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Investigar o desconhecido, lidar com o perverso: uma conversa sobre Filme Particular

07/06/22 às 11:42 Atualizado em 13/04/23 as 18:45
Investigar o desconhecido, lidar com o perverso: uma conversa sobre Filme Particular

A apresentação de Filme Particular na mostra competitiva de longas-metragens do 11º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba publicizou um conjunto de imagens que ficara até então restrito ao ambiente doméstico. Após realizar em São Paulo uma compra com vistas a consertar um projetor 16mm, Janaína Nagata recebeu no pacote uma película de família que, em seus 19 minutos, revela aos poucos o turismo de um pai e de uma filha em plena África do Sul dos anos 1960, época do odioso regime racista do Apartheid. Seu gesto, então, foi o de fazer um filme que partisse desse material e tentasse esmiuçá-lo, primeiro o apresentando na íntegra (embora apresentado por cartelas iniciais e modificado por uma trilha sonora adicional) para depois inseri-lo em um jogo de montagem que toma o desktop como dispositivo.

“Acho que o dispositivo do desktop vem a ajudar nisso de mostrar que eu estou do outro lado. De alguma forma o filme é sobre essa película encontrada e é também sobre todas as barreiras que existem entre mim e aquele filme. E nesse sentido foi importante também o recurso da tela dividida, porque a simultaneidade te remete à película encontrada a partir de um contraste com outra imagem, e isso como procedimento de montagem foi importante para que a gente pudesse lidar com aquele material sem esconder o lugar em que estávamos”, defende a diretora.

Embora essa defesa formal tenha sido abraçada pela maior parte das críticas publicadas durante a cobertura do festival, houve vozes dissonantes sobre a ética e a estética do filme, como é o caso do texto publicado por Fabio Rodrigues Filho no Cine Festivais. Em conversa com nosso site, a diretora Janaína Nagata e a montadora Clara Bastos expuseram suas visões a respeito das escolhas tomadas durante a feitura de Filme Particular.

Adriano Garrett: Como você vem das Artes Visuais, queria saber se em algum ponto, depois de encontrar essas imagens do “filme particular”, você pensou em fazer um projeto voltado para outros espaços, como o das galerias. Por que a escolha pelo cinema?

Janaína Nagata: Em algum momento, logo no início do processo, a gente decidiu que era melhor que aquele material encontrado fosse visto de cabo a rabo. Na galeria tem uma coisa de a pessoa chegar na metade e o filme estar lá rodando em looping, e nesse projeto a gente achou que era necessária uma certa imersão para você ir acompanhando todo o raciocínio. Nesse sentido eu achei que não seria o ideal fazer um projeto voltado para exposições de arte. Eu estaria muito aberta para isso em outros momentos, mas esse material em específico não pedia isso. A gente queria tirar o máximo de potência possível dali, então tive que largar muitos desejos pregressos que me guiavam.

Adriano: O que você pensou em fazer indo mais para o campo das Artes Visuais?

Janaína: Eu e a Clara (Clara Bastos, montadora de Filme Particular) gostamos muito dos filmes do Martin Arnold, que trabalha com repetições e reiterações de gestos, e eu tinha vontade de trabalhar com pequenas partes que gerassem uma certa cacofonia. Antes de encontrar esse material, minha intenção ao trabalhar com películas 16mm era fazer o processo de ficar “martelando” o arquivo. De certa forma isso aconteceu neste filme, mas de uma outra maneira. Quando tive contato com esse rolo comprado por acaso e fui mergulhando nele, as minhas vontades foram se transformando.

Adriano: A montagem do filme tenta emular um mergulho naquele material, primeiro com o seu conhecimento na íntegra e depois com o gesto de esmiuçá-lo e de descobrir que havia ali imagens e problemas muito complexos. Penso que no ambiente artístico brasileiro dos dias de hoje esse trato com a alteridade é cada vez mais debatido, complexificado, questionado, e eu imagino que muitos artistas talvez desistissem de lidar com esse problema ali encontrado. Por que, então, decidir tentar lidar com as complexidades que o material apresentava?

