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Formas de voltar para casa: Karim Aïnouz fala sobre A Vida Invisível

29/10/19 às 19:49 Atualizado em 30/01/20 as 17:03
Formas de voltar para casa: Karim Aïnouz fala sobre A Vida Invisível

Desde que apresentou A Vida Invisível na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, em maio, e saiu de lá com o prêmio de melhor filme, Karim Aïnouz tem circulado muito com a obra por todo o mundo. Nas inúmeras entrevistas que deu, o tema da ligação entre o novo longa-metragem e o seu primeiro trabalho, o curta Seams (1993), nunca havia sido aventado.

“Uma das coisas que me cativaram muito quando eu li o romance [escrito por Martha Batalha no qual o roteiro se baseia] é que de uma certa maneira o Seams é um pouco um instantâneo, um snapshot da geração da minha vó, e eu acho que o A Vida Invisível é exatamente a mesma coisa sobre a geração da minha mãe, através de um outro gênero”, conta Karim.

A trama de A Vida Invisível se passa no Rio de Janeiro dos anos 50, onde as irmãs Eurídice e Guida acabam sendo separadas pelo pai e forçadas a viver distantes uma da outra. O filme, que estreia nacionalmente no dia 21 de novembro, foi exibido na 43ª Mostra de São Paulo, ocasião na qual o cineasta conversou com o Cine Festivais.

Se quiser ouvir a conversa no podcast Cine Festivais Entrevista, clique no player abaixo (a entrevista começa com 4:11). Se preferir ler a transcrição, acompanhe o texto a seguir.

Cine Festivais: Muitas vezes se diz que o primeiro trabalho de um diretor é um trabalho ao qual…

Karim Aïnouz: O diretor retorna, né?

Exato. Reverbera em outros trabalhos dele. O Seams é um filme de mulheres – tias, mãe, avó -, e é um trabalho que, de certa maneira, também fala do impacto da ausência do masculino. Em A Vida Invisível, o masculino propicia uma certa ausência de perspectiva maior na vida daquelas mulheres, né? Então queria que você falasse o quanto o Seams continua importante, e como você relaciona ele com A Vida Invisível.

Que ótima a sua pergunta. Cara, o A Vida Invisível revisita o Seams a partir de um outro gênero. O Seams é um filme autoetnográfico, eu diria, no sentido clássico. É um filme que fiz quando não morava no Brasil. Vim para cá e filmei com a minha vó, queria fazer um retrato dela, e fiz o filme que foi feito.

Quando fui fazer o A Vida Invisível, uma das coisas que me cativaram muito quando eu li o romance é que de uma certa maneira o Seams é um pouco um instantâneo, um snapshot da geração da minha vó, e eu acho que o A Vida Invisível é exatamente a mesma coisa sobre a geração da minha mãe, através de um outro gênero. No filme o gênero predominante é o melodrama, mas acho que é um gênero meio híbrido. Quer dizer, ele tem algo de épico, que não é um gênero, mas, enfim… é um relato épico, é um relato epistolar. Então quando comecei a fazer o A Vida Invisível, quando li o livro, fiz muito por conta de ter feito o Seams, e não me dei conta durante o processo – você se dá conta de algumas coisas só depois – que a narrativa epistolar está presente no Seams com duas camadas, né? Tem as cartas da minha mãe e tem um pouco não de narrativa epistolar, mas a história sobre aquele personagem fictício, que o marido vai embora e ela fica sozinha esperando ele chegar. Acho que isso está presente no A Vida Invisível enquanto uma estrutura de pontuação do relato.

Além da questão formal, do ponto de vista conceitual eu acho que o Seams é sobre a ausência masculina e a respeito de como que a ausência masculina permite um fortalecimento dos que ficam, digamos assim, e uma reestruturação da família. Ele é sobre a ausência masculina a partir do ponto de vista de primeira pessoa, mas ele também tem uma certa ironia sobre a ausência masculina, seja ela pelo abandono, seja ela pela partida. O que eu acho que acontece no A Vida Invisível é também algo pautado pela… Eu não diria exatamente ausência masculina, mas eu diria por uma presença masculina que é muito mais tóxica.

Acho que tem algo no Seams que é muito específico, que é quando minha vó fala que ficou aliviada quando recebeu uma ligação dizendo que o marido havia morrido. A sensação que eu tenho no Seams é que esses homens eram muito frágeis, muito quebrados mesmo – tem uma tia que era casada com um veterano da Segunda Guerra Mundial, meu vô foi embora, minha outra tia não casou -, então existia ali uma fragilidade masculina que permitiu que essas mulheres ficassem mais juntas e mais fortes.

