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O apagamento do trabalho e a violência latente: uma conversa sobre Mascarados

09/04/20 às 13:40 Atualizado em 24/09/20 as 17:27
O apagamento do trabalho e a violência latente: uma conversa sobre Mascarados

Ao filmar um curta-metragem em Pirenópolis (GO) em 2011, Marcela e Henrique Borela tiveram contato com a exploração mineral da região através das pedreiras. Ao mesmo tempo, notaram o apagamento dos trabalhadores daquela atividade: “A gente via a pedreira, via a fratura na serra, e não via os trabalhadores. Parece que quanto mais procurávamos saber, menos estava disponível”, recorda Marcela. Começou aí a escrita do argumento de Mascarados, filme exibido no último mês de janeiro na Aurora, seção competitiva de longas-metragens da 23ª Mostra de Tiradentes.

Para realizar o filme a dupla contou com nomes conhecidos do cinema contemporâneo brasileiro, como Affonso Uchôa (Arábia, A Vizinhança do Tigre), Juliana Antunes (Baronesa) e Wilssa Esser (Temporada), já acostumados a trabalhar em projetos nos quais a proposição da ficção não deseja esconder ou anular os atravessamentos do real. “A situação ficcional fez emergir um relato documental ali. A gente deixava que os personagens definissem o limite a partir do qual eles iam se colocar num contexto de violência”, exemplifica a diretora.

Marcela Borela e Henrique Borela conversaram com o Cine Festivais em Tiradentes a respeito das contradições entre ambientalismo e sustento da região, memória da escravidão e o processo de realização de Mascarados, entre outros assuntos.

A equipe de Mascarados no palco da 23ª Mostra de Tiradentes

Vamos começar organizando o filme recente dentro da carreira de vocês. A Marcela já produziu e dirigiu alguns curtas-metragens e o Henrique iniciou a carreira em Taego Ãwa (2016) [documentário de longa-metragem co-dirigido por Marcela e Henrique Borela]. Como Mascarados entra na vida profissional de cada um de vocês? De que formas ele se relaciona com Taego Ãwa e com os trabalhos anteriores?

Henrique Borela: Comecei a trabalhar com cinema pela ajuda da Marcela. Ela começou a fazer cinema antes de mim, e era a possibilidade de ganhar alguma grana. Eu era estudante e ela me colocava em umas produções: fiz assistente de elétrica, de maquinária, de som, de produção, de câmera, e de direção. Fiz o meu primeiro trabalho audiovisual em 2011, um curta-metragem chamado Eu Kalunga, em referência a um filme do Rouch [Jean Rouch, documentarista francês]. É um filme que parte do meu trabalho com antropologia. Sou formado em Ciências Sociais, e a área a que eu mais me dediquei foi a antropologia. Que é o que nos liga, me liga ao Taego [Taego Âwa, primeiro longa-metragem dos dois diretores], à pesquisa etnográfica e de campo, ao material de arquivo. A minha monografia de final de curso foi estudando o material fotográfico que está no Taego Âwa. A gente fez um filme com o pessoal dos assentamentos de Goiás, que é o Sob os Nossos Pés (2014), fizemos no acampamento, na verdade. Fiz um curta-metragem chamado Porfírio (2015), que passou na CineOP [Mostra de Cinema de Ouro Preto], sobre um desaparecido político. Porfírio foi o primeiro camponês eleito deputado federal, uma história curiosa. Então, esse é um pouco o meu trabalho, e o Mascarados vem desse processo. Desde que a gente começou a pensar o filme, em 2011, a Marcela se mudou para Pirenópolis, e a gente começou a tentar se aproximar desse universo dos trabalhadores das pedreiras…