Janaína: Acho que a primeira forma de responder está relacionada com essa estrutura de ver o filme inteiro e depois esmiuçá-lo por partes. Isso tem a ver com a ideia de manter a integridade do material, mas também com uma escolha por preservar um olhar para a alteridade que já estava lá no material. No início pensávamos em fazer um curta-metragem, e uma coisa que a gente debateu muito era que com esse formato nós teríamos que necessariamente editar o material inicial, e quanto a isso eu era muito resistente. Queria lidar com a alteridade da maneira mais franca possível. No sentido de tentar explicitar todas as escolhas, ou seja, apontar que inserimos uma trilha sonora adicional, que o material seria exibido inicialmente sem cortes, que ele foi achado em São Paulo. Ou seja, não intervir diretamente, a não ser quando eu mostro o que eu vou fazer na própria tela, colocando uma câmera lenta, por exemplo. Foi uma decisão de tratar esse problema a partir de um pacto com o espectador, de uma forma mais franca. E a partir disso achava que não poderia editar o material inicial, porque se não os cortes que eram daquela pessoa que estava olhando, daquela família que estava lá e que filmou as pessoas naquele período, iriam ser alterados. A película 16mm que encontramos chegou pra gente com os cortes físicos, com o durex ali, e essa estrutura colocada explicita um complexo emaranhado de ideologias que estão no olhar daquelas pessoas que estavam filmando há quase 60 anos. Eu sentia que não podia alterar isso de maneira alguma. De certa forma a trilha altera, é a única coisa, mas ainda assim eu quis sinalizar.

Pensando que a questão da lida com a alteridade é muito delicada e envolve muitos problemas e debates, acho que a única maneira com a qual eu conseguiria trabalhar com isso seria mostrando que nosso filme tanto preserva o material quanto tematiza essa distância. Porque eu não estou no ponto de vista da pessoa que estava do outro lado da câmera; eu estou distante, achei esse material. Então acho que o dispositivo do desktop vem a ajudar nisso de mostrar que eu estou do outro lado. De alguma forma o filme é sobre essa película encontrada e é também sobre todas as barreiras que existem entre mim e aquele filme. E nesse sentido foi importante também o recurso da tela dividida, porque a simultaneidade te remete à película encontrada a partir de um contraste com outra imagem, e isso como procedimento de montagem foi importante para que a gente pudesse lidar com aquele material sem esconder o lugar em que estávamos.

Adriano: Você contou no debate aqui no Olhar de Cinema que tinha um projeto de intervenção direta em películas no momento em que encontrou as imagens caseiras que deram origem a Filme Particular. Por que você achou que esta técnica não seria adequada para este trabalho?

Janaína: Naquela época eu tinha um projeto embrionário de intervenção em películas, mas era algo que ainda não havia começado. Intervir diretamente na película é um gesto não só irreversível, mas que também acaba fazendo ali uma inscrição muito forte. E com essa película que encontrei eu não me sentia confortável para fazer uma intervenção desse tipo, até pelas pessoas que estão retratadas. Eu achava que se fizesse isso estaria cometendo uma espécie de agressão, até em relação ao documento histórico.

Quando estava pensando em trabalhar com intervenção eu pensava em lidar com filmes de propaganda, institucionais. Ali você pode recortar, queimar, fazer o que você quiser com a película, porque ela não tem um valor histórico imediato. Mas essa película eu achava que precisava ser preservada porque ela é um documento que diz algo. A gente não sabe totalmente o que é, mas eu não me sentiria à vontade para simplesmente ir lá e rabiscar ela, a não ser que a gente fosse fazer uma cópia em película, o que estava muito longe do nosso orçamento. Então acho que haveria uma certa imposição demasiada da minha pessoa que eu queria evitar. Claro que não vou me dissimular, mas queria de certa forma sinalizar o lugar onde eu estava sem passar os limites do que eu acho que poderia intervir. E acho que a intervenção direta passaria esse limite.

Adriano: Falando em intervir, você traz essa defesa da integridade do material, mas me parece que isso não acontece plenamente devido a algumas opções tomadas pela direção. Primeiro, há a intervenção do letreiro inicial, que enuncia a origem do material e acaba por provocar uma indefinição menor do que se, por exemplo, víssemos aquele material na íntegra sem saber dessas informações. Também há o gesto de inserção da trilha sonora musical, uma intervenção ainda mais acentuada. Gostaria de entender melhor essas opções.

Janaína: Acho que a inserção da trilha com certeza é a escolha que eu considero mais ambígua do filme em todos os sentidos. Colocar uma trilha de improvisação em um filme de película já é um ato ambíguo. A Mari Kaufman viu o filme em um dispositivo e foi improvisando na hora. É um gesto que é por si um pouco irreversível.