Acho que no A Vida Invisível é também uma coisa que eu não me dei conta durante o processo, de que há ali uma rede de solidariedade masculina que é altamente tóxica para aquelas mulheres. Então acho que o que há de diferente é isso, em um tem uma celebração muito positiva – tem uma coisa que eu digo ali no Seams que, pra mim foi muito libertadora, de eu ter sido criado numa família só de mulheres, então era tudo mais horizontal. Me lembro do plano no final, da conversa com a minha tia, aquilo meio que me libertou. Apesar das dificuldades de me colocar no mundo, dentro daquele contexto eu tinha uma grande liberdade.

No A Vida Invisível o personagem em que eu mais me vejo é o Chico, que é o filho da Guida (Julia Stockler). Não porque a Guida tem uma história idêntica à da minha mãe, mas é muito parecida. Então eu me coloco de forma diferente nos dois filmes, mas acho que realmente eu não só voltei ao Seams no A Vida Invisível, como voltei ao Seams em O Céu de Suely – não sei se explicitamente, mas é o mesmo locus. Porque O Céu de Suely é a história de uma mulher que tem um filho, que não necessariamente escolheu ter aquele filho ou ficar com ele, e quer ter o direito de abandoná-lo, como todos os homens abandonam a maior parte das famílias. No Brasil você tem uma sociedade que é machista, mas que é basicamente matriarcal, quem toma conta das coisas são as mulheres. O Madame Satã, meu primeiro longa, eu acho que é de outra enfermaria: é um filme gritado, uma explosão. Quando acabei de fazê-lo, eu quis voltar pro lugar do Seams, e foi com O Céu de Suely. E eu nunca tinha me dado conta que eu tinha feito o A Vida Invisível com cartas, e que o Seams tem cartas. Então, são as permanências que vão acontecendo…

Em outros filmes seus, como o Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, O Céu de Suely, e mesmo o Praia do Futuro, há uma coisa dos personagens que ou fogem da identidade deles ou buscam uma nova identidade, novas possibilidades de vida. Pensando em filmes dessa linhagem, gosto muito do filme do (Michelangelo) Antonioni, Passageiro: Profissão Repórter, que acho que é um filme que sintetiza um pouco essa discussão da identidade. Trazendo um pouco pro A Vida Invisível, de alguma maneira a identidade daquelas mulheres é tolhida pelos homens; a identidade que elas querem ter é moldada por essa estrutura patriarcal.

Sem dúvida.

Então eu queria que você falasse um pouco disso: como que essa discussão sobre identidades está presente?

Eu acho que nesses filmes, o Viajo…, o Praia do Futuro… , estou falando muito de uma diáspora da periferia pro centro, ou de uma diáspora gay, por exemplo. Tô falando muito de uma partida como necessidade pra você ter um outro contexto onde possa de fato assumir a sua identidade ou viver sua identidade plenamente. O Viajo… é a identidade de um cara que foi abandonado, inclusive trata de um heterossexual branco, é explicitamente sobre isso. Nesses filmes, o deslocamento é… Inclusive, no Madame Satã também. Apesar de ser uma elipse, o Madame… começa com ele criança em Pernambuco, e aí ele vai pro Rio de Janeiro. Acho que essa coisa da partida tem a ver com a minha sexualidade, com o fato de que eu nasci num local periférico – a gente pode achar hoje que Fortaleza é uma cidade de três milhões de habitantes, mas quando nasci era o fim do mundo aquilo ali –, então você tem sempre essa necessidade do periférico ir pro centro, isso está muito marcado como um movimento que de fato vai definir a sua identidade nesse contexto novo.

Foi muito bonito o que você falou do A Vida Invisível, porque é isso mesmo, são mulheres que poderiam ter sido, e elas não foram porque foram tolhidas por um sistema que não lhes permitia terem sido. Acho que a vocação da Guida era uma vocação da liberdade, e era uma vocação muito forte. Como a Fernanda (Montenegro) falou, “a vocação é incontornável”. Acho que o que salvou a Guida foi a vocação da liberdade. Não importa o que havia ali de obstáculo, ela ia vencer e seria o que ela queria ser, viveria como queria viver, mas a Eurídice (Carol Duarte) não tanto, porque ela também não era uma pianista tão extraordinária, acho que ela tinha uma meia vocação. Então, respondendo à sua pergunta, acho que tolheu sim, no caso da Eurídice. No caso da Guida, acho que ela conseguiu não viver a vida que ela não queria viver.