Marcela Borela: No atravessamento eu fiz muita coisa, muitas tentativas de trampar com cinema. Os filmes que eu queria fazer foram aparecendo, mas eu era muito só, meio tratorzinho e meio solitária. Eu e o Henrique temos seis anos de diferença, eu tenho 36 e ele tem 30. Então quando ele fez a virada para a vida adulta, se formou na universidade, ele reencontrou as fitas que eu tinha guardado uns anos antes, e na verdade o Taego só existe por isso. O interesse dele por essas imagens de arquivo fez com que a gente se juntasse e fizesse o filme. Quando escrevemos a primeira versão do argumento do Mascarados, a gente ainda estava filmando Taego. A gente estava trabalhando muito juntos naquele momento. Eu tinha morado em Pirenópolis, o Henrique, com o Eu Kalunga, tinha tido a experiência de filmar mascarados [a festa] e juntou essa relação com o trabalho nas pedreiras. A gente via a pedreira, via a fratura na serra, e não via os trabalhadores. Parece que quanto mais a gente procurava saber, menos estava disponível. E a caminhada da pesquisa era sempre essa: você vai entrando num buraco e vai ficando mais profundo, a luz vai diminuindo, e quanto mais você entra, menos você sabe. Então é um filme que no processo ele atualizou este mistério o tempo todo e, na verdade, ele atualiza até hoje. Aqui mesmo, nas conversas com o público… eu tô sentindo muito isso, sabe?

É o nosso segundo longa, nossa segunda codireção, e talvez seja de alguma maneira uma despedida. A gente aprendeu muito trabalhando juntos, mas a gente também percebeu, com muita tranquilidade, que talvez as maneiras de filmar, agora, sejam diferentes. O Henrique está filmando numa mina de esmeraldas há muitos anos, ele desce 400 metros de profundidade. Eu não tenho a menor condição porque sou claustrofóbica (risos). Também é um ambiente muito masculino… pra mim é um desafio muito grande, é um pouco como eu sinto agora. Quis filmar mundos mais masculinos, na verdade. E dizer que eu quis não é dizer que foi consciente. Pra mim era muito importante trabalhar com homens: o Henrique, o Rafael [Rafael Parrode], que é um grande parceiro. Porque na verdade o meu corpo não funciona bem nesses espaços, são coisas que eu não faria da minha cabeça, não faria sozinha. É uma experiência que de fato eu compartilho com ele e estou nela por causa dele também, entendeu? Meu corpo não sustenta a direção de um filme desses sozinha, esquece. Daí veio essa percepção agora de filmar mulheres, filmar questões femininas, e talvez ficar um tempo sem filmar, escrevendo mais. A gente notou essa diferença; eu tenho uma obsessão com a escrita, fico um tempão escrevendo e não me angustio. Já para o Henrique ficar só na escrita para é angustiante, ele precisa estar filmando. Então as coisas estão se diluindo, e agora na apresentação do filme a gente vê isso. A gente gosta sempre de falar os dois juntos sobre o filme, porque a experiência não nos atravessa do mesmo jeito.

Henrique: É, nós não temos um mesmo discurso sobre o filme, a gente discorda sobre algumas coisas…

Isso é ótimo, e talvez essa tensão esteja um pouco no filme também. Bom, eu tinha uma questão que estava mais pra frente, mas que vou puxar em função do que você falou sobre as mulheres. A festa do Divino Espírito Santo parece bem masculina, como grande parte das manifestações populares. Uma curiosidade: neste caso apenas os homens se mascaram? Vocês tiveram contato com mulheres que participam da festa mascaradas também?

Henrique: Existe a participação feminina na festa, inclusive elas têm um grupo chamado Das Índias, porque tem os índios e tem as índias. É um grupo gigantesco de mulheres que saem mascaradas. Elas se juntam inclusive para ter a possibilidade de sair na festa. Sair sozinha é complicado porque a festa também é uma experiência de criminalidade. Como é também o universo do trabalho. E o trabalho também é um universo bem masculino, apesar de ter mulheres que chegaram a trabalhar na pedreira, em um número muito menor. Inclusive tinha um personagem, a Ana, que está em uma das sequências. Foi uma tentativa nossa de colocar ao menos uma mulher trabalhando ali na pedreira. A gente até chegou a filmar uma possibilidade do roteiro, o Vinícius se apaixonava por uma mulher no filme, mas acabou que não deu muito certo. Pra nós era muito importante a musicalidade, o trabalho, a festa e o amor, né? Porque isso está nas músicas sertanejas, está na nossa vida, a gente vive de amor, tem que ter amor. Só que não deu o amor na mise-en-scène da ficção. Não surgiu… Então o amor acabou ficando uma coisa entre os amigos. Mas sim, elas participam da festa, e a gente até filmou o grupo Das Índias. A irmã do Marcilei, que está no filme, aquela que sai de moto, é Das Índias. A gente tentou filmar, mas ela tinha um pouco mais de dificuldade no processo de ser filmada. Como a gente concentrou muito nos meninos, a gente não conseguiu desenvolver com elas essa ficção. A gente acabou não conseguindo colocar isso no filme.