Eu sou muito resistente em ver o filme de início sem nenhum tipo de música porque eu acho que seria difícil ter uma hora e meia com muito silêncio. E essa película encontrada tem muito silêncio mudo, não é nem um som ambiente, e aí acho que podia acabar sendo difícil de acompanhar. Nesse sentido, é uma opção por fazer com que o público consiga se engajar minimamente. E ainda assim a música composta não é exatamente uma trilha que engaje. Ela foi feita muito no início do processo, e aí eu não sabia exatamente a forma com que o filme ia ficar, mas eu tinha muita resistência àquela ideia do filme de arquivo com pianinho, bonitinho, então eu falava: “se o filme é incômodo, vai ter que ser uma música incômoda”. E aí eu procurei alguém que fizesse uma música experimental que tivesse ruído, silêncio.

Hoje talvez eu teria tentado pesar um pouco menos a música no começo, para você tentar assistir ao filme sem tanto direcionamento naquele início. Mas acabou que no processo não tinha muito o que fazer. Acho que para a segunda parte [da exibição da película encontrada] a música faz muito sentido, porque a gente também pontua o que é volta, aceleração, todos os gestos que estamos fazendo. É exatamente o mesmo trecho da música, só que mais ralentado ou mais acelerado, e isso dá uma espécie de eixo para quem está assistindo ao filme.

Mas eu concordo que esse é o momento de maior intervenção do filme, e essa escolha foi feita num momento em que eu estava assistindo a um monte de filme de arquivo. Um em específico que me impactou muito no momento em que estávamos fazendo a trilha foi Do Polo ao Equador, do casal Angela Ricci Lucchi & Yervant Gianikian. É um filme de um agente colonial que está indo não sei exatamente para que país da África, e os diretores colocam uma música que é muito pesada para se assistir, e você vai querendo vomitar quando vê aquelas imagens. Porque eu acho que não dava para eu me ausentar tanto. Então a música era de alguma forma aquilo que eu queria pontuar, que é “bom, eu não acho essas imagens tranquilas, então quero causar um desconforto proposital”. Tinha um pouco essa ideia inicialmente.

E sobre as cartelas iniciais é o que já falei: poderíamos ter passado sem nada, mas eu queria deixar estabelecida desde o início uma distância muito explícita, porque se começasse com a exibição da película sem a trilha poderia ser interessante, mas de certo modo ia ficar mais ambíguo do que o filme já pode ser, e eu acho que é preciso dosar essa ambiguidade.

Adriano: A gente estava falando em música e silêncio, e eu queria entender a escolha por inserir aquela música no final de Filme Particular. Qual foi o motivo para haver ali essa inserção e não, por exemplo, um final com um silêncio que reiterasse o incômodo que permeia o filme?

Janaína: Esse foi o único momento no qual a gente quebrou uma regra de montagem de que não poderíamos trazer nada que não estava indicado ou pelo algoritmo da internet ou pela própria imagem daquela película. No nosso filme temos poucos momentos com tematizações de resistência ao Apartheid. Quando a gente fez a consultoria histórica com a Núbia [Núbia Aguilar Moreno, historiadora], ela falou assim: “calma, a África do Sul teve muita gente que lutou, teve muita gente que resistiu. Não é exatamente só o Apartheid” E eu fiquei pensando que era uma coisa que eu tinha que trazer. Essa música se chama Beware, Verwoerd (Cuidado, Verwoerd), em referência ao primeiro-ministro e arquiteto do Apartheid, e ela é cantada pela Miriam Makeba, que é uma das principais vozes da resistência sul-africana. E como no filme nós tínhamos mostrado a cena do assassinato do Verwoerd um pouco antes, achei que inserir essa música no crédito final daria não uma outra perspectiva, mas pelo menos traria algo que não fosse simplesmente aquela reiteração dessa história só opressiva; de alguma forma, traria algum nome que trabalhou contra [o regime racista].

Adriano: O fluxo improvisado em plano-sequência proposto pela montagem traz uma perspectiva de primeira pessoa, colocando o espectador também como um investigador. Nesse sentido, fico me perguntando se o roteiro não fecha muito algumas coisas, apesar de colocar algumas barreiras ali (o pagamento por cartão de crédito, as diferentes línguas, o não-reconhecimento facial de uma figura-chave na história do filme). Por que a opção pelo plano-sequência e como vocês pensaram em torná-lo mais aberto ao fracasso e às barreiras que por momentos fazem a pesquisa não avançar?

