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Filme Particular, de Janaína Nagata

07/06/22 às 11:40 Atualizado em 07/06/22 as 12:37
Filme Particular, de Janaína Nagata

Desparticularizar os filmes

“Quis me levantar mas um silêncio sem

vísceras atirou sobre mim suas asas

paralisadas”

(Frantz Fanon, 2008)

1.

O futuro atrás e o passado na frente. Pensemos o quanto esta noção pode nos dizer algo sobre a experiência do cinema (ver filmes juntos no ambiente cinema e também aquilo que nos faz falar e sentir o cinema diante de um filme). A rigor, numa sessão, atrás de nós o projetor, na frente a projeção: de costas para o futuro, habitamos a distância que se abre e faz crescer a luz em imagem sensível que toma a geometria da tela mas espalha-se, poderíamos dizer, no próprio espaço e corpos que compõem a ocasião do acontecer de um filme. Pensemos ainda na conhecida alegoria Benjaminiana para a pintura de Paul Klee, Angelus novus, em que o anjo olha para o passado – amontoado da catástrofe que cresce até o céu -, enquanto uma tempestade inclina-o para o futuro: “Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las”, escreve Walter Benjamin. No quadro, vemos o anjo de frente, vale dizer (estamos nos passado que o anjo mira?). Talvez a metáfora seja descabida para falar de Filme Particular, visto que neste longa se trata de um passado que não passou por completo (mudou sua face, aprofundando seu projeto), o que nos implica repensarmos o modo como concebemos e estratificamos o tempo. Mesmo assim, diante desse filme, como não desejar deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos? Como não se contorcer de ódio, raiva e dor diante da violência racial? No entanto, neste filme, uma tempestade que tem por nome generalização do espetáculo, show, nos faz abandonar tudo, contemplar a catástrofe a troco de um jogo de desktop. Não mais a mesa de montagem, mas a mixagem. Ali, onde a montagem se contenta com o mostrar, não residiria também sua perda? Por perda não quero dizer sua ausência, mas um desprezo da montagem como confrontação da ignorância. Tecnicamente a montagem está lá, de certo. Mas porque diante dessa dor o tecnicismo e esteticismo seria tão relevante a ponto de prescindir do resto? Como desimplicar-se quando a vida está em jogo? Não seria isso compactuar com o jogo do poder que despreza a vida (marcadamente as negras)?

2.

“E sobretudo, meu corpo, assim

como minha alma, evitem cruzar

os braços em atitude estéril de

espectador, pois a vida não é um

espetáculo, pois um mar de dores

não é um palco, pois um homem

que grita não é um urso que dança”

(Aimé Césaire)

Sabemos que a posição do/a espectador/a não é e nem precisa ser estéril. Sabemos também que em alguns momentos, diante de algumas injustiças,  quando não se confronta, perpetua-se a violência. Ali, onde não se desmonta, insufla-se o exibicionismo. Por que esse papo novamente? Diante de Filme Particular, a impressão é dupla: uma diz respeito ao que o filme postula (e reforça) enquanto “particular” ou particularidade, reforçado no título homônimo entre o filme encontrado e o realizado. Da particularidade desse aspecto comentaremos ao final. Uma outra impressão é a pergunta que me salta em relação a onde está o confronto no filme: seu conflito é aparente, o longa sustenta-se num argumento importante que inclusive o justifica (a compra virtual de um projetor que, já em seu anúncio, trazia consigo um filme em 16mm. Ao vê-lo, não há dúvidas, é o fascismo que se exibe)… mas, e o confronto? Falemos uma palavra mais justa: e a divergência? Ou ainda, e a política? Há momentos e situações em que nomear o fora[1] é um dever: “Anúncio e denúncia não são, porém, palavras vazias, mas compromisso histórico”, nos diz Paulo Freire. O que vemos no filme é um escárnio com a dor alheia: a tradução via Google Tradutor, a voz da mesma plataforma, a encenação do improviso no desktop que ainda assim preserva o raso da primeira coisa que aparece, etc. Pesquisa por sobre os detalhes da imagem, o esclarecendo… porém, essa forma de procurar entender expõe seu limite. Sabemos, por vezes, que o que mais aparece diz respeito ao poder (financeiro, inclusive) de fazer aparecer… insistir em tal jogo (comentar o presente histórico pelo zapping), penso, impede que a arte do salto emerja: toda criação não exigiria uma arte do salto, uma ruptura das repetições? São desumanas as repetições em Filme Particular: diria que elas têm caráter sintático e não semântico, menos ainda pragmático. Desumanidade: não se importar. Reproduzir é talvez um verbo justo para falar desse filme: como não usar o conhecimento para discernir mas também recusar a abjeção? Não pode haver recusa e divergência se nos contentamos com a ignorância que nos forma, por isso um filme se abre ao pensamento, interpela e nos é interpelado: tira do inferno para devolver à política. Em Filme Particular, no entanto, esclarecer é gesto retórico que fala da sua própria descoberta, fascinado que está com ela. Sintomático que o que se grafa nos letreiros é selecionado pelo cursor que escreve e logo apagado. O inferno, a repetição do mesmo, aquilo fora do tempo, posterior ao próprio juízo final, segue do mesmo jeito. Não deveríamos nestes momentos ser profanas o suficiente para confrontar a violência à altura? Em nome do quê acontece a invenção formal neste filme? Não seria em nome do desprezo à dor e à injustiça para com as pessoas negras? Temo que sim.