Marcela: É bem isso. Havia uma personagem feminina no roteiro e realmente… uma coisa que dá pra notar: o filme não se propõe a realizar em cena algo que fosse muito distante do universo dos personagens. O Vinicius [ator-personagem do filme] tem uma companheira, ele é apaixonado por ela, e para ele não era viável. Não havia esse tempo, porque ele é esse ator-personagem, ele é ele mesmo, e era pedir demais pra ele, entende? A gente tentou um pouquinho e a gente viu: “não é por aqui”. Então o filme deixou de ir pra lugares que uma ficção iria. Eu li hoje uma crítica [sobre Mascarados] e a impressão que eu tenho é que o crítico atribui à forma do filme coisas que não são da forma do filme. Eu acho que tem essa coisa do filme híbrido: se você olha mais para a ficção pode ver controle onde talvez não tenha, e se você olha mais pro documentário, você vê registro onde talvez não tenha. Mas o filme realmente é muito marcado por essa lógica do possível dentro da experiência, do universo, do corpo de cada personagem.

Uma das maiores qualidades de Mascarados é a forma como ele surpreende em relação ao desenvolvimento da narrativa. Nossas expectativas são frustradas (para o lado bom) diversas vezes. Principalmente em relação ao que a máscara representa: achamos que a máscara será o elemento libertador no filme, mas a liberdade vem por outros meios. Vocês poderiam falar um pouco sobre as questões políticas que contornam o filme? Sobre essa catarse que não acontece, sobre como no contexto do documental que existe ali ela acontece ou não?

Marcela: Talvez no nosso imaginário inicial existisse um desejo de catarse. Talvez a gente tenha pensado assim porque são muitos os relatos, as histórias permeadas pela violência. Existe uma violência praticada pelos mascarados, isso está ali. Só que os mascarados que cometem esses pequenos delitos já são marginalizados e já são oprimidos por causa disso. Além de serem oprimidos fora da festa, porque a maior parte deles são trabalhadores das pedreiras, são moradores do Alto Bomfim, que é uma imensa periferia, um bairro operário maior que o resto de Pirenópolis, e que fica em frente à pedreira. Na verdade foi uma questão ética para nós. A gente cogitou isso, escrevemos cenas em que há uma liberação dessa pulsão: a violência me atinge e eu revido. Mas houve um momento que nos pareceu tanta ação e reação, tanto o ciclo da violência. E será que se a gente fosse adiante na catarse, no fetiche da violência, a gente ia criar uma atmosfera para que os espectadores percebam e se afetem pela injustiça que esses trabalhadores sofrem? Então foi uma decisão. Esses trabalhadores sofrem muito mais violência do que praticam.

Há uma história antiga do século XIX, quando o ciclo do ouro já tinha acabado e era um momento de decadência. Chegou um holandês a Pirenópolis com uma máquina de retirar ouro e que jogava os dejetos no rio. A população ia avisando: “olha, tá poluindo o rio, tá poluindo o rio”. Cinco anos daquela situação e a população se revoltou. As autoridades não faziam nada, o cara tava extraindo ouro e já tinha montado uma vila chamada Vila do Abate, lá em cima da serra. Então o grupo de mascarados se junta, sobe a serra a cavalo e mata todo mundo. Essa é uma história registrada pela historiografia. Então isso está ali, e a gente tentava lidar com isso. Por exemplo, o Marcelei é um personagem que sofre a violência policial por ser um morador da periferia. Aquela situação que a dona Neide fala: “Pô Marcelei, a polícia veio aqui botando arma na cara”, aquilo aconteceu. A situação ficcional fez emergir um relato documental ali. A gente deixava que os personagens definissem o limite a partir do qual eles iam se colocar num contexto de violência.

Essa eu acho que é uma questão do cinema brasileiro agora, porque somos contemporâneos de Bacurau (2019), contemporâneos de outros filmes e, por exemplo, para mim aquela catarse em Bacurau é bastante impotente no sentido de que ela não muda nada. Aí eu acho que estão os limites de um filme que é muito marcado pelas suas características documentais. Os atores-personagens já perderam muitos amigos, muita gente já morreu, eles têm 20 e poucos anos, e eu acho que tem que respeitar aquela história. Então vamos botar a revolta dos mascarados? A gente escreveu a revolta dos mascarados, a gente escreveu eles com arma na mão. Mas como eu falei ali no debate, eu não sabia que esta era uma questão tão séria pra mim até que eu tentei lidar com ela. Realmente tive a percepção de que eu não conseguia me imaginar filmando uma cena de violência, pelo menos naquela situação, nesse campo do documentário. Principalmente onde os personagens são eles mesmos e precisam sobreviver ao filme, após o filme. Nós não podemos simplesmente transformar dois personagens reais em assassinos, não dá. Então são coisas que você vai sentindo, e o filme realmente trabalha com a iminência. A violência está em volta, ela trabalha nesse campo, ela é relatada, ela entra como narrativa. Existe uma violência contra a terra, a pedreira é uma violência contra a terra. Existe uma violência contra os mascarados, que é a violência da cultura que o João Pedro Faro [crítico da revista Multiplot! que participou da mesa de debate sobre o filme em Tiradentes] falou. Uma coisa que estava no argumento do filme há muito tempo, mas que não dava pra resolver dessa forma.

E eu acho que a gente queria mesmo deixar os personagens mais livres, porque existe o processo de acompanhar a perda daquele trabalho, o medo que a pedreira feche e a contradição que isso representa. Quer dizer, é o fim de um mundo como nós conhecemos. Para aqueles personagens é o fim da possibilidade de eles sobreviverem como podem e sabem sobreviver. Que outro mundo que vai se colocar no lugar? Não são eles que criam esse mundo que vai vir, sabe? Eu discordo totalmente da crítica que chama a atitude daqueles corpos de apatia, ou que tá vendo pessimismo. Um corpo que trabalha numa pedreira daquelas precisa descansar, é aquele digno descanso. Os trabalhadores estão descansando, eles estão pensando na vida, eles não estão apáticos.

Eu tinha a impressão de que a Festa do Divino Espírito Santo tivesse uma origem espiritual, religiosa, e que com o tempo teria sido secularizada, virado laica. Talvez pelas próprias práticas capitalistas em torno da festa. E fiquei pensando que se retira do trabalhador o lazer, o tempo, e se tira também a religiosidade, a espiritualidade, e que com a secularização dessa festa, essa catarse que poderia ser espiritual, transcendente, se transforma em violência. Mas agora você falando que a origem deles remete do século XIX e que já parte de uma atitude política, de uma revolta política, eu queria entender onde é que entra o Divino Espírito Santo nessa história.

Marcela: Eu vou te dar um dado que pode fazer diferença. A festa é muito famosa e existe há mais de 200 anos. Mas na tradição oral a história dos mascarados remonta à encenação da época da escravidão, às folias. Nas folias as pessoas saiam pra ser foliões e os escravos, os trabalhadores mais marginalizados, os negros, não podiam participar da festa. Então eles passaram a se mascarar para poder estar lá. Existe esse relato de memória da escravidão. Sabendo que a origem dos mascarados é essa, a gente estava atrás de uma memória da escravidão. Porque em Pirenópolis a sensação que dá quando se começa a pesquisar é que os vestígios da escravidão desapareceram, a não ser pela presença da população negra. As pessoas falam que os negros foram embora de Pirenópolis depois da escravidão, que eles não ficaram, mas isso não é verdade. A igreja Nossa Senhora do Rosário, dos pretos, onde fica o coreto da cidade, onde tem todo um negócio de turismo, foi destruída. A aristocracia dizia que não existiam pessoas para frequentarem a igreja, e existia sim. O altar foi roubado e hoje ele é o altar que está na matriz. Pirenópolis tem uma estrutura conservadora, reacionária, escravocrata, muito profunda. Ali se criou a primeira organização social. Antes de a Coroa dizer que ali é um lugar reconhecido no Brasil, antes de a Coroa nomear aquilo como “as meninas dos goiazes”, a aristocracia, o poder político recém-chegado, junto com o poder religioso, criou uma coisa chamada “santidade do santíssimo sacramento”. É uma espécie de maçonaria religiosa que controla aquela festa. É muito profundo, eu tô te dando só alguns dados. É como se fosse uma junção de várias folias que vira uma folia gigantesca no contexto urbano, mas ela tem vários elementos: tem as cavalhadas, tem os reisados, tinha os congos. Hoje os congos não saem mais tanto, mas a galera dos congados vem também. Ela é o grande encontro e todas as camadas sociais estão lá, sendo que os mascarados são essa parte marginalizada.