Inclusive a partir de uma troca de identidade.

Exatamente. A troca de identidade acho que também é uma troca de… É uma sucessão de linhagem feminina, no sentido de que acho que a Filomena (Bárbara Santos) é um exemplo de uma possibilidade utópica dentro de uma situação adversa, que é aquela coisa de ela ter uma creche, ser livre, ser sozinha. Acho que tem ali uma possibilidade utópica, e o que ela passa é essa tradição de uma mulher que tá fora da curva e que tem uma vida que é independente, que não está sob a égide do machismo.

Queria que você falasse um pouco da abordagem visual do filme. Me parece que há ali uma questão muito pictórica, tanto referente à textura quanto na relação com o quadro, com a moldura. Muitas vezes a gente vê espelhos, frestas… Pensando essa ideia do quadro, é um filme que trabalha muito com a questão da mobilidade e da imobilidade dessas personagens. Queria que você comentasse um pouco sobre isso.

Queria adentrar o gênero do melodrama, mas com algum ponto de vista crítico. Não dá também pra abraçar o melodrama uncritically, não tem como. Eu fiquei pensando muito em novela enquanto eu fazia o filme. A novela é filmada como era um programa de auditório, são três câmeras rodando ao mesmo tempo dentro da cena ali, né, e eu não acho que o texto do A Vida Invisível é tão diferente de um texto de novela. Quando você vai olhar pro papel, pro roteiro, ele não é tão diferente. O que acho que há de diferente é como você, espectador, se coloca na cena. Acho que é isso que faz a diferença.

Ele não é um filme que dialogue com os parâmetros do realismo, na verdade o que eu queria era o contrário, queria um espaço artificial. Por isso a época também, porque nessa época é muito mais fácil você criar um espaço de artificialidade, já que é um espaço que você não viveu, um espaço que você imagina. Então as cores fazem parte disso, de se criar de fato um espaço de artificialidade, de teatralidade, e de você nunca estar dentro da cena. Tem sempre alguma coisa entre você, espectador, e a cena, que faz com que exista um mínimo de distância crítica quanto ao que está acontecendo dentro da cena. Imagina se esse filme tivesse sido todo filmado com a câmera dentro da cena… Se eu botasse a câmera dentro (da cena), você teria outro filme, provavelmente um filme não muito bom. Seria um filme frontal, um filme sem mistério.

Quando você vai ver a história do melodrama, é isso: você tem close-up, você tem coisas através de espelhos… O bom melodrama, né? O melodrama que de fato te comove, mas não te puxa pela mão. Então essas foram coisas muito importantes na decupagem e na escolha das cores.

Tem também uma coisa muito simples: eu nunca filmei em digital e não acho a menor graça no digital. Acho chato, acho que é uma mídia que começou pra se filmar guerra, pra se filmar news, que começa para capturar a realidade de maneira rápida, e acho que o cinema é o contrário. Cinema é uma mídia em que você interpreta o real… A celuloide interpreta o real. O que você filma roxo às vezes é vermelho. Então tinha muita vontade também de a gente ver um filme que não fosse exatamente o que o seu olho vê.

E como essa preferência pela película impacta, por exemplo, na produção?

Tem duas coisas. Eu estudei em colégio militar durante sete anos, adoro disciplina, e acho que isso me ajuda muito a tocar um set de filmagem. A outra coisa é que com película cada fotograma custa dinheiro, então acho que ela te dá uma disciplina na hora de filmar e na hora de preparar que é muito importante. Eu tentei trazer essa disciplina pro digital (em A Vida Invisível) e aconteceu.

Teve uma coisa que fiquei realmente me sentindo até mal quando fiz, que é não cortar. Como alguns dias de filmagem eram muito apertados, eu só falava “deixa rodando”, “repõe”, e o contrarregra vinha, repunha, a gente rodava de novo. Mas eu evito demais fazer isso porque parece que o take não é sagrado, acho que perde uma certa aura que é o que eu penso que a disciplina da película te dá. Quando você diz “vai, som” e “ação”, o mundo para pra você. Acho que essa disciplina é muito importante para de fato adentrar um outro universo, que é o universo que você está filmando. E aí neste caso, como eu tinha muita experiência de set em película, eu imprimi isso pro digital e ignorei que era digital. Tanto faz, é um negócio que você tem que trocar cartão mesmo, como você tem que trocar chassi, então eu não fiquei pensando muito nesse tema “digital”. Estava filmando ali, tinha o suporte que não era película, era outro, mas pra mim era a mesma disciplina.

