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Diário do Recife #3: Guimarães Rosa entra em um avião

16/12/22 às 12:53
Diário do Recife #3: Guimarães Rosa entra em um avião

Escrevo do avião. Na iminência de desobstruir a cabeça e, principalmente, fugir do pânico que toda e qualquer viagem aérea me oferece. A rota é Recife/São Paulo, e as três horas do percurso, às vezes, parecem três vidas para alguém acostumado com crises de pânico. 

Hoje parti de Pernambuco, e confesso que os últimos seis dias foram difíceis de digerir. De segunda-feira para cá, a fase do cansaço foi ficando evidente. O sono foi cobrando o preço. A última semana foi um misto de informações, tarefas, obrigações, eventos, sentimentos, e, claro, um trabalho incansável. A saudade de casa e a melancolia de ir embora misturam-se no liquidificador. E o que resulta disso é alguma coisa que considero ainda sem nome. Mas que, para enfrentar, exige coragem. O que a vida pede da gente é coragem, diria Guimarães Rosa. Pois bem. Essa frase calha com o que tenho a dizer.

Gerais da Pedra, um dos mais interessantes filmes em competição nesse Cine PE, orbita totalmente a partir do objeto (coragem) e do sujeito (Guimarães Rosa) que comentei anteriormente. Em resumo, é uma obra bastante simples e econômica, mas que, no sentido mais estrito, procura justamente o âmago dessa tal “coisa sem nome”. Divididos entre som, câmera e entrevistas, os três cineastas viajam ao interior de Minas Gerais em busca das comunidades cujo lastro das lendas de Grande Sertão: Veredas segue vivo. Com o passar do tempo, os garotos (diretores) vão tateando alguns sentidos diante daquele território, e, a cada morador que passa pela câmera, a coisa vai ficando mais interessante, ganhando mais contornos.

Os motivos para isso se dar são vários, mas começa por um bem importante — o entendimento do material base. No caso de Gerais da Pedra, não há a tentativa abrupta de provar algo que estivesse no livro de Rosa, mas sim explorar suas inúmeras condições e ramificações. Isto é, não se trata de defender ou reinterpretar o Grande Sertão sob um jugo definitivo. O longa de Paulo Junior, Gabriel Oliveira e Diego Zanotti é muito mais uma brincadeira — uma investigação — com os caminhos que uma mitologia para lá de brasileira, fundada por Rosa, originou quase um século atrás.

Na comunidade, os cineastas interpelam os moradores a partir daqueles que julgam ser os temas mais centrais da obra de Rosa: amor, morte e nascimento. Do amor, saem as melhores partes, aquelas em que parece que uma caricatura dos personagens de Guimarães se acopla às pessoas da comunidade. Surgem algumas dúvidas. “Você acha que Diadorim pode ter existido?”, alguém pergunta. “Muitas mulheres como Diadorim existiram por aqui”, a outra responde. Isto é: na prática, aos cineastas, pouco importa a verdade concreta da mitologia, mas sobretudo os mistérios que ela é capaz de reproduzir. E o mais interessante está justamente no gesto de capturar nos próprios personagens (do filme) as dúvidas e características que são tão comuns aos personagens do Grande Sertão.

O mesmo se dá quando se toca nos temas da Morte ou do Nascimento. Pois, na prática, parece que essa tríade estrutural é embaralhada, oferecendo para jogo sempre um sentido ou outro. A entrevista marcante da moça que deu uma facada na “curva da bunda” do marido no intuito de matá-lo, mas que diz que ainda o ama, é prova concreta disso. Gerais da Pedra funciona no díptico dessas frentes: é um filme que acredita no mistério das coisas, nas não-respostas, nas duas faces do mundo, o tal do Deus e o Diabo. O oroboro. O começo e o fim, o fim e o começo. Ambos iguais e diferentes ao mesmo tempo.

Pode ser que a explicação, ao todo, soe estranha, mas é isso. Talvez, ao contrário dos cineastas, eu tenha me apegado demais a Guimarães para escrever este texto. Mas, no fim das contas, ele serviu ao seu propósito: o avião aterrissou, cheguei em casa e já estou com os meus. Recife ficou para trás, enamorado com a neblina de Diadorim. Ficarei com ele na memória, assim como, suponho, o público do Cine PE ficará com Gerais da Pedra guardado no peito.

E obrigado ao Guimarães, que entrou nesse avião comigo e me ajudou a atravessar a intempérie. Essa, ainda bem, não será infinita.

*Esse texto integra a cobertura do 26º Cine PE

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