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Um respiro no meio da correria: uma conversa com Ariadine Zampaulo

21/06/22 às 16:37
Um respiro no meio da correria: uma conversa com Ariadine Zampaulo

Maputo Nakuzandza, primeiro longa-metragem de Ariadine Zampaulo, foi planejado e gravado durante o período em que a cineasta realizava um intercâmbio de seis meses em Maputo, capital de Moçambique, em 2017. Foram cinco anos entre as filmagens e as exibições recentes em festivais como a Mostra de Cinema de Tiradentes (Mostra Aurora) e o Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba (Mostra Olhares Brasil). Nesse ínterim, Ariadine seguiu ligada criativamente a Moçambique, atuando como montadora em trabalhos de cineastas daquele país, como Sônia André.

É bem verdade que um primeiro corte de Maputo Nakuzandza já havia sido apresentado anos antes como trabalho prático de conclusão de curso para a graduação em Cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF), mas Ariadine sentia que precisava de um tempo maior de maturação para chegar à versão final que, enfim, circularia publicamente.

“Eu entendi que ainda não tínhamos um filme para lançar. Precisei parar para ver esse material com calma e pensar em uma reescrita do roteiro a partir dali. Foram questionamentos sobre como intercalar essas histórias, como elas se relacionavam, como cada personagem se relacionava uma com a outra… Foi uma coisa de pensar em como ir modulando e costurando esses fragmentos”, conta a diretora.

Os “fragmentos” a que ela se refere dizem respeito à narrativa do filme, que observa personagens distintos ao longo de um dia na capital moçambicana. Acompanhamos um homem que corre, uma mulher que chega de viagem, um turista que passeia, um trabalhador que apanha o transporte público, uma noiva que foge, tudo isso permeado pelas ondas sonoras da rádio local, homônima ao título do filme.

Maputo Nakuzandza significa, no idioma local, Maputo, Eu Te Amo. O longa-metragem de Ariadine Zampaulo é, contudo, bastante diferente de outros “filmes de cidade”, como Paris, Eu Te Amo ou Rio, Eu Te Amo. Em conversa com o Cine Festivais, a cineasta fala sobre esse e outros temas que envolveram os processos criativos de filmagem e montagem do longa-metragem.

Adriano Garrett: No senso comum, quando se pensa em cinema moçambicano, talvez a primeira figura que venha à mente seja o Ruy Guerra. Essa é uma visão certamente reducionista, e acredito que ao longo da sua pesquisa e da sua vivência em Moçambique você tenha descoberto outras vertentes de cinema, incluindo trabalhos realizados por cineastas negros e negras. De onde veio seu interesse pelo cinema moçambicano? O que mais te chamou atenção com relação à produção contemporânea que está sendo feita ali?

Ariadine Zampaulo: O Ruy Guerra teve uma importância estratégica e política na época do pós-independência em Moçambique, nos anos 1970, pois foi chamado pelo novo governo para ser diretor do Instituto Nacional de Cinema e teve uma influência grande por ter trazido cineastas e técnicos reconhecidos para lá. Ele também produziu filmes importantes para a história do cinema moçambicano, mas sua obra foi construída sobretudo no Brasil; então para mim ele é muito mais um cineasta brasileiro do que moçambicano.

Sobre meu interesse por Moçambique… Eu comecei o curso de Cinema na UFF em 2012 e minha viagem para Moçambique só ocorreu em 2017, quando estava praticamente finalizando a graduação. Eu já tinha feito praticamente todas as disciplinas exigidas para me formar, e lembro que em Cinema Mundial, por exemplo, nenhum cineasta africano foi citado. Eu peguei um momento de transição em que se passou a questionar essas ausências no nosso ensino acadêmico, tanto com relação a cinemas africanos, quanto com relação ao cinema negro brasileiro, com o qual também não tínhamos contato algum, a não ser pela presença de poucos atores negros, sobretudo no Cinema Novo. 

Por isso esse contato começou fora da universidade, primeiro com uma mostra de cinemas africanos contemporâneos que aconteceu no Rio de Janeiro em 2015. Lembro que fiquei muito impactada e que comecei a me colocar esse questionamento sobre o motivo de nunca ter visto aqueles filmes antes. Foi uma revolta boa, daquelas que nos movem de alguma forma. E por ter me encantado com aqueles filmes, isso acabou me motivando a querer saber mais e a começar a estudar esses cinemas.

