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Diário do Recife #2 — Ana Cristina Cesar, alguns fantasmas e uma viagem à Ucrânia

14/12/22 às 12:04 Atualizado em 14/12/22 as 12:05
Diário do Recife #2 — Ana Cristina Cesar, alguns fantasmas e uma viagem à Ucrânia

Hoje acordei e li Ana Cristina Cesar. Devia fazer uns dois ou três anos que eu não pegava no calhamaço rosa, com todos os seus poemas, que fica na minha estante. Um pouco porque ler (com o afinco de outrora) deixou de ser uma prioridade na minha vida, e um pouco também por conta das manchas de café que acidentalmente fiz no livro, em um dos meus primeiros períodos na faculdade de Cinema e Audiovisual. Na livraria à qual Felipe André Silva me levou, busquei para mim a recente edição especial do Suplemento Pernambuco dedicada à Ana C. Hoje acordei e, sabendo que teria que escrever este texto, a li. Sobretudo porque Ana Cristina Cesar, para mim, sempre teve a ver com impasses — e acredito que o filme do qual deva falar, também.

Trata-se do longa-metragem Aldeia Natal (2022), de Guto Pasko, exibido na segunda noite do 26º Cine PE. A estrutura do filme funciona um pouco na mesma lógica que a poesia de Ana Cristina Cesar: parte de si para desembocar mais ainda dentro de si. Para quebrar-se em si mesma. Ou seja, funda o próprio mistério quando encontra seu âmago. O longa de Pasko não é regido pela mesma complexidade formal que a poesia de Ana Cristina, mas, psicologicamente, aponta também para estes conflitos bifurcados.

Um cineasta de origens ucranianas retorna à sua terra natal, no interior do Paraná. Lá, a partir do contato com os pais, procura esmerilhar seu passado, tirar a vida a limpo. Um conflito principal nos é dado: o fato de que Guto (cineasta, personagem) saiu muito cedo de casa, pois não aceitava o desejo dos pais de que se tornasse padre. Essa mesma bagagem acomete seus pares, os outros dez irmãos. Entre rusgas maiores e menores, vamos compreendendo o que se passa na terapia familiar, e sobretudo quais traumas e sequelas de uma criação extremamente tradicional se reproduziram através dos anos. Quanto mais fundo chegamos naquela família, mais bifurcações se apresentam. Um, sente falta do pai; o outro, culpa; a irmã mais velha guarda ressentimento pelos anos de convento, enquanto a mais nova prefere calar frente à câmera. O que se apresenta, de fato, é uma arquitetura cênica que tenta esmiuçar esse caleidoscópio sentimental em poucos minutos. Há uma via de curiosidade — de risco, até — em expor tudo isso tão às tripas, à luz do dia. Mas, por outro lado, há a ingenuidade, uma ideia que o filme carrega de que, em tão pouco tempo, e em tão pouco espaço de criação, as coisas podem se resolver.

To see, to rest, to pray”, diria Ana Cristina Cesar. É preciso aproximar-se da casa, deixar-se levar por ela. É preciso os tempos mortos, é preciso “olhar muito tempo o corpo do poema até perdê-lo de vista”. Para que a resolução seja fatal, seja verdadeira, seja sensorial, é preciso permanecer mais com os personagens, ouvir-lhes de dentro, do ressentimento. Nada se resolve num abraço. O mistério — os fantasmas — habitam nos conflitos, afinal. E possivelmente é esse o denominador que atravanca o filme.

Partimos então para a Ucrânia, com o objetivo de entender a origem que tanto acomete aquela larga família. Lá, buscam-se respostas, mas pouco se encontra, exceto pelo momento em que uma senhora, na aldeia natal de onde vieram os ancestrais da figura materna, revela ter um grau de parentesco com os Pasko. O curioso é que isso se apresenta de forma inesperada, mas ainda assim irresoluta para o que parece ser o conflito que tanto atormenta o cineasta. Não há resposta alguma na busca pela própria ancestralidade, justo porque a batalha ideológica se resolve no campo das contradições, e não no da conciliação. Todavia, este último caminho é aquele que o filho pródigo trilha ao reatar com os pais, os compreender melhor, e, como o próprio filme diz, aceitar que o “passado fica no passado”.

No fim das contas, Aldeia Natal é como uma coisa não resolvida. Não retornam os irmãos, seus dilemas ou seus traumas, muito menos todo o fiapo de consequência dos anos mais complexos de toda aquela herança. O que havia de mais forte nesse embate geracional termina pessoalizado em uma viagem sem muito frescor. Sobra, porém, a graça do que poderia ter sido e algumas cenas valiosas na dinâmica dessa família — em especial a do pai mais calado, que insiste em não se abrir, quando desaba ao entender que o fim está próximo. O que há de mais verdadeiro nesses fantasmas é o segredo que cada membro da família guarda dentro de si, quase a sete chaves, e que só o tempo e o silêncio seriam capaz de revelar.

Faltam ainda alguns dias para que eu retorne para casa. Levarei o Suplemento Pernambuco dedicado à Ana C. de presente para minha mãe, primeira pessoa a me apresentar a autora. Espero que o encontro seja menos conflituoso que o da família de Guto, mas que os mistérios, aqueles que guardamos na intimidade do silêncio, como faz a poesia de Ana C., esses permaneçam.

* Esse texto faz parte da cobertura do 26° Cine PE

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