Mas ele tem uma textura que lembra…

Por que você tem mistério no cinema? Porque você não tem informação. Por que o Super 8 é tão fascinante? Porque ele tem menos informação. Então você projeta as coisas ali dentro. 16mm tem menos, 35mm tem mais. O digital é o oposto. A obsessão do digital é ter mais informação. Quanto mais pixel, melhor. Então o que eu fiz ali foi detonar o digital. Em vez de filmar com 800 ASAs (escala para definir a quantidade de luz), eu filmei com 9.600 ASAs. O que você tem mais pavor no digital é o tal do noise, e eu tenho noise até o fim do mundo. Por isso que a imagem é viva, treme. Quando você tem noise, ela fica tentando se ajustar, mas não é grão. O grão é uma partícula da celuloide, no digital é noise, e ele é meio vermelho, o que gostei muito porque é algo eletrônico. Achei que era bonito trazer essa textura para um negócio de época, provavelmente isso nunca aconteceria naquela época.

Então eu tentei trazer o digital para um lugar onde ele não só filmasse o real, mas interpretasse o real. Isso foi uma coisa. A outra coisa foi o uso de uma ótica da década de 50, uma lente russa, fixa, anamórfica, que não foi reformada. Fui a várias locadoras, seis na França, cinco na Alemanha, fui à Inglaterra, e foi aqui em São Paulo que achei um conjunto de lentes LOMO que não tinha sido reformado porque estava meio jogado na locadora. Então a luz que entra era filtrada por uma colimação que está errada, entendeu… Havia realmente uma vontade de usar o digital simplesmente como suporte, mas aí a questão da ótica, de como você trata ele, foi tudo pensado em função da história que a gente iria contar.

Pensando nessa questão do antigo e do moderno, outro dia eu entrevistei um diretor do Paraná chamado Tomás von der Osten, que me disse que tem um projeto de filme de época. Ele fez uma consultoria com a Lucrecia Martel na época em que ela estava no processo do Zama, e a Lucrecia o aconselhou a fazer uma pesquisa com relação ao modo como os personagens falavam naquela época, e o Tomás me dizia “não, eu quero que os personagems falem como hoje em dia, me interessa esse choque entre passado e futuro”…

Os corpos das atrizes não são corpos da década de 50, são corpos de agora. Se fossem corpos da década de 50, você teria que ter um outro tipo de movimentação, seriam muito mais amarrados por conta da própria silhueta do pós-guerra. Eu queria corpos contemporâneos, achava que era muito importante a gente ter um filme que se passasse na década de 50, mas que você pudesse se conectar pela atualidade dele, não pelo passado.

Eu tive muita dúvida, na verdade, porque eu não queria também fazer Maria Antonieta da Sofia Coppola, mas também não queria fazer um filme de época clássico. Então a gente primeiro fez uma pesquisa gigante de vocabulário da década de 50. Aí eu comecei a soltar isso nos ensaios, e me pareceu falso aquilo. Não falso… Me pareceu me distanciar do espectador. Então eu apostei num lugar que é um híbrido.

No Madame Satã, por exemplo, toda paleta de cor é calcada em pigmentos que não tinham petróleo, porque historicamente a paleta do plástico começa no pós-Segunda Guerra. Então no Madame Satã eu fui muito rigoroso com relação a isso. Aqui eu não quis saber, entendeu. Falei: “Não, eu quero que na verdade tenha um ponto de acesso no relato que seja feito através da visualidade, da fotografia, da interpretação”. Elas falam gírias às vezes dentro do filme, e isso me interessa muito, porque acho que sempre que você vai pra esse outro lugar, tem uma sensação meio de nostalgia de um real ou de um passado, e pra mim nostalgia e fascismo estão juntos. Então eu realmente queria evitar tudo que fosse nostálgico.

Pensando ainda nessa porosidade entre o antigo e o novo, eu queria que você falasse um pouco das elipses, que são um recurso formal marcante no filme. Acho que as elipses são muito duras, secas. Eu me lembrei, por exemplo, do L’Apollonide, do Bertrand Bonello, que tem uma das elipses recentes que acho mais impactantes. Queria que você falasse sobre a dureza dessas elipses.

Olha, foi difícil. É um leap of faith, um salto de fé. Não era assim durante o roteiro. Durante a filmagem eu comecei a colocar umas coisas entre um tempo e outro, e aí teve uma hora em que eu falei que a elipse tem que ser… O único jeito de você acreditar nela é se você estiver junto do personagem, então foi uma aposta que foi muito lá no final da montagem, mas que fico muito orgulhoso dela.