Em 2016 eu tive a sorte de fazer uma disciplina optativa de Cinemas Africanos que surgiu na grade da UFF graças à pesquisa de um mestrando, o Tiago de Castro. Ele fez um apanhado geral sobre vários países retratando o cinema no momento colonial e depois das independências desses países, e passou um pouquinho pelo cinema moçambicano, que me interessou muito. O Samora Machel, que foi o primeiro presidente de Moçambique pós-independência, teve como um dos seus primeiros atos de governo a criação do Instituto Nacional de Cinema, fato que é muito curioso e que tem um sentido de propaganda, já que o cinema era muito importante para mostrar que aquela luta era legítima e para contrapor um discurso propagado por Portugal de que as colônias estavam se rebelando sem razão e de que as populações das colônias africanas eram incluídas como parte de Portugal, o que era uma grande mentira. Então o cinema entra como arma importante primeiro para legitimar a guerra e, depois, permanece como uma ferramenta importante para mobilizar o sentimento de nação em Moçambique, já que antes da independência não existia essa ideia de ser “parte de um mesmo país chamado Moçambique”. A história de lá é formada por vários impérios e povos diferentes; a ideia de país só chega posteriormente, e o cinema era importante para levar essa mensagem de unidade para todo o território.

Então fiquei muito interessada por todo esse contexto, mas também tinha curiosidade por descobrir a produção contemporânea que estava sendo feita lá. Foi então que surgiu a oportunidade de fazer um intercâmbio, e Moçambique era o único país africano que tinha convênio com a UFF. Estudei lá por seis meses em 2017, e fui com essa vontade de conhecer os cineastas de agora, os jovens… Eu conhecia um pouco da produção do Licínio Azevedo, brasileiro que foi para lá justamente a convite do Ruy Guerra, nos anos 1970. O Licínio vem do jornalismo, constrói uma obra grande em documentários e mais recentemente também começa a fazer ficções. Virgem Margarida (2012) foi um filme dele que me impactou muito…

Mas me chamava a atenção o fato de que a maioria dos filmes moçambicanos que eu conhecia eram feitos por cineastas brancos. Então eu desejava encontrar os cineastas negros moçambicanos, algo que essa vivência de seis meses por lá me deu a oportunidade de fazer pessoalmente. Eu entrevistei vários realizadores e coloquei esse questionamento sobre a visibilidade que os cineastas brancos têm em Moçambique, e as respostas sempre iam para a questão financeira, para quem tem acesso a cursos, equipamentos, financiamento público, todas essas dificuldades de produção que a gente conhece.

Por outro lado, eu consegui vivenciar um momento importante ao conhecer um curso superior de cinema dentro do ISArC (Instituto Superior de Artes e Cultura). Acabei indo a eventos ali e conheci pessoas que estavam cursando aquela graduação, uma galera da minha idade, e algumas dessas pessoas acabaram formando a equipe técnica do meu filme (Maputo Nakuzandza). Ao longo da história, Moçambique teve vários cursos e oficinas de cinema depois de sua independência, incluindo aqueles do Instituto Nacional de Cinema, mas o primeiro curso regular de Cinema foi justamente esse do ISArC, há muito pouco tempo.

Adriano: Queria saber mais sobre esse intercâmbio com outras universidades…

Ariadine: A universidade em que estive para fazer o intercâmbio com a UFF não era de Cinema e estava voltada para a formação de professores. Ali eu fiz matérias em História e Antropologia que me deram uma boa base de pesquisa, mas minha convivência com o pessoal de lá era muito nessa parte acadêmica, não tinha a coisa da prática artística. Então eu acabei buscando isso em outros lugares, e dois deles foram importantes para mim. Primeiro, como já apontei, o ISArC, que acabou trazendo algumas pessoas para a equipe técnica do meu filme. E em segundo lugar, a Universidade Eduardo Mondlane, que tem um instituto de Comunicação e Artes muito forte. Ali eu fiz como ouvinte uma disciplina de Práticas Videográficas para Teatro que foi muito interessante, e muitos atores que encontrei ali acabaram atuando em Maputo Nakuzandza. Também foi ali que encontrei com a Maria Clotilde Guirrugo, que depois escreveu o roteiro do filme comigo e atuou na produção.

Adriano: Antes de ir para Moçambique, havia a intenção de fazer um filme por lá?

