Affonso Uchôa conheceu Rafael dos Santos através de amigos em comum no bairro Nacional, em Contagem. Algum tempo depois, Fael desapareceu repentinamente do local. Affonso veio a saber, anos mais tarde, que a jornada do amigo envolveu tortura e ameaça policial, exílio forçado e vício em drogas. Era uma história muito violenta, que o cineasta quis levar ao cinema por ser “emblemática de muitas coisas que acontecem em todo o País”.
O processo até o corte final de Sete Anos em Maio envolveu o descarte de uma primeira fase de filmagens (“era um erro muito grande que eu tinha cometido, e só tinha um jeito de consertar: refazer”) e a aceitação de uma certa heterogeneidade de registros (“o fato de deixar todas as minhas tentativas de lidar com aqueles acontecimentos talvez fosse a coisa mais honesta para poder representar o filme”).
“As ideias que eu tinha para o filme foram transformadas completamente pelo processo. No fim das contas, até que encontrei coisas que pareciam com o que eu queria inicialmente, mas de uma maneira completamente diferente daquilo que eu tinha imaginado”, diz o cineasta.
Após ter sido premiado no Visions du Réel, na Suíça, e no Indielisboa, em Portugal, o média-metragem fez a sua estreia nacional no 8º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, onde recebeu uma menção honrosa. Durante o festival curitibano, Affonso falou ao Cine Festivais sobre o processo de realização.
Cine Festivais: Queria que você começasse falando sobre aquilo que antecedeu o filme. Há quanto tempo você conhecia o Rafael? Você soube da história dele logo de cara, ou foi chegando nela aos poucos? Como isso desembocou na ideia de fazer esse filme?
Affonso Uchôa: Eu conheço o Rafael desde 2007. Ele mora muito perto da minha casa, também no bairro Nacional, em Contagem, e meu primeiro contato com ele foi através de um amigo em comum nosso, o Desali, que também participou do Vizinhança do Tigre, fez still no Arábia, enfim… Ele está sempre ali, participa dos filmes que eu faço, também mora no mesmo bairro que a gente e é amigo do Rafael desde a infância.
Um dia a gente estava tirando umas fotos lá no bairro e o Desali falou: “ah, vamos lá na casa de um amigo meu”. A gente foi, tirou umas fotos do Rafael, conheci o pai dele, enfim. E a gente desenvolveu ali uma amizade mais momentânea: se conhecer, se gostar, trocar ideia e beleza. E o negócio que aconteceu é que a gente tava vivendo lá no bairro e de repente o Fael sumiu, não tava mais por lá.
Ficamos curiosos, começamos a perguntar para as pessoas o que tinha acontecido, e começou a vir essa história de que ele tinha saído de lá como precaução diante dessa ameaça da polícia. E aí passou um tempo, a gente conversou com a mãe dele, perguntei, ela falou que era isso mesmo. Falei com o pai dele, que era vivo na época, ele também confirmou. Então a história era verdade.
Desde então fiquei muito preocupado. Era uma história meio maluca, um cara que em um dado momento teve que sumir, sair do bairro. E aí, em 2012, eu estava andando por Belo Horizonte e esse meu amigo, Desali, chegou e me ligou, falou assim: “cara, eu vi o Fael na rua.” Falei: “Como assim? Você viu ele onde?”. E aí ele falou: “Vi ele aqui na Arão Reis.” E aí de fato a gente foi lá, encontrei com ele na rua, conversei, perguntei o que estava acontecendo, se ele podia voltar pra casa. Ele estava num outro momento da vida dele e tal…
Foi nesse momento que comecei a ter a ideia do filme, até como uma função de testemunho mesmo. Testemunho de uma existência e de uma história. O objetivo do filme para mim era registrar isso que aconteceu, sabe? Era fazer um filme muito simples, devotado a figurar o acontecimento, sem muitas ambições para além disso, sem muitas maquinações formais. Devotado a contar a história do Fael, porque é uma coisa muito emblemática de coisas que acontecem em todo o País.