Essa era uma das grandes dúvidas que eu tinha sobre esse projeto quando comecei a fazer. Porque no livro são elipses de 15 anos, são muitas elipses. No filme eu fiz em dez anos, para ter menos tempo de elipse. Tenho um certo problema com elipse como multiplot porque parece que é feito pelo diretor, e não pelo personagem. Odeio multiplot, e isso para esse filme era um problema, porque é um filme de duplo protagonismo. Falei: “Porra, não vou dar conta de fazer esse negócio nunca”.

Então tinha alguns desafios. Como que você passa de uma pra outra? É por um batimento cardíaco, porque se não for, é artificial. Então é realmente num batimento cardíaco, quase como compor música; se a gente pensa como compor música, dá certo. Foi um risco que eu experimentei ali. E também é o seguinte: estamos em 2019, tem algumas coisas que a gente não deve mais explicar.

Uma última coisa que eu queria dizer com relação às elipses: não sei se todas funcionam, mas elas trazem um elemento de surpresa para um filme que é linear, mas mais ou menos. Ele é causal, mas mais ou menos; é causal dentro dos capítulos, mas não é tão causal assim. Então você tem que fazer com que alguma coisa acelere ou dê dinâmica à narrativa, e aqui a elipse dá, porque ela é surpresa. Acho que ela injeta uma voltagem que às vezes… Eu vi o filme ontem pela segunda vez; vi em Cannes, mas dormi, estava exausto, e odeio ver filme meu. Ontem eu vi o filme porque o Rodrigo (Teixeira, produtor) estava lá, a Fernanda (Montenegro) estava lá, e acho que o filme claudica em alguns momentos. Fiquei com vontade de sair da sala duas vezes, falei “ah, meu Deus, esse negócio não anda”. Apesar de ele ser um filme clássico, ele não é um filme que está pautado por uma causalidade clássica. Então era um pouco me perguntar “como é que eu tiro a causalidade e injeto um elemento-surpresa dentro da trama?”

A gente está falando muito dessa relação entre o velho e o novo, e como espectador, vendo a Fernanda Montenegro aparecendo em tela, eu imediatamente sou remetido a todo um imaginário, né? Me parece que vendo a Fernanda Montenegro eu estou vendo o Brasil, a história do cinema brasileiro. Queria saber se durante a filmagem você tinha a noção disso…

Não, não tinha…

… e quando que caiu a ficha?

A ficha caiu quando eu decidi não botar um contraplano na cena onde a personagem está falando com a sobrinha-neta. Ali caiu a ficha. E caiu a ficha aos 47 minutos do quarto tempo. Teve uma hora em que eu estava com a montadora, e a montadora odiava aquela cena porque, assim, a aposta daquela cena é patética, tem o pessoal numa mesa, um lugar horroroso. Eu errei ali em tudo, a luz, tava tudo cagado (risos) Sabe aquele dia de filmagem que você tem que correr porque tem a Fernanda, tem que acabar, não sei o quê? Era numa escola, tinha criança. Foi um horror. Aí ficou aquele cobogó, tava mal enquadrado, queria jogar aquela cena no lixo. Aí a montadora (a alemã Heike Parplies) ficava voltando e eu falei: “Sabe o quê? Não volta não, deixa eu ver esse plano aqui sem voltar. Por que eu preciso ter um contraplano de uma personagem que não preciso saber direito quem é?” Ela é um dispositivo narrativo aquela menina. Aí fiquei naquele plano. E tinha sido na semana em que eu vi Assunto de Família, do Kore-eda, e no final desse filme tem um plano da personagem principal sendo interrogada pela polícia que é uma das coisas mais sublimes que eu já vi na história do cinema, porque todas as emoções passam pelo corpo daquela atriz. E eu tinha isso com a Fernanda naquele plano e não estava vendo.

Agora, tem um gesto explícito que é filmar no Pedregulho, que é onde foi filmado o Central do Brasil, tem a coisa da carta… então claro que tinha ali um flerte com o Central do Brasil especificamente, mas não com os outros personagens que ela fez. E quando naquele momento fiquei olhando para aquele quadro o tempo inteiro eu vejo as Eurídices, eu vejo todos os personagens, vejo a Petra von Kant, vejo tudo que ela fez ali, mas não que eu tivesse visto quando estava filmando.

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