Henrique: Os mascarados são a participação popular da festa. Não que não haja povo na religião, mas quem controla a festa é a aristocracia da cidade, as famílias tradicionais.

Outro aspecto interessante é o paradoxo do desenvolvimentismo e a questão ambiental. É chocante a exploração da pedreira durante todo o filme, as explosões, a fratura que ela causa na paisagem. Ao mesmo tempo, ela é imprescindível para a vida das pessoas naquele contexto. Vocês vieram de um longa-metragem sobre a questão indígena, intrínseca ao meio ambiente. Como foi se movimentar por este outro aspecto da questão?

Henrique: Eu achei muito interessante essa sua colocação porque ela traz a contradição que a gente enxergou lá: ruim com a pedreira, pior sem ela. Isso para a vida desses trabalhadores, dessa comunidade. Se for pensar do ponto de vista do planeta, estamos todos aí, fodendo todo mundo. A experiência em outras cidades do interior, não só de Goiás, mas de Minas Gerais, do interior de São Paulo, é que não existe oferta de trabalho. O êxodo rural é gigantesco porque não existe oferta de trabalho. A possibilidade de ter o trabalho, mesmo que precarizado, é uma coisa importante pra eles. Então quando chegou a pauta ambiental eles ficaram preocupados: “vamos salvar o planeta e vamos foder a gente.”. Acho que eu só queria comentar que a sua percepção do filme é um pouco a nossa percepção.

Marcela: A gente foi filmar esta contradição, foi isso. O desenvolvimentismo não tem mais sentido, é o fim disso. Acho que é uma característica quase etnográfica da perda do trabalho, do desaparecimento iminente de uma forma de trabalho, e que ao mesmo tempo não é a salvação. Vai lá, fecha a pedreira, e aí? O problema econômico vai ser gigante para aquela população. Semana passada o Ailton Krenak [líder indígena, ambientalista e escritor brasileiro] deu uma entrevista e o título da entrevista era: “Vida sustentável é uma vaidade pessoal”. Eu achei muito massa porque é uma contradição muito foda que ele vai explorar mais intensamente no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Mas é uma grande questão. E aí, como é que a gente vai fazer? Os indígenas vão fazer uma festinha e vai ser mais barato fazer com copo de plástico, aí vem o ambientalista dizer: “Não, vocês não podem usar copo de plástico.”, e ele vai falar: “Mano, vocês também não deviam ter vindo aqui e arrasado a terra e plantado eucalipto e fodido com tudo”. O problema é muito mais complicado do que o comportamento individual. Que bom que você reaproveita água da chuva, mas a Coca-Cola está usando a água que quer e ninguém fala pra ela: “Olha, você não pode pegar água limpa e transformar em lixo.”

Henrique: Agora eu estou filmando um grupo de garimpeiros de esmeraldas. Eles tiram esmeraldas a 400 metros de profundidade. Nosso último filme foi sobre questão indígena, os Yanomamis. Mas eu olho para esses garimpeiros empobrecidos, e é claro que nós estamos nos matando, só que é um povo muito fudido também. Não dá pra olhar pra eles e dizer: “O problema são os garimpeiros.”. O problema é a expropriação geral de todos, do planeta. É muito raso colocar o problema lá porque a alternativa não foi dada para essas pessoas. É difícil mesmo ter que lidar com isso, ter que defender a existência da pedreira. Imagina fazer uma ficção onde os caras deixam de ser trabalhadores e viram todos ambientalistas e passam a defender o planeta? É uma coisa muito tosca, sem nenhuma contradição, escapista. Aí é lindo, eles transformaram o espaço em um projeto ambiental, mas não acontece assim.

Eu acho que o final do filme traz à tona essa falta de alternativa, porque é uma reação difusa, não tem uma reação unificada, a fuga é perfeita nesse sentido. Mas mudando um pouco de assunto, a equipe do filme é preciosa e vocês trabalham bastante com um pessoal aqui de Minas Gerais, que tem sido o berço de parte do melhor cinema produzido no Brasil dos últimos anos. Como foi a formação da equipe?

Marcela: A gente começou a pensar de quem a gente precisava pra fazer esse filme, e talvez a gente tenha pensado o filme em uma certa solidão. A gente é um grupo pequeno em Goiânia. Goiás tem uma inserção recente nesse ciclo econômico do cinema brasileiro, que é a regionalização promovida durante a era Lula, quando a política pública chegou lá. Nós não produzimos em escala, é um outro momento. A gente começou a pensar em com quem a gente poderia trabalhar, e a caminhada, que eu acho que é uma questão de imaginação, de questões que estão sendo colocadas pro mundo, nos aproximou dessas pessoas. Então entrou a Juliana Antunes [assistente de direção], a Wilssa [Wilssa Esser, fotógrafa], o Affonso [Affonso Uchôa, montador], o Juninho [Aristides de Souza, ator], o Wellington Abreu [ator]. Aí você tem tudo que é próximo para nós. É uma proximidade de processo, e eu acho que talvez a crítica tenha dificuldade de compreender como essas relações se dão. É uma coisa do processo de feitura do filme, de ter pessoas como a gente, que sabiam que tipo de filme a gente tava fazendo. Porque se você faz um roteiro de ficção, a equipe inteira fica esperando que aquilo se realize exatamente como está ali. A variabilidade, a incerteza e a instabilidade de um roteiro, e isso é uma coisa que eu aprendi muito filmando Mascarados, desestabiliza a equipe. A gente tinha um roteiro aberto, que podia mudar, a gente tinha um acordo que tudo podia mudar quatro dias antes. E eu podia mudar qualquer coisa que eu quisesse no local, no momento das filmagens, desde que não alterasse locação e personagens. Mas a equipe em alguma medida se estressava com as mudanças, porque eles tinham que reprogramar, produzir de novo, alterar as estratégias. A gente fala do filme híbrido mas a gente fala muito pouco das dificuldades de sintonizar uma equipe dentro dessa instabilidade toda, tudo pode mudar o tempo todo. Isso era uma preocupação bem grande nossa.

Então a gente convocou pessoas em quem confiávamos e com as quais a gente não ia pagar de diretor alienígena no set. A gente tem uma equipe bem familiarizada com cinema político, documentário… não dava pra falar “ação” e “corta” assim. Se a gente fosse esperar a organização de um set tradicional, a gente não filmava. Então tinham certos marcadores de processo que a Juliana [Antunes] conhece, de montagem. Por exemplo, quando o Affonso montou ele não sabia quando ia terminar. Um outro montador talvez não topasse. Você não vai topar um trampo por tempo: a gente monta em seis meses… não, a gente montou em dois anos! Se ele fosse quantificar esse trabalho dentro de um sistema ficcional tradicional, industrial, não ia rolar. As pessoas que acreditam nesse cinema, o cinema do risco do real, se comprometem com uma outra ideia de cinema, e a gente queria um pouquinho dessa tranquilidade. O filme precisava estabelecer uma estrutura para que a mise-en-scène acontecesse.

O filme tinha uma escala que é a maior que já tivemos. É um filme pequeno, mas pra nós, pro nosso mundo, é um filme grande. 17, 20 pessoas, numa equipe é muita gente. Pra mim é muita gente. Então a gente tentou trazer pro filme essas peças chaves para que em cada etapa a gente pudesse ter diálogo. Eu acho que a gente queria diálogo mesmo, que não fosse impossível fazer esse filme em Goiás. Então foi a junção de uma equipe de Goiás, que talvez viesse de um cinema de ficção mais tradicional, porque a gente precisava de uma estrutura de ficção, com um pouco de planejamento, com uma galera que já trabalhou de uma maneira mais solta. E eu acho que foi essa junção que fez com que esse filme fosse possível.

Henrique: A Luana Otto, que é diretora de produção, foi diretora de produção em uma das etapas do Era Uma Vez Brasília [filme dirigido por Adirley Queirós, lançado em 2017], então também estava familiarizada com esse processo da possibilidade de alterar as coisas. Contamos muito com o apoio dela também nesse sentido.

Marcela: Ela tinha plano A, plano B, plano C, plano F. Era a pessoa que na hora que recebia a demanda, avaliava, entendia se era uma prioridade, e conseguia quantificar sem devolver pra gente o stress, tipo: “Pô Marcela, mudou essa cena de novo? caramba…”. Ela recebia, repartia as questões e dava um tempo pra equipe resolver. Se não desse pra resolver, aí voltava. Mas numa situação como essa eu sinto que nós diretores acabamos fazendo coisas para atender a equipe. No sentido de que eu não posso deixar a pessoa sem informação, mesmo que não tenha decidido ainda. Pra mim foi muito intenso isso. Entre a necessidade de adiar a minha decisão pra tomar a melhor decisão, e ao mesmo tempo adiantar essa decisão para que a equipe tivesse mais tempo para se preparar. Essa é a contradição maior desse tipo de filme.

Henrique: E acho que com a possibilidade de ter dinheiro pra fazer o filme, você tem a oportunidade de chamar uma pessoa cujo trabalho você admira. Se fosse um filme com menos dinheiro, você ia trabalhar com pessoas mais próximas geograficamente, que você não vai gastar com passagem, deslocamento. Você tem que necessariamente construir com relações mais próximas. Com algum dinheiro você passa inclusive a pensar: “Nossa, a gente adoraria que o Affonso montasse esse filme, e a gente tem condição de pagar, tem condição de trazer ele”. Se fosse outro tipo de situação, jamais aconteceria isso. Eu não tenho menor vergonha de assumir a admiração pelo trabalho das pessoas, e é um dream team mesmo.

Marcela: O Juliano [Juliano Gomes, crítico de cinema] falou dream team. Só que uma coisa que é importante considerar é que o argumento do Mascarados não é associado à existência desses outros filmes [Marcela se refere a uma safra de filmes híbridos entre o documental e o ficcional, com temática social, que foram lançados no Brasil nos últimos anos, nos quais parte da equipe de Mascarados trabalhou]. O argumento do Mascarados é anterior à existência desses filmes. Então é muito mais de a gente pensar em um imaginário de geração, que temos as coisas na cabeça um pouco parecidas.

Encaminhando para o final, podemos entrar nos novos projetos. Vocês contaram um pouco sobre o que estão fazendo, mas se quiserem falar um pouco mais…

Henrique: Eu preciso do cinema pra viver. Não tenho outro trabalho. Faço do que eu acredito uma forma de sobreviver. Inclusive tô aqui apresentando um filme, vou voltar pra casa e não tenho um emprego, nenhum projeto aprovado, não tenho nada. Esse projeto que estou filmando é por conta própria. Comprei um equipamento com o dinheiro que ganhei do Mascarados pensando justamente isso: “E quando a gente não tiver dinheiro pra filmar? Vou continuar filmando?”. Vou, vou continuar filmando. É muito duro pensar que eu não consigo trabalho com cinema, que só consigo a partir dos projetos que a gente aprova. No momento que você começa a construir, pelo menos na minha experiência, a possibilidade de fazer os próprios filmes, não é mais incluído dentro do processo produtivo de cinema feito em Goiás, mesmo porque o dinheiro que tinha acabou. Eu comecei trabalhando como assistente de maquinária. Mando mensagem pro maquinista que sempre me chamava: “Qualquer trabalho que você tiver aí me chama, qualquer trabalho, qualquer diária de 200 reais me chama.”, O cara diz: “Mas porque você quer trabalhar com isso, cara, você é diretor, tá aí estreando filme.”. Mas como diretor quando o projeto existe a gente sobrevive com o filme, depois acaba e o sonho acaba, em alguma medida. Eu não tive formação técnica em alguma área, não sou nem um fotógrafo que poderia garantir a fotografia de um filme, nem garantir o som de um filme. O que eu faço mais é montagem. Tô mais me lamuriando do que dizendo dos projetos que eu tenho…

É a tendência… (risos)

Marcela: Tá radiografando um momento também, dos trabalhadores do cinema, né? Uma curiosidade pra nós é que enquanto a gente tava fazendo um filme sobre a perda do trabalho a gente começou a viver a perda do nosso trabalho também. Por isso eu tava falando que tem muitos mistérios ali.

Henrique: Eu espero que com o Mascarados as pessoas gostem do nosso trabalho e me chamem pra fazer um filme, porque eu tô precisando muito mesmo. Faço assistências, enrolo cabo como ninguém… eu já enrolo limpando. (risos)

Marcela: Em relação a mim, tenho o desejo de ficar um tempo sem filmar. É um desejo bem forte agora. Eu tô processando algumas formas de fazer as coisas, tentando reinventar. Acho que isso tá tudo muito em torno da minha vida. Tenho que reinventar um jeito de filmar, tem a ver com isso, porque o modo de produção que a gente experimentou não vale mais, não pode ser repetido. Tem questões também sobre o meu próprio modo de fazer, eu quero descobrir coisas novas. Tenho um argumento que é a história de uma mulher dançarina de strip tease. Então ao que ele está me levando? A conhecer um mundo que eu não conheço. Aí eu vou escrevendo e vou reescrevendo, vou sentindo. Tenho um curta roteirizado que talvez eu mesma faça, eu mesma seja a personagem… pra você ver, né? (risos). Mas isso sem muita meta.

Hoje eu sou professora e desde o lançamento do primeiro longa-metragem para agora eu me engajei inteiramente na educação e descobri um desejo, uma satisfação e uma condição de tornar o cinema possível para mais pessoas. Eu senti que posso mediar essas situações, então eu quero viver mais o cinema na educação, sabe? A gente faz um festival, o Fronteira – Festival Internacional do Filme Documentário e Experimental. O Fronteira também está passando por uma crise imensa, a gente não conseguiu realizar ele em 2019, e eu tenho um desejo de retomar ele, nós todos temos. Eu me mudei para Brasília agora, então estou vivendo uma outra atmosfera de cinema. Quero conhecer outras pessoas, me envolver em outros projetos. Eu sou professora do IF [Instituto Federal], do campus Recanto das Emas, que é só de audiovisual. É um projeto que eu vivo dia e noite. Também tô vindo de uma experiência como professora de conseguir ajudar a fazer vários filmes ao mesmo tempo com os meus alunos. A gente conseguiu fazer seis filmes no ciclo passado, e um a gente conseguiu exibir aqui em Tiradentes, o Relatos Tecnopobres (2020) [de João Batista da Silva]. É uma alegria muito grande ver esses filmes nascerem, ver o festival [Fronteira]. O festival às vezes tem uma intervenção mais radical em alguns aspectos, para o ambiente de cinema no Brasil, do que um filme.

Então eu fico circulando, e se der eu vou filmar. Se a vida botar na mesa: “Ó aqui, filma”, sabe? Porque eu não sou aquela pessoa que filma. Preciso que alguém diga: “Marcela pega uma câmera e filma isso”, aí eu falo: “Bora.”. Às vezes eu acho o gesto de filmar de uma violência que eu não consigo sustentar, e se eu não tiver uma convicção muito grande… eu preciso ter uma convicção muito grande pra filmar. Isso me faz filmar pouco. Acho que os próximos anos são de reinvenção. Eu quero estar com pessoas mais jovens que eu, meus alunos, minhas alunas, e reaprender com eles, porque eu preciso reaprender para que eles possam fazer.

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