Eu não sabia bem o que podia ser, não sabia quanto tempo ele iria ficar na rua, foi um choque reencontrar ele ali. Falei: “vamos marcar uma entrevista?” A gente marcou na igreja de São José, no centro de Belo Horizonte, ele foi com um amigo dele que estava na rua também, e a gente gravou a entrevista. Foi a primeira vez do Fael com câmera e tal. Falei: “Cara, me conta o que aconteceu. Essa entrevista é uma forma de eu entender o que aconteceu com a sua vida.” Ele me contou e eu fiquei bem tocado por aquilo. Disse: “oh, eu queria refazer isso, queria tentar fazer isso de um outro jeito.” Ele falou que topava, mas depois disso teve um outro desencontro, porque ele foi simbora pra São Paulo de novo, saiu, essa coisa do crack se aprofundou. Só depois, quando ele voltou, é que eu fui saber o que tinha acontecido. Ele foi pra São Paulo de novo, um outro esquema lá de uma clínica de reabilitação. E só depois, lá pra 2016, que voltou pra Contagem.
Eu encontrei com ele, conversamos, ele me contou o que tinha acontecido, já estava bem melhor, afastado das drogas, de toda essa situação que tinha levado ele pra rua. Aí retomei a ideia de fazer o filme, ele topou e eu comecei a pensar numa maneira de levantar essa produção e fazer o filme acontecer.
Já influenciado por aquilo que você estava fazendo tanto no Vizinhança quanto no Arábia?
Acho que influenciado de maneira um pouco indireta, ou um pouco natural, como se essas coisas tivessem algo em comum mesmo, no sentido de serem filmes que nascem de um desejo parecido, sabe? Mas não pensando tão conscientemente assim. Na verdade o que eu gosto de pensar nesse filme é que o processo foi de aprendizagem constante, de descobrir o filme durante o processo. As ideias que eu tinha para ele foram transformadas completamente pelo processo. No fim das contas, até que encontrei coisas que pareciam com o que eu queria, mas de uma maneira completamente diferente daquilo que eu tinha imaginado.
Eu até tava brincando, conversando com o João (Dumans) e falando desse filme – mas pensando numa coisa que seria um pouco aplicável a todos os documentários, e na verdade talvez a todos os filmes do cinema contemporâneo -, dizendo que o filme de certa maneira é aquilo que sobrevive ao processo. O processo vai conduzindo a diversos erros, perdas, inconsistências, problemas… e o que sobrevive a tudo isso é o filme. Ele é mais do que o somatório, é o depósito de toda aquela energia que o processo condensa.
Quando comecei a fazer, queria um filme simples, que era baseado nessa história, em que a pessoa ia contar uma história. E eu sabia que o filme tinha que ser mais documental, porque eu não queria trabalhar com essa história de um jeito meramente encenado, acho que seria meio desrespeitoso com a história do Fael. Acho que o potencial da história dele é de a gente entender que aquilo é verdade, porque se a gente percebe como verdade, ilumina pra gente outras verdades da nossa vida e do nosso país. Pra mim era isso, queria fazer mais documental.
Mas ao mesmo tempo eu pensava em como fazer esse documentário. Não estava muito satisfeito em fazer um documentário tradicional, ou um documentário mais discreto que só liga a câmera e pronto, “está aí o registro e é isso aí”. Queria elaborar um pouco mais para sugerir uma ficção, até pra gente conseguir outras coisas que eu gosto no cinema e que eu acho que tem a ver com essa história. Que é também de, a partir de um momento, sugerir que essa história também… tem um pouco de literatura, que ela tem uma importância gigantesca pra gente entender o mundo e a gente mesmo.
É nesse sentido que eu cheguei na minha ideia primeira, que era fazer um filme baseado no relato, que eu filmaria como uma entrevista, entre aspas, pensando no dispositivo mais básico do documentário mesmo: a pessoa conta a sua história. Pensei: “ah, então vai ser essa a base”, mas agora como é que eu consigo adicionar construção para essa situação, para esse dispositivo cênico? Como é que eu consigo misturar um pouco de ficção, insinuar um pouco de construção conjunta minha junto com ele ali, pra que a gente também não coloque a história nesse lugar da verdade pura e absoluta, pra que a gente consiga insinuar aí um potencial criativo, um teor literário para essa história? Como a gente consegue dimensionar essa história pra um outro lugar?
