1. Gosto de aberturas de festivais de cinema. Calma, não me refiro àquelas com discursos intermináveis de políticos e patrocinadores. Nem mesmo necessariamente ao início cronológico de uma programação. Falo daqueles momentos em que alguma obra me arrebata a ponto de me fazer sair meio cambaleante da sessão, querendo muito falar sobre ela ou, pelo contrário, necessitando de um silêncio absoluto para absorver seu impacto. É só aí que tenho a certeza de que sim, o festival teve início.
2. Chegou há pouco aqui em casa o guia de programação do Olhar de Cinema. Aquele em papel, que tantas vezes rabisquei nas edições anteriores, marcando e desmarcando filmes, conciliando com a preparação e realização das entrevistas sempre longas que gosto de fazer. Lembro que considerava o segundo dia a verdadeira abertura do festival – particularmente a primeira sessão, das 14h, que eu normalmente dedicava a algum clássico (Cantando na Chuva, Aurora) ou a algum contemporâneo inédito no qual botasse fé.
3. Tenho tido dificuldades para embarcar nesses festivais online em tempos pandêmicos. Até vejo filmes, muitos, mas daí a experienciá-los dentro de um todo mais amplo daquilo que se convencionou chamar de festival de cinema vai uma distância grande. Lembro do texto que a Juliana publicou por aqui recentemente e tento refletir sobre o tema recorrendo a Janet Harbord: a particularidade da “instituição festival” ocorre pela junção dos fatores espaciais e temporais. Se a questão do espaço se “resolve” – entre muitas aspas – pela virtualidade, como lidar com a relação espectador-tempo-filmes? Transpor para o ambiente online a mesma lógica das sessões com horário marcado certamente não é a melhor resposta. Admitir que a temporalidade vivenciada em um festival presencial é totalmente diferente daquela do tempo caseiro e disponibilizar os filmes por 24 horas, como faz o Olhar de Cinema, me parece bem mais razoável.
4. Lembro com carinho da sessão de Homens que Jogam (Matjaz Ivanisin) no Olhar de Cinema de 2018. Deve ser o melhor filme sobre masculinidade tóxica que eu já vi, talvez justamente porque não se enuncia dessa forma em nenhum momento. É um daqueles objetos estranhos em constante reinvenção com o qual aprendemos a lidar com extremo prazer ao longo de sua projeção. O corpo a corpo com aqueles homens que mantêm a prática de jogos exóticos e medievais, a competitividade à flor da pele, aquela sequência maravilhosa e inesperada da comemoração pelo título de Goran Ivanisevic em Wimbledon… O meu festival daquele ano começou ali.
5. Escolhi o novo filme de Matjaz Ivanisin, Oroslan, para começar minha programação online do Olhar de Cinema deste ano. Tal como na obra anterior do cineasta, aqui o conceito de comunidade é muito importante e não está associado a uma ideia de país, mas de vilarejo. Enquanto Homens que Jogam tinha como cenário localidades na Eslovênia, na Croácia, na Itália e na Turquia, o longa mais recente é centrado em um povoado esloveno na Hungria. Os primeiros momentos do filme ressaltam justamente uma rotina comunitária particular calcada na produção e distribuição de uma refeição. A “quentinha” de um daqueles habitantes não é retirada na caixa de correio, e é essa quebra que anuncia a sua morte. Nessa parte inicial há uma gama de personagens (como o garoto entregador e a trabalhadora da fábrica têxtil) que julgamos poder ganhar centralidade na narrativa até desaparecerem no plano seguinte. Há ali um movimento de despersonalização que traz para o primeiro plano aquela localidade e a maneira particular como o tempo atua ali.
6. Os filmes de Ivanisin são sempre um tanto camaleônicos. Da rarefação de diálogos da parte inicial passa-se à verborragia posterior quando acompanhamos do banco de trás de um carro ou de uma mesa de bar as longas interações entre dois moradores locais. O título em inglês do longa anterior (Playing Men) trabalhava com uma gama de sentidos que também está presente em Oroslan: atuar, jogar, brincar. As variadas maneiras de contar uma história e as implicações que isso traz à própria construção fílmica são centrais na obra. Dou como exemplo a sequência do açougue onde o personagem-título trabalhava. Ela começa com facas sendo afiadas em espadas (o que remete a uma ancestralidade que reforça a particularidade local) e continua com longos segundos de imagens de carnes sendo cortadas, com boa parte sendo descartada e outras se tornando peças de exposição/consumo. Em seguida vemos os personagens saindo do local com uma câmera e um tripé, equipamentos com os quais acabaram de fazer aquelas imagens. Ora, não seria essa uma alusão ao processo de montagem cinematográfica? O descarte como condição fundamental, a relação com a materialidade das imagens, o jogo entre a opacidade e a transparência dos processos de produção…
7. No borrar fronteiras entre regimes de representação mais associados à ficção ou ao documentário, o filme trilha um caminho inverso ao de Aquele Querido Mês de Agosto (Miguel Gomes, 2008). Enquanto no trabalho português o dispositivo inicial é a chegada da equipe de filmagem e a sua pesquisa para a realização de uma obra ficcional, em Oroslan o momento em que dispõe de uma linguagem mais próxima à do documentário tradicional vem ao final, com os depoimentos frontais dos moradores para a câmera. O recurso não chega para explicar nada, mas para trazer mais uma camada para a desestabilização constitutiva de sua narrativa. Em um filme em que jamais vemos o personagem-título, a crença no poder do narrar (e não em o que está sendo narrado) é fundamental. Tal como o cachorro que regressa à porta de seu dono todos os dias, não resta dúvidas: sim, Oroslan vive. Meu festival começou.