contas está tudo na mesma, está tudo no lugar, e ali, para aquela mulher branca de classe média alta, isso ser transmitido como uma tranquilização. Porque a gente sentia em Catarina desde a cena do almoço um medo de que as coisas fossem mudar com a morte do pai e a descoberta desse filho. Alguma ordem sairia do lugar… Mas na verdade não, é mais do mesmo.
*Este texto integra a cobertura do 10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba