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Diário do Recife #1: Tempo, telas e impasses

11/12/22 às 12:57
Diário do Recife #1: Tempo, telas e impasses

Cheguei ontem à capital pernambucana, Recife. A viagem foi longa, um compilado de voos que me tiraram de casa por volta das 7h da manhã e me trouxeram para a primeira exibição do 26° Cine PE para lá de 7h da noite. Com poucas horas de sono e o peso de toda uma defesa croata nas costas, restava apenas a mais simples das opções: entregar-se ao escuro do cinema, à luz de sua projeção.

Quando entro na sala, o curta-metragem que está sendo exibido é A Vida Secreta de Delly (2022), de Marlom Meirelles. O filme conta a surpreendente história de uma travesti catadora de recicláveis que envergou durante a vida distintas personas para aprender a sobreviver. Ao longo do processo de descoberta de sua travestilidade, Delly passou por um bocado. E quem nos conta essa história de vida é a própria personagem, sob uma luz doce que provém das janelas de um quarto todo azul. Nesse momento, então, percebi que o cansaço já tomava conta, e foi aí que decidi que era melhor embarcar na jornada dessa personagem do que questionar quaisquer que fossem as decisões estéticas que a acompanhavam.

E, no fim das contas, me parece que foi a medida mais justa possível. Pois aí é que está: há sim um desgaste na modulação do documentário de Meirelles, com tudo muito calculado para que a história dessa personagem nos guie através dos enquadramentos padrões das entrevistas. E mesmo assim, por mais que o filme encaixote a entrevistada dentro do talking heads padrão, há um espaço de esperança que surge de sua própria fala — o fio definitivo da coisa toda. Isso se dá quando a personagem, na verdade, nos revela que é duas: Delly (a pessoa física, digamos) e Dell (o trabalhador que sustenta a vida de Delly). Nessa espécie de virada é que o filme me arranca um sorriso, apesar de todo cansaço procedural que sua forma entrega.

A seguir, o Cine PE realizou uma homenagem ao cineasta carioca Sérgio Rezende, realizador de obras como O Homem da Capa Preta (1986), Guerra de Canudos (1996), Quase Nada (2000), entre outros. No palco, assim como na entrevista coletiva da manhã seguinte, Rezende ressaltou um ímpeto particular por seguir fazendo cinema, independentemente do modus operandi. Pode ser com um celular ou com uma câmera das mais sofisticadas; a ideia do realizador é filmar até morrer.

Acho curioso trazer à tona esses pontos porque, de alguma forma, essa abertura do Cine PE me colocou a pensar nessas luzes que surgem entre as fendas — esse legado histórico que conversa (e sempre conversará) com as origens do cinema brasileiro. Com aquilo que chamamos de “tradição”. A direção do evento parecia querer apontar, enfim, para esse gesto cinematográfico que é o da permanência. E uma permanência que, devo dizer, está muito vinculada a uma relação entre as artes. Seja nessa fala do homenageado, no filme que Rezende apresentou ao público [o curta-metragem Leila Para Sempre Diniz (1972)] ou mesmo no primeiro longa-metragem em competição, que encerrava a noite de exibições: Vermelho Monet (2022), de Halder Gomes.

Confesso que tinha alguma curiosidade para saber o que viria de um cineasta como Halder Gomes, e me parecia que algum filme com seu traço característico do popular cearense pudesse elevar o nível da competição. No entanto, tive uma surpresa negativa com Vermelho Monet, ainda que entenda a conexão que ele produz quando posto lado a lado com os outros filmes programados na noite de ontem.

A trama é uma paçoca — sem ofensas. É sobre um pintor chamado Johannes, que durante muito tempo alimentou os interesses obscuros do mercado artístico. Aos poucos, o personagem vai perdendo sua visão, indo “em direção ao preto absoluto”, como ele mesmo diria. Duas outras personagens também fazem parte do processo: Florence, uma atriz brasileira que está gravando um filme em Portugal, e Antoinette, uma espécie de mecenas artística. Entre idas e vindas, esses três se cruzam e se misturam na longuíssima duração de Vermelho Monet. O que talvez se esperasse de popular na obra de Halder Gomes se reflete aqui numa aparição circense de sub-tramas e sub-assuntos nas quais tudo parece girar em torno de uma reflexão artística sobre comércio, originalidade, pulsão e falsificação. É aí que o ar-condicionado da sala começa a pesar forte nos ombros, o sono vem a cavalo, e cada vez mais sou obrigado a me recolher timidamente no assento aguardando pelo desfecho de Vermelho Monet.

Entre uma trilha musical cintilante, diversas cenas performáticas e diálogos teatrais inacabáveis, fui ficando com a sensação de que Vermelho Monet era um manancial de talento que não tomou sua forma definitiva. Parece que Halder Gomes trocou a trucagem popular por um cinema ultrarromântico, exacerbado, que, assim como seu protagonista, tenta dar várias e várias pinceladas em direção a algum rumo, mas nunca encontra o norte absoluto. Mesmo que Chico Díaz e Maria Fernanda Cândido (dois suprassumos, sim) tentem, a coisa não anda pra frente. Uma pena. Mas, naquela hora, quase meia-noite, a longos quilômetros de casa, abraçado a mim mesmo no frio do Teatro do Parque recifense, não sobrava mais o que fazer. Era esperar que Johannes apresentasse sua obra final, para que os créditos pudessem subir e, enfim, eu pudesse encontrar o conforto de uma cama.

Depois de duas longas viagens de avião, de um aeroporto abarrotado por torcedores brasileiros, de uma eliminação em Copa do Mundo e de uma noite repleta de distintas emoções, acredito que nenhuma obra de arte valeria o peso de uma boa noite de sono.

Enfim, o 26° Cine PE começou. Em meio a essas conexões, luzes, escuridões, ruídos e fendas, ele prossegue até o dia 14 de dezembro. A ver o que o tempo, a tela e os impasses nos contam até lá.

*Esse texto integra a cobertura do 26° Cine PE

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