Ariadine: Em um primeiro momento, fui mesmo com o intuito de fazer a pesquisa. A ideia do filme acabou surgindo no meio desse processo, quando eu já estava lá, e acabou se transformando também no meu trabalho prático de conclusão de curso na UFF. Eu apresentei um primeiro corte dele para a banca quando me formei, aí depois fui remontando, retrabalhando, fazendo outras coisas nele para lançar agora.

A vontade de fazê-lo veio muito desses encontros sobre os quais estava falando. Depois que conheci a Maria Clotilde na escola de teatro, nós duas participamos de uma oficina de cinema e poesia com o David Gross, um cineasta alemão que viria a fazer a fotografia em Maputo…. A gente achou muito frutífero o diálogo com o David, tudo isso era muito rico, e ele estava lá só por algum tempo, assim como eu, e aí a gente foi conversando assim: “será que a gente consegue produzir um filme? O que a gente tem?” O David tinha os equipamentos de fotografia, eu já conhecia esse pessoal que estava se formando no ISArC, e ali conseguimos pessoas que tinham equipamento de som e podiam fazer a captação… Foi uma produção de parcerias, que só foi possível porque as pessoas se disponibilizaram e disponibilizaram esses equipamentos. Eu fiquei muito encantada com a produção artística de Maputo, com a poesia, a literatura. Tudo isso foi me envolvendo muito, e eu não queria perder a oportunidade de gravar ali.  

Adriano: E foram cinco anos entre as filmagens e o lançamento do filme em festivais. Como que se se deu esse processo de voltar ao Brasil e entender que filme poderia ser feito?

Ariadine: É, eu falo que o filme teve um processo de produção ao contrário, porque normalmente você faz vários anos de pesquisa e escrita de roteiro e depois tem um tempo menor para as filmagens e para a finalização, e comigo foi o oposto. Quando resolvemos fazer o filme, eu já pensei em um tipo de produção na qual o roteiro fosse se construir mais na montagem. Já sabia que seria o retrato de um dia na cidade de Maputo, do amanhecer até a madrugada, e o título chega também como uma proposta para o filme. Maputo Nakuzandza significa Maputo, Eu Te Amo, que é uma referência a todos esses filmes de cidade, como Paris, Eu Te Amo ou Rio, Eu Te Amo. A vontade inicial era filmar alguns lugares da cidade de Maputo, e aí a partir disso vinha o questionamento sobre quais personagens a gente coloca ali e como eles se relacionam com esses espaços. Isso é uma base pra gente pensar o filme.

Tivemos um mês de gravações, feitas de acordo com a disponibilidade dos atores. Pensamos em ter uma equipe reduzida, com cada cena tendo no máximo dois atores, porque não dava para juntarmos dez atores para estarem disponíveis por dez dias, não era viável financeiramente. Então isso também influenciou a narrativa do filme  

Quando voltei ao Brasil com esse material gravado, me reuni com o Bruno Teodoro, que era meu colega na UFF, e ele se tornou o montador do filme. Depois que apresentamos o primeiro corte na banca de TCC, eu entendi que ainda não tínhamos um filme para lançar. Precisei parar para ver esse material com calma e pensar em uma reescrita do roteiro a partir dali. Foram questionamentos sobre como intercalar essas histórias, como elas se relacionavam, como cada personagem se relacionava uma com a outra… Também fui fazendo uma pesquisa sobre poesia e literatura moçambicana que acabou se incorporando à narrativa, e criei alguns textos para a narrativa da rádio moçambicana que permeia o filme. Foi uma coisa de pensar em como ir modulando e costurando esses fragmentos.

Adriano: Você citou Rio, Eu Te Amo e Paris, Eu Te Amo. Eles eram uma espécie de contraexemplo? Maputo exigia um outro tipo de abordagem?