E aí inicialmente eu tinha a ideia de fazer um documentário meio Maya Deren, em que eu ia cortando, mudando as locações, enquanto ele mantinha o fluxo do relato, sabe? Em 2017, na primeira etapa de filmagem, eu filmei assim. E quando fui pra montagem, vi que era um erro. O dispositivo formal estava atrapalhando a gente a ouvir o Rafael. Então a minha forma, a minha construção, estava impedindo a gente de mergulhar na história e no relato daquele cara. E o filme é ele, sacou?
Então era um erro muito grande que eu tinha cometido, e só tinha um jeito de consertar: refazer. Eu precisava refazer e entender que o tempo do relato que eu tinha pensado é diferente daquele que eu tinha feito. Essa foi a grande justificativa para ter uma segunda etapa de filmagem em 2018: tentar encontrar para o relato o tempo que ele deveria ter, que é o de construir a tensão, o envolvimento do espectador.
Então é isso, a história do filme é essa loucura. Eu fui encontrando ele apesar das minhas ideias iniciais, que na verdade também foram importantes porque geraram o processo que fez elas serem mudadas. E o filme é o que sobreviveu a todo esse processo, é o que restou.
Nessa primeira etapa de filmagem, ele já se passava todo em ambiente noturno?
Não, não era tudo noturno não.
Pergunto isso porque penso em filmes como o Era Uma Vez Brasília, que se passa todo à noite, e mesmo no A Noite Amarela, que vi aqui em Curitiba. Claro que o seu filme trata de algo que sempre aconteceu, mas pensando numa coisa da contemporaneidade, a noite me parece o tempo mais adequado para se falar do Brasil atual. Queria que você pensasse se, mesmo que inconscientemente, essa escolha pela noite tem um sentido que passa por aí também.
Concordo com a sua observação. Na verdade isso não foi deliberado, fui encontrando durante o processo. Na ideia inicial essas locações podiam ser em dias e anos diferentes, então o tempo não seria tão importante para o relato; a única coisa era que o tempo do relato era o presente. Então até a relação de ele falando poderia ser meio maluca: se é contemporâneo ou não, se é um flashback ou não. E tinha coisas diurnas. Algumas dessas locações, quase todas na verdade, eram diurnas.
Agora, a locação do diálogo com o interlocutor sempre foi aquela e sempre foi noturna. Na verdade essa cena foi ficando muito importante, comecei a gostar muito da ideia de ter essa transformação do relato em um diálogo, em algo prototipicamente ficcional. E trabalhar essa cena como um lugar de ampliar o escopo – a gente vê sempre uma história muito real, uma coisa muito dura, e ali seria o momento de a gente poder botar esse pessoal… botar o favelado pra poder filosofar, vamos dizer assim.
Foi a partir dela que eu fui reorganizando as coisas: essa cena tem que ser neste lugar, com essa luz, e tem que ser noturna. Eu não quero atrapalhar o meu caminho aqui, porque eu atrapalhei e vi que estava errado na primeira montagem. Então eu preciso ser simples. Por isso, o tempo da cena do diálogo, que é fundamental, é o tempo que vai determinar o tempo em que vai se passar o relato. Por isso ficou noturno.
E as outras cenas, tanto “vivo ou morto” quanto a “reencenação”, eram noturnas porque tinham nascido noturnas, mas não a partir dessa ideia de conjunto de um filme todo noturno. Elas tinham nascido noturnas pelas ideias que eu tinha pra elas mesmas. Acho interessante serem noturnas porque têm uma configuração um pouco de pesadelo. Ambas serem encenadas à noite traz um aspecto clandestino, deixa elas um pouco mais assustadoras, porque são acontecimentos que em geral ninguém vê. Foi por isso que acabou se construindo essa ideia do filme todo de noite. O filme acabou me mostrando que esse era o melhor tempo pra deixar as coisas.
Você falou sobre uma ideia de literariedade que queria trazer para o relato do Fael. Isso se relaciona de alguma forma com o relato do Juninho no Arábia, só que ali há uma voz off a partir dos escritos de um caderno, e no caso do Sete Anos em Maio nós vemos o Fael relatando aqueles fatos. Como isso trouxe um desafio diferente, e de que maneira isso foi trabalhado com o Fael?