3.

“Eu não consigo imaginar”

Diante do testemunho longo e doloroso de sua mãe, Su Friedrich, no filme Os laços que unem (EUA, 1985), exibido no mesmo 11º Olhar de Cinema, não só silencia para escutar, grafando na tela as palavras difíceis e necessárias para o diálogo e a investigação acontecer, mas também, num dos poucos momentos em que a voz da diretora-filha é escutada, é justamente “eu não consigo imaginar” que é falado. Aqui, não conseguir não é motivo para não tentar, tentativa que se dá por meios distintos: o filme é ele mesmo uma tentativa, qual seja, vencer a ignorância formante, sublevar-se ao esquecimento cínico e construir, no gesto mesmo de lembrar, uma elaboração possível para a dor latente. Não conseguir é também a honestidade de reconhecer o limite: não se consegue porque o horror ali não só desumaniza, é ele mesmo desumano. Rompe a categoria do humano. O testemunho milimetricamente narrado sobre a brutalidade do nazismo é escutado pelo filme, nos é dado a escutar através da história singular (mas não particular) de Lore Bucher e também de outras pessoas, porque inevitavelmente implicadas. O título do filme anuncia: incontornavelmente nos une. Une mesmo a nós, neste tempo, distante e distintos. Irremediavelmente une.

Ao fim, pensemos nesta dimensão do “particular” em Filme Particular. O que preservar o mesmo título do filme achado tem a nos dizer? Onde está a diferença? No esclarecimento? Algo se esclarece? O que o filme faz do seu não saber? Como interroga nossa ignorância em relação àquilo que se expõe naquelas imagens? Encontrou-se um filme que materializa uma violência que, de certo, é uma das maiores tragédias humanas que tivemos: quem vendeu? Qual a duração total (a cartela inicial nos diz, veremos na íntegra os primeiros 19 minutos)? Qual o estado da película? Ela foi restaurada pela produção do longa?

O cuidado com o filme encontrado é muito além, porque mais digno, do cuidado com os corpos negros filmados e violentados. Dever nosso indignar-se com a concepção de imagem ali postulada. É nisso que se sustenta a invenção formal, o dispositivo criado, que parece esquecer que a semiótica logo mostra seu limite diante de um mar de dor.

Me pergunto ao fim e a cabo em relação à trilha adicional que o filme construiu para o filme encontrado. Trilha insistida que conecta os filmes homônimos. O silêncio, no entanto, parece falar. Silêncio dos dois filmes: cumplicidade? Os fantasmas do primeiro, a película encontrada, fala na voz do segundo, encarna na materialidade do segundo, o assombrando. Não deveria ser o contrário? Lidar com os arquivos é preocupar-se com a materialidade, com o contexto e sua imanência, de certo.  No entanto, é também preciso atentar-se às suas anacronias e às suas fantasmagorias. Ora, é preciso atentar-se aos fantasmas, sob pena de eles encarnarem nos filmes que produzimos hoje, falando no silêncio aquilo que as palavras e as vozes dos apps parecem querer recusar. 


[1]  Me refiro aqui ao fora de campo, o fora de quadro ou mesmo o fora que aparece por vezes nas entrelinhas, falseado de normalidade. Por vezes este último é a violência.

*Filme visto no 11º Olhar de Cinema

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