Ariadine: Na maioria desses filmes você tem uma historinha para cada personagem que vai sendo desenvolvida, e no caso de Maputo eu escolhi pegar fragmentos e não aprofundar essas narrativas. Acho que essa escolha foi muito mais pela questão de eu ser honesta com o meu lugar de estrangeira ali dirigindo esse filme. Claro que eu estava sempre dialogando com os atores, com a Maria Clotilde (roteirista e produtora), mas existia um desejo de colocar honestamente o contato que eu tenho com aquele espaço, que se dá mais através de uma curiosidade, de um encantamento, de uma empatia por esses personagens. Então Maputo Nakuzandza acaba tendo mais uma visão de passeio pela cidade, de encontro com esses personagens, do que exatamente de acompanhar uma história fechada sobre determinadas pessoas. A fotografia do filme também assume isso: conversei muito com o David Gross (fotógrafo) sobre ser uma fotografia que passeia, anda pelas avenidas, depois para, olha para a cidade… Acho que tem um pouco essa conversa com o nosso olhar como estrangeiro ali, de ser honesto com esse nosso lugar. Talvez seja uma diferença para esses outros filmes.

A diretora Ariadine Zampaulo

Adriano: Você citou como a fragmentação acabou vindo a partir de assumir essa posição como estrangeira, mas ao mesmo tempo me parece que seu filme evita um olhar intruso ou exotizante para aquela realidade, algo que muitas vezes acaba transparecendo em trabalhos de cineastas não-locais. A gente sente que a câmera conhece aqueles espaços, ou ao menos não acabou de chegar ali naquele exato momento. Queria que você comentasse essa questão da espacialidade no filme.

Ariadine: Acho que isso se dá a partir da relação que nós efetivamente tínhamos com Maputo. Parte muito dessa observação, desse caminhar pela cidade e dessa vontade de filmar nesses locais. E também penso que essa sensação é construída no filme a partir de uma postura da câmera de deixar que os acontecimentos invadam o quadro. Nós escolhemos gravar cenas que dão tempo para que isso aconteça. Na maioria das vezes a gente seleciona um gesto, uma ação muito simples para o ator, quase como uma performance ali naquele espaço, e a cidade acontece ali. Não era uma coisa de “vamos gravar aqui, ele vai fazer a ação e pronto, corta!”. Tinha sempre uma conversa com os atores no sentido de eles não ficarem preocupados com o tempo da ação, explicando que continuaríamos gravando até um pouco depois. Por exemplo, quando estávamos gravando naquele lugar onde estavam ocorrendo vários casamentos, a gente só pedia para a atriz que faz a noiva ficar ali sentada que a gente iria gravar as coisas acontecendo. Tinha essa vontade de filmar os movimentos da cidade.

Então acho que essa sensação que você colocou ocorre porque realmente a gente conhecia os movimentos de cada lugar e sabia que coisas interessantes para o filme poderiam invadir o plano, e era isso que a gente estava buscando. E depois, na escolha dos takes na montagem, tem essa consciência do tipo: “olha que legal a movimentação dessa pessoa que passa aqui”; “olha que bacana os meninos ali jogando futebol”. Sempre tem um olhar para esses movimentos da cidade dentro desses planos. Acho que isso transparece um olhar que parece conhecer a cidade de alguma forma, algo que se dá mais nesse sentido de deixar a cidade falar.

Adriano: Isso também se relaciona com a questão do tempo, tanto com o tempo de cada plano, quanto com o tempo da narrativa em um dia, como também com momentos que parecem confrontar essa temporalidade concreta do cotidiano, por exemplo, pela inserção de performances. Queria que você falasse sobre essa temporalidade construída pelo filme.

Ariadine: Acho que isso é um gesto de tentar conectar com a subjetividade. Não é um relato objetivo desse dia; a gente está ali se conectando com os sentimentos daqueles personagens, com uma melancolia, uma frustração, um encantamento… E aí a quebra da temporalidade vem no sentido de expressar essas subjetividades. A gente utilizou, por exemplo, a mesma atriz para fazer a personagem da noiva e para fazer a personagem que descobre a traição no casamento, o que foi uma proposta de brincar com essas duas temporalidades, como se fossem duas possibilidades para uma mesma vivência.

Quando vivemos um dia, essa experiência não se dá objetivamente; estamos vivendo muitos outros tempos, na verdade. Eu estou lembrando agora da época em que gravei o filme, você pode estar pensando no que vai fazer amanhã, outra pessoa pode encontrar alguma coisa na rua que a conecte com algum sentimento ou lembrança da infância… A gente vive esses tempos quebrados, que não são objetivos.

Acho que o som também fez um trabalho muito importante nesse sentido de brincar com a temporalidade. A Isadora Torres, que fez o desenho de som do filme aqui no Brasil, trabalhou com a escolha e a repetição de sons. Então o som de uma personagem em um momento no final do filme também está lá no início do filme, já sugerindo uma vivência daquele personagem. Foi um trabalho que admiro muito, e que também lida com essas quebras temporais.