Acho que a primeira coisa era, antes de pensar no desafio, pensar na potência. Arábia já era algo estimulante pra gente (pra mim e pro João Dumans): pensar que enquanto estava passando uma imagem a gente podia contar no off coisas que tratavam de seis, oito anos da vida de um personagem, ou que enquanto a gente via um plano a gente podia narrar uma morte, ou uma mudança de destino, ou uma mudança de amizade entre personagens… com a imagem a gente podia ver coisas e acontecimentos não só de largos períodos de tempo, como de muita importância.
No caso do depoimento do Fael era uma aposta inclusive até mais radical. Ele vai estar falando, só que na verdade tudo que ele vai estar falando a gente vai poder imaginar. Então essas palavras na verdade são imagens, elas estão gerando imagens na nossa cabeça o tempo todo. A gente vai ter que tentar figurar e imaginar tudo isso que ele está dizendo ali.
Isso foi outra coisa que ficou muito clara pra mim quando percebi que o tempo deveria ser de concentração no relato. Quanto mais concentrasse, quanto menos distração formal, menos criação minha tivesse no relato dele, mais a liberdade de imaginação do espectador estaria liberta, entendeu? A ideia era dar mais liberdade para o espectador poder imaginar as coisas. Não dar muito desafio para ele ter que ficar vendo ali naquela hora, ele vai ter que ver de outra maneira, dentro da cabeça dele, e as palavras é que vão conduzir para essa imaginação. O que ele está dizendo é o que vai conduzir para aquilo que a gente está imaginando. E isso pra mim me estimulava bastante.
Depois que eu entendi qual tinha que ser a duração, a extensão desse relato, falei: “sim, agora é o momento de trabalhar isso como material verbal-cinematográfico”. O que pode ser a palavra no cinema? A palavra no cinema pode ser imagem. Como pode ser imagem? A imagem pode ser tanto no nível material, uma palavra que aparece como imagem – como um letreiro, como um texto, como um poema, como um insert -, mas também pode ser como uma condução, uma sugestão, um convite para uma imagem que ainda não se formou na tela do filme.
Acho que esse é um poder muito forte que o cinema consegue trazer para a palavra. Isso tem a ver com literatura também, porque no livro a gente opera dessa maneira, mas a diferença é que no cinema a gente ainda está vendo alguma coisa, nem que seja ele falando ali. E ele falando ali, por mais que seja uma relação menor – não se tenha tantas imagens para combater, para brigar com as imagens que a gente está gerando no acontecimento dele -, ainda assim ela ajuda a gente a imaginar, porque a gente vê o rosto dele, a gente vê as reações, a gente vê o olhar, tudo isso vai ajudando a gente a imaginar e a sentir o que a gente está imaginando. Então se a gente está imaginando o desmanche em Cotia, a gente vê a cara dele, a gente vê a expressão dele falando “essas duas semanas são as que eu mais lembro da minha vida”, e nesse momento o desmanche muda na nossa cabeça. Por mais que seja diferente o meu desmanche daquele que você imaginou.
Então esse era o jogo: como que ele contar ajuda a gente a dar o tom do que a gente vai estar imaginando só pelo que ele está contando. Isso me parecia muito interessante, um desafio estimulante. Ao mesmo tempo isso, pra funcionar, precisa de um envolvimento com o espectador. Porque se ele se perde, se a voz vira só uma melodia sem muito significado, as pessoas não vão conseguir fazer isso, não vão imaginar, não vão entrar na onda do filme.
E se fosse uma coisa muito crua, muito, muito, muito documental, eu pensava que esse tipo de imaginação ficaria um pouco mais dificultada, sabe? Essa é a minha impressão. Porque aí fica uma coisa tão do imediato que todos os olhares vão para aquele momento. Eu acho que a ficção te convida a imaginar porque você já sabe que aquilo de certa maneira está sendo construído. Você constrói na sua cabeça porque você sabe que aquilo está sendo construído de alguma maneira. Enquanto o documentário puro e simples, mais tradicional, é muito do imediato, você vai ficar sempre ali naquele momento, sabe?