Clara Bastos: Sobre a questão do plano-sequência, acho que por um lado esse dispositivo de internet traz uma frieza muito grande para o filme, uma mecanicidade, e ao mesmo tempo esse plano-sequência te coloca numa perspectiva de primeira pessoa que fica um pouco imersiva. Durante o processo a gente foi depurando a estrutura do filme para ela ser o encadeamento de milhões de pesquisas que a gente fez, do tipo “uma coisa leva à outra”, e em determinado momento a gente fez um esforço consciente de trazer essas pontas soltas, porque para nós era muito importante tematizar essas barreiras e tornar mais claras essas mediações da internet, do que está lá, do que não está, e de até onde a gente poderia ir. Por exemplo, quando pesquisamos sobre o homem que aparece nas imagens, aquele pai de família, a gente não tinha achado aquela informação e não iríamos botar no filme, mas depois pensamos que ele era a pessoa que mais queríamos saber quem é, então vamos botar que não conseguimos encontrar, que a resposta do site é que é necessário ter uma foto mais clara e que a gente não colocou uma boa imagem. Então foi um processo de depuração entre o quanto a gente fazia uma narrativa amarrada e imersiva e o quanto a gente trazia essas barreiras que encontramos ao longo do processo de pesquisa.

Janaína: Clara e eu fizemos o roteiro muito juntas, e ela foi a maior adepta de colocar as pontas soltas. Em algum momento do processo eu entrei na fissura de querer realmente costurar tudo, e a Clara defendeu botar até coisas pequenas, como erros de digitação. E tem uma coisa que é: a tela sempre te mostra outros caminhos, outros links. Isso que está no filme é um caminho possível de amarração, mas haveria milhões de outras possibilidades.

É claro que a gente poderia tematizar mais essas barreiras, mas o que fizemos foi tentar achar o limite entre o quanto se deixava de fio solto e o quanto se deixava de barreiras, de uma aridez, inclusive nas traduções. Teve muita gente que assistiu ao filme no meio do processo e falou: “vocês vão deixar essa voz do Google? Não aguento mais ouvir isso. Não dá para fazer de outra forma?” Então um caminho para contrastar com o roteiro amarrado foi trazer esses outros mecanismos de distanciamento com o espectador que tornavam o filme um pouco mais árido, mas que eu acho que também são importantes.

Adriano: Por que defender até o final essas inserções da voz do Google? Acho que ela é uma voz que normalmente funciona como uma piada, gera um lado cômico, e quando se está falando de algo perverso, terrível como o Apartheid, isso gera um contraste, um incômodo.

Janaína: Eu particularmente achava esse incômodo interessante. Tem uma hora que tem um vídeo chamado “Experiment the Apartheid”, e aí a voz do Google fala “Experimente o Apartheid”. E aí é algo cômico e incômodo, mas achei que seria interessante manter esse erro. E a voz tem um distanciamento que eu acho interessante; não queria botar a minha voz narrando. Tem também tem uma questão técnica, porque o filme já é arrastado, então ele tem que andar de alguma forma, e eu quis quebrar uma simultaneidade entre som e imagem. Você não precisa ficar lendo o que está na tela, isso vai para o som. Claro que ouvir da voz do Google também é desgastante, mas aí dá para você ouvir enquanto já está aparecendo outra imagem na tela, e isso era importante para manter algum fluxo. Uma coisa que Clara e eu tentamos fazer foi trabalhar com a dispersão, porque você não apreende tudo ao mesmo tempo. A própria experiência de olhar te permite prestar atenção em diferentes pontos, no próprio choque da imagem com o som… Isso é uma coisa que eu gosto do filme. Cada vez que eu o vejo percebo relações que nem eu mesma tinha me atentado antes.

Adriano: Você citou como o dispositivo do desktop, e mais especificamente da tela dupla, trazia uma espécie de análise comparativa entre duas imagens, então queria pensar no gesto de trazer aquela imagem da garota africana adotada por um casal de italianos, que parece propor uma comparação entre o turismo colonial do Apartheid e o turismo colonial dos dias de hoje. É uma imagem que incomoda, vi pessoas saindo da sessão depois dela. Queria ouvir o pensamento de vocês sobre esse momento.