Adriano: Acho que essa questão da quebra temporal também é colocada pela montagem, como no corte que vai da cena da personagem que descobre a traição do marido para um plano em uma ruína na qual ocorre posteriormente uma performance. Ali se sai de uma situação extremamente concreta e mundana para algo mais metafísico e atemporal, inclusive evocando uma posição da mulher em sociedades patriarcais…

Ariadine: Uma das referências que eu tentei colocar nesse momento de performance vem do cinema indiano, que tem essa coisa da narrativa que de repente para e você passa a ver um clipe de música com pessoas dançando. Parece ser uma desconexão, mas na verdade é como se fosse um momento de respiro e de absorção daquilo que a gente está acompanhando na narrativa do filme. Então eu coloco essas performances pensando nesse intuito também. E a ruína vai dialogar com esse lugar da mulher na sociedade, como você colocou, mas também se relaciona com o colonialismo português – aquela construção foi uma prisão na época do regime colonial.

Adriano: Seu filme tem como um dos personagens um homem que corre. A gente não sabe por que nem para que ele faz isso; ele apenas corre. Me parece que a ausência de um objetivo muito nítido pode ser usada para pensar Maputo Nakuzandza como um todo. Essa fragmentação sobre a qual falamos parece desviar de um discurso mais endereçado a respeito de temas da atualidade. Acho que ele está descolado dessa presença muito majoritária no circuito de festivais brasileiros de filmes que desejam destinar uma mensagem com relação ao tempo presente.

Ariadine: Vide nossos tantos filmes de pandemia, né? (risos)

Adriano: Exato. Isso me parece que particulariza o filme diante desse cenário brasileiro atual. Penso que a relação espectatorial talvez fosse muito parecida para quem o assistisse em 2017, 2022 ou 2027. Queria te ouvir um pouco sobre isso.

Ariadine: Acho que essa questão do tempo de lançamento parte muito da intenção da pessoa que está fazendo e pensando cada filme. Fico feliz de você falar isso, porque foram questões que ficaram passando pela cabeça quando a gente estava nesse momento da pós-produção. Claro que existiu uma ansiedade para finalizar, essa coisa de “já passou muito tempo de quando eu gravei!”, mas toda vez que ficava ansiosa com a finalização eu voltava pro poema da Hirondina Joshua, “O corredor”, que inclusive está no filme e fala sobre passagem do tempo [nota da redação: reproduzimos este poema a seguir].

Haverá dentro dele uma grande corrida?

Ou cores ou corrimões ou coringas ou cordeiros ou cordas ou

concordâncias?

A mão apressa-se para chegar entretanto não há destinos.

A mão é solitária por natureza. E na sua solidão exerce o mundo. O

mundo exerce nela a matéria da incompletude. Não é do escuro

que a mão tem medo. A mão teme a cegueira da parede. A visão

atómica da coisa branca.

A mão em eterna construção cai no tempo. O tempo em eterna

construção cai na mão.

Certamente tem coisas da cidade de Maputo que já mudaram de 2017 para cá, mas o filme também é o registro daquele momento, e isso não se perdeu. Como discurso, realmente não havia uma urgência de comunicar com o público naquele exato momento. O filme está pronto agora e falará ao momento que precisar.

Acho que isso também tem muito a ver com a minha postura como pesquisadora de cinema. Estudando filmes dos anos 1990, 1980 ou até anteriores, feitos em Moçambique ou outros países africanos, me deparei com a atualidade que muitos desses trabalhos têm até hoje; eles sempre vão dialogar com a gente, e isso é incrível.

Indo para um lado meio clichê: a gente já vive um momento de tanta ansiedade, em que tudo tem que ser imediato, em que temos que produzir para estar pronto amanhã, e talvez no cinema a gente encontre um momento de respiro. Acho que esse filme se colocou para mim um pouco nesse sentido: eu queria que fosse um momento de respiro. Gosto de filmes que me fazem sentar e ter um parênteses de tempo para que eu possa curtir uma outra temporalidade, sem pressa, vivenciando aquelas cenas. Maputo Nakuzandza traz um pouco dessa vontade de ser um tipo de filme que nos dá um respiro no meio da correria.

*O repórter viajou a convite do 11º Olhar de Cinema

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