Como então que eu consigo fazer tudo o que estou querendo e ainda levar esse relato para um lugar mais literário? Para mim foi uma coisa de tentar achar um nível de construção bem preciso, que ao mesmo tempo fosse fiel e respeitoso ao momento dele, de contar a narrativa, o que ele viveu, e fosse atraente, conseguindo construir uma história que pudesse ser envolvente, que as pessoas não se perdessem e não abandonassem o laço com o relato em nenhum momento. E que desse pra perceber que tem ali uma construção, uma força.
Trabalhei isso de três maneiras. A primeira foi pelo texto mesmo, que a gente gravou várias vezes. Ele viveu muito mais coisas do que aquilo, então o que tem no filme é uma seleção de acontecimentos. A ordem é mesmo essa, mas tem várias elipses que eu fui fazendo com ele no texto. Eu falava: “agora você não conta essa parte, agora você conta essa parte.” A gente foi repetindo até que, durante a filmagem da primeira etapa, acho que no terceiro dia, eu sentei com o Fael e a gente fez uma escaleta com a ordem dos eventos: “óh, você vai falar nessa ordem, e só isso aqui. Outros momentos, outros acontecimentos, não precisa contar. Quero só isso. E nessa ordem.” Que era a ordem mais ou menos que tinha acontecido mesmo.
A ordem era importante para ele saber o que tinha que pular, mas a escaleta não tinha as palavras exatas, isso era ele que ia trazer: as palavras exatas para narrar e contar as coisas. Eu fazia, quando a gente repetia, algumas alterações pontuais: “não usa essa palavra, fala isso assim, fala isso assado.” Mas a construção geral do relato, depois dessa instrução da escaleta, era ele que fazia. Então aí pra mim teve um processo de construir um texto, sabe, mesmo que seja uma construção mais sutil. E esse texto foi tomado como texto, era uma guia para a ordem das coisas que ele ia falar, uma guia para o trabalho de atuação dele, sabe?
Outra coisa foi pensar o trabalho de atuação propriamente dito. Achar o lugar da câmera, achar a posição dele em relação à câmera. Filmei várias vezes isso: em alguns momentos ele ficava mais frontal, em outras mais lateral. Era achar esses 3/4 ali, que é um ângulo que podia tanto fazer parte de um diálogo quanto também ser um ângulo de entrevista, e isso me tomou um certo tempo. Achar o ponto certo pra relação dele com a câmera.
A partir disso também, teve a coisa de estabelecer com ele uma direção do olhar, estabelecer os momentos em que ele ia olhar pra baixo e quando não ia, em que ele ia respirar. Esses trabalhos de atuação mais básicos mesmo. Direção do olhar, respiração, pausas… A postura corporal era mais simples, porque ele estava mais sentado, então não tinha muita coisa. Então teve isso: um mínimo trabalho de direção que deu ferramentas para ele trabalhar com o texto. E acho que ajudou também a trazer um pouco dessa coisa mais construída pro relato.
E aí o terceiro trabalho com o texto, que eu acho que ajuda a trazer essa construção, é o próprio texto em si, no sentido de que não só tem essa coisa de a gente ir burilando ele aos poucos – ir deixando as coisas mais lacunares, fazendo sugestões de enumerações -, mas também da insistência, de escolher fazer o texto nessa dimensão, de ele não parar no acontecimento traumático, de mostrar as consequências daquilo ali tudo. Isso também foi uma decisão que reforça esse acontecimento mais literário, porque mostra uma grande jornada, mostra que a vida desse sujeito está se transformando em um grande épico também, um épico do escape, um épico da fuga.
E eu acho que ver isso desse tamanho, sem saber nunca onde vai parar, porque a principal coisa parece que já passou no relato, leva à pergunta: “O que vai vir mais?” Acho que isso também faz com que a gente – no meio do caminho, quando estamos ouvindo – renove nossas ideias com o relato de outra maneira. “Bom, estou aqui por outra coisa, não é mais para saber o que aconteceu. Estou aqui para ouvir uma vida. Então deixa eu seguir aqui e entender esse conto.”