Janaína: Esse foi um dos momentos que mais gerou incômodo para nós. Às vezes a gente não conseguia nem ver aquelas imagens até o final, ficávamos muito incomodadas. Quando tivemos uma consultoria de montagem no DOCSP a gente discutiu isso com a Jordana Berg, porque nós ficávamos tão incomodadas que cortávamos esse vídeo antes do final, e no final decidimos deixá-las na íntegra. Ao contrapor aquelas imagens eu achei que uma interpretação que seria possível seria de uma certa persistência de uma coisa que é muito antiga, um certo turismo que está se repetindo. É ruim? É incômodo? É mesmo. É um soco na barriga, odeio ver essas imagens. Mas eu achei que esconder elas, cortá-las ou retirar essa parte não seria… Porque tem um lance que é o turismo colonial e o próprio filme de família. Um filme de família da década de 1960 ao lado de um filme de família contemporâneo. Achei que de certa forma eu tinha que atualizar e remeter para os dias de hoje, mas é uma opção que a gente teve que tomar.

Clara: Voltando para essa questão do corte, durante aquela cena em que a menina estava se trançando a gente meio que acelerava a imagem e ia para elas no carrinho, e aí a Jordana Berg disse que seria muito importante diferenciar o que é um corte da gente e o que é um corte do material que estávamos mostrando, porque se não estaríamos de alguma forma aderindo àquilo. E aí o que a gente fez foi deixar aquela cena até o fim, um pouco longa, mas ela acaba quando o vídeo original decidiu que ela acaba. E aí a gente está mostrando algo que a gente encontrou e que tem muitas relações com esse documento histórico de quase 60 anos atrás…

Janaína: Uma estrutura que de alguma forma se repete.

Adriano: Como já citado por vocês, o modo como o filme é iniciado tem a ver com o dispositivo escolhido para se aproximar daquelas imagens até então desconhecidas. Um desafio menos óbvio, acredito eu, foi pensar em como terminar Filme Particular. Já falamos um pouco sobre a questão da música escolhida, mas queria saber de modo mais amplo como essa questão foi discutida ao longo do processo de montagem.

Janaina: Foi difícil acabar mesmo, tivemos algumas versões do final. Na primeira delas a última imagem era o Verwoerd sendo morto, mas aí me parecia muito efusivo, quase uma catarse. E como uma opção de direção foi jogar o incômodo para o espectador de alguma forma, não dava para acabar daquele jeito. Tivemos uma segunda versão, que eu até gostava, que lidava com uma propaganda da Coca-Cola filmada no Kruger National Park que tematizava um filme de família e era muito parecida com o início daquelas imagens da película encontrada. E aí tinha uma hora em que rebobinávamos o filme, íamos do fim para o começo, e a gente acabava no safári de novo, como se houvesse um looping com essa propaganda da Coca-Cola. Mas esse vídeo de propaganda da Coca-Cola tinha uma coisa meio soft, e aí a ironia talvez pudesse ficar um pouco pesada, no sentido de que poderia reafirmar um lugar meio confortável, então abandonamos ele. E para a terceira versão, que é a que ficou, a gente levou em conta um incômodo que era: esse cara (Verwoerd) morreu, mas o Apartheid continuou por muito tempo. E tivemos a ideia de trazer um vídeo que o algoritmo sempre nos apontava, que era de uma entrevista do John Vorster, o primeiro-ministro da África do Sul que veio depois, ainda no Apartheid. A Clara falou: “talvez seja interessante acabar com esse cara porque ele tem uma voz que é quase de sono, e aí ela daria um contraste com a catarse do assassinato do Verwoerd”, então a gente optou por terminar assim. Acho que tinha uma coisa no final que era mostrar algumas camadas: primeiro, o primeiro-ministro que arquitetou o Apartheid e foi assassinado; segundo, esse regime político continuou; e terceiro, existiam ali vozes de resistência. Queríamos juntar em um curto espaço de tempo essas três dimensões.  

Clara: E tem uma outra questão que é: quando acabar essa pesquisa? Porque ela não tem fim, ela é eterna. Isso a gente queria dar conta pela ideia de looping daquela outra versão do final, de que se poderia começar a pesquisa mais uma vez e fazer qualquer outro caminho. Então na verdade não tem um fim, é muito difícil você dar um fim para isso, e acho que a ideia de um vídeo que é jogado automaticamente pelo algoritmo do YouTube tem a ver com isso. É juntar as dimensões históricas com essa natureza da busca na internet, que é de um looping eterno.

*O repórter viajou a convite da organização do 11º Olhar de Cinema

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