Você falou agora há pouco que queria gerar um envolvimento do espectador, não sei se no sentido de empatia, de criar uma conexão inicial para que aquele relato possa tocar as pessoas que estão vendo. Nesse sentido, queria que você falasse sobre a primeira cena, que é a reencenação de uma das coisas que ocorreu com o Fael. Acho que ela, assim como a terceira parte, traz algo de lúdico. Um lúdico completamente soturno, é verdade. Então queria que você falasse tanto sobre essa ideia de lúdico dessas duas partes, quanto se essa primeira parte tinha um pouco essa intenção de gerar conexão com o espectador, para aí então entrar no relato mais frontal.
Antes de tudo, não sei se necessariamente (a palavra é) empatia. Mas também não sei qual é a palavra certa. Pra mim é uma questão mais simples mesmo, de não fazer o filme ficar muito chato. De não transformar ele falando em algo muito formal, como se fosse um filme hiperexperimental, em que parece que eu não me importo tanto com o que a pessoa está falando, que o que importa é o gesto de falar. E aí na verdade as falas ficam parecendo melodias.
Existem filmes mais áridos em que as pessoas podem falar por uma, duas horas na frente da câmera, e aí é difícil de você manter uma atenção durante todo esse tempo, então na verdade o jogo é outro. E eu não queria esse jogo mais experimental, mais formalista; neste caso, o conteúdo também importava. Tinha que ouvir a história desse cara, e tinha que ouvir bem, porque é dela que vem o coração do filme. Então eu queria de toda maneira evitar que esse relato fosse tomado só como material formal, visto só como instrumento de discussão formalista do cinema. Não, aquilo pra mim é um registro de vida importante.
Então eu falo de conexão e de laço pra fazer justamente o que eu acho que é o contrário disso, que é fazer as pessoas ouvirem, estarem ali pra ver, independentemente de elas terem empatia ou não. Embora, assim, o conteúdo do filme é tão violento, e é tão bárbaro o que aconteceu com ele, que é difícil alguém não ter empatia. Mas sei lá também, o mundo está muito estranho, então tem seres humanos de todas as formas, pode ter alguém que não tenha empatia.
Mas a coisa do lúdico… certamente essas duas cenas são pensadas com um aspecto lúdico, mas o lance é que foi na montagem, por exemplo, que a cena da reconstituição veio antes. Inicialmente, quando escrevi o primeiro roteiro, ela fechava o filme. E nem tinha o “vivo ou morto”. Isso apareceu só durante a filmagem, que eu tive a ideia, falei com a produção, o pessoal gostou e conseguimos levantar 40 pessoas pra fazer a cena. Mas a reconstituição nem vinha no começo, não tinha esse jogo de passar de um registro para outro.
Na montagem é que a gente trouxe ela lá pro começo e nos pareceu bom. Porque na verdade menos do que construir uma passagem mais linear – uma passagem da imaginação para a realidade, do lúdico pro duro, do lembrado pro vivido – o mais interessante era construir um certo embaralhamento de cartas, das representações. Não tinha uma linha tão linear na condução da representação, era até meio bagunçado, sabe? Só que pra gente ficou mais interessante porque parecia que essas coisas se comunicavam, e de certa maneira parece que é o filme, e, sob o meu ponto de vista, o cinema, tentando dar forma de retratar um acontecimento. São três maneiras: uma mais performática, outra mais alegórica e outra mais realista, e ainda por cima tem a coisa mais ficcional ali quando acontece o diálogo. São várias maneiras de o filme tentar representar o que aconteceu.
Quando a gente chegou para finalizar a montagem essa cena (da reconstituição) nem estava no corte. Quando a gente viu, falou: “não, tem que ter, tem que estar. Ela vai deixar o filme menos preciso, meio bagunçado, mais heterogêneo”, só que tem hora que a gente tem que ser honesto. O que a gente conversou muito, eu e João (Dumans), foi que fazer do filme essa coletânea, esse ensaio, essa espécie de ensaio sobre as diferentes formas de o cinema retratar esse acontecimento era também uma forma de ser honesto com relação a mim mesmo, à minha relação com esse filme e ao processo de fazer ele, que era sempre tentar buscar a maneira certa, a maneira correta de falar e de mostrar isso.
E era um acontecimento difícil de mostrar, porque ele é infilmável, ele não é conhecido – só é conhecido enquanto notícia de jornal por parte da população -, não tem uma imagem muito bem formada na nossa cabeça do que seria esse tipo de acontecimento. E ao mesmo tempo é perigoso retratar isso sem cair num maniqueísmo puro e simples, sem cair nessa coisa de vitimização, bons contra os maus, sem deixar a coisa tão preto no branco.
O fato de deixar todas as minhas tentativas de lidar com ele talvez fosse a coisa mais honesta para poder representar o filme. Então quando chegamos a esse corte, falamos: “o filme é isso.” Está dando voltas também em torno do seu fato gerador. E a gente está aí com quatro formas dele, e do cinema, por extensão, tentar reconstruir esse acontecimento. Isso acabou sendo o filme, e essa é a história do filme mesmo.
O média-metragem é um formato que vive num limbo histórico. Para alguém chegar a um filme de 42 minutos, imagino que seja porque efetivamente acredita que o tempo do filme é esse. Se desse para aumentar ou diminuir para a minutagem padrão dos curtas e longas, imagino que seria feito. No caso do Sete Anos em Maio, como que isso se deu?
É um negócio muito louco. Muitos amigos, quando leram, pensaram que podia dar um longa-metragem, e eu nunca pensava muito nisso não. Porque, como eu te falei, pra mim, se o filme fosse maior, com os elementos que ele tem, seria arriscar chegar nesse lugar que eu não gostaria de jeito nenhum, que era transformar esse relato em algo meramente formal, era deixar estender tanto o relato do Fael a ponto de a voz dele virar uma melodia, virar uma outra coisa, uma abstração. E isso eu não queria de jeito nenhum.
Achava que tinha um tempo justo em que a gente podia ouvir bem tudo que ele está falando, e penso que esse tempo justo é mais ou menos o que dura o relato dele mesmo. Não sabia exatamente, mas tinha a sensação de que era em torno de 20 minutos. Fui filmando as outras cenas, vendo o que podia participar desse filme, dentro desse princípio mesmo de tentar formas de o cinema dar conta desse acontecimento. Tentar fabular, tentar imaginar esse acontecimento em imagem de alguma forma. Filmei essas cenas, filmei outras que não entraram, e tal. E quando a gente chegou nesse primeiro corte…
Antes, quando não tinha essa reconstituição, o filme tinha 30 minutos, o que já era um curta longo, mas teria mais carreira em festivais de curtas. A gente foi fazendo, estava gostando, estava interessante, mas quando a gente viu essa cena e testou colocar ela no corte, falamos: “não, não faz sentido, essa cena (da reconstituição) precisa estar no filme, tem uma coisa nela que é importante, pelo que ela constrói, pelo que ela traz de valor pro filme.” Pelo que ela mostra também do meu processo no filme, do que eu construí com esses meninos, de uma experimentação ali de tentar representar um acontecimento violento entre eles mesmos, aquele cenário que a gente achou por acaso, surrealista, pegando fogo. Tinha uma força ali que pareceu, para mim e pro João, um grande desperdício: perder essa cena por causa de fazer o filme virar curta e ter mais chance de entrar em festivais, isso era uma bobagem. Pra gente a cena era mais importante.
Aí ela entrou e ainda mudamos algumas coisas. A gente tinha testado um corte no depoimento também, por isso que estava com 30 minutos. E foi outro erro absurdo tentar cortar uma parte desse depoimento, ele tinha ficado com quatro minutos a menos. Então quando colocamos essa cena da reconstituição a gente entendeu que o filme teria que ser um média-metragem mesmo. A gente ia fazer um filme com mais dificuldade de rodar, só que em nenhum momento isso nos desestimulou. O que mais importava para nós era o filme, o filme vinha em primeiro lugar. Quando a gente achou as cenas que a gente queria que estivessem no filme, o filme marcou a sua duração. Virou média, então beleza. Não vai ter tanto lugar (pra ser exibido), mas está bom, pelo menos o filme vai sair como eu quis, como eu reconheço ele melhor.
*O repórter viajou a convite do 8º Olhar de Cinema