facebook instagram twitter search menu youtube envelope share-alt bubble chevron-down chevron-up link close dots right left arrow-down whatsapp back

“O curioso caso do cinema”: a crítica, os festivais e os modos de representação

07/03/17 às 14:32 Atualizado em 10/10/19 as 01:08
“O curioso caso do cinema”: a crítica, os festivais e os modos de representação

Se até na bem comportada festa do Oscar, seja com envelope trocado ou não, a representatividade aparece como questão incontornável, a inserção de tal discussão em festivais que se propõem a refletir sobre o cinema brasileiro autoral não provoca surpresas. Debates tematizando a participação de mulheres, negros, índios e LGBTs nos diferentes campos do audiovisual se multiplicaram recentemente, algo que, como diz o crítico, pesquisador e professor Heitor Augusto, teria mínimas chances de acontecer em um passado não tão distante.

No último mês de janeiro, Heitor esteve presente na 20ª Mostra de Tiradentes como membro do júri da crítica que acabou premiando o longa-metragem Baronesa, de Juliana Antunes, e o curta Vando Vulgo Vedita, de Andréia Pires e Leonardo Mouramateus. Ele também participou da mesa de debates que abriu o festival com a temática “Questões de representatividade e de proposta estética” – neste link é possível ler o texto que serviu como base para a sua fala na ocasião.

Se por um lado a representatividade está atrelada a algo muito objetivo – como o número de filmes recebidos e selecionados por cada festival -, a questão dos modos de representação tem um pé considerável dentro da subjetividade. O que de fato significa, em termos de linguagem, a inserção de filmes de mulheres, negros, LGBTs e índios em festivais prestigiosos?

Para Heitor Augusto, o paradigma tema x forma, colocado muitas vezes em primeiro plano quando se analisa a seleção ou não de filmes para festivais, perde esse papel central no debate quando há “outros corpos, outras cores, outros gêneros” ocupando espaços. “Passa a ser o centro da questão o entendimento de que a gente lida com filmes de formas diferentes, e de como a ausência dessas pessoas nesses espaços muitas vezes implica a inexistência de circulação de certos filmes”, afirma.

Em Tiradentes, antes do início das exibições das mostras competitivas Aurora e Foco, Heitor Augusto teve uma longa conversa com o Cine Festivais a respeito de representação/representatividade, crítica de cinema, festivais, curadoria, formação de público, entre vários outros temas.

No vídeo a seguir é possível assistir à entrevista na íntegra. Se preferir ler o que o entrevistado falou, transcrevemos abaixo a conversa.

 

 

Cine Festivais: Lembro de um debate que tivemos a respeito do Branco Sai, Preto Fica, no qual mostrei uma fala do Adirley Queirós a respeito do desconforto que ele teve quando passou a frequentar o ambiente de festivais. Imagino que nessa sua experiência como crítico negro circulando em festivais de cinema tenha ocorrido alguma inquietação semelhante a essa com relação à crítica e com relação aos filmes…

Heitor Augusto: Eu acho que para começar é importante haver um exercício meu de humildade, porque eu tenho um pouco da sensação, nesse mundo altamente pautado pela virtualidade, que existe de certa forma uma competição. Então a partir do momento em que você se entende como minoria – não necessariamente no sentido de quantidade, mas de acesso à cidadania –, eu vejo muitas vezes uma competição, “quem é mais preto que o outro”, “quem virou preto antes que o outro”, “quem está há mais tempo no rolê”. Quando eu falo de humildade é para falar que entender o meu lugar, entender a diferença do meu lugar, entender o que é hegemonia e que eu não fazia parte dela, é parte de um processo. Um processo muito longo, muitas vezes não nomeado, muitas vezes bagunçado.

Você começou citando nosso debate sobre o Branco Sai, Preto Fica e a fala do Adirley. Aquela fala para mim é muito importante, porque nomeia e sintetiza algumas coisas que eu sentia e que eu não dava nome, e que foi passando o tempo e eu comecei a dar nome. Por exemplo nomear “minoria”, “ausência”, “invisibilidade”, “não ter”… E aí eu falo tanto dos filmes quanto da crítica, mas nesse momento eu queria falar mais da crítica.

Eu fico com a sensação de que, ao contrário de outros campos, de conhecimento das humanidades e das artes, essa problematização de “quantos negros tem?”, “quantas mulheres tem?”, “quais são as vozes contra-hegemônicas?”, “que atravessamentos dos discursos padrões que a gente tem?”, “qual é a retórica que forma um campo de conhecimento?”, “qual é a retórica que forma a história?”, enfim… Me parece que essa discussão existe mais em outros lugares, inclusive enquanto programa quase até. Pode ser apenas a impressão de quem está um pouco distanciado. Se a gente olha pro teatro, por exemplo, eu vejo que no teatro e na crítica teatral parece que as problematizações e os desconfortos já estão acontecendo há algum tempo.

No cinema acho que é um caso bastante particular, o curioso caso do cinema. É um pouco do que eu falei no debate que participei aqui em Tiradentes. Por um lado existe essa perspectiva preocupada – grosso modo todos nós somos de esquerda ou nos identificamos com uma perspectiva de esquerda humanista, então todos nós somos anti-preconceituosos, anti-racistas, anti-homofóbicos, tentamos não ser machistas, etc., tudo isso em termos de discurso. Mas isso muito poucas vezes ao longo dos anos atravessou de fato a nossa práxis, falando agora como crítico. Todos nós parece que temos essa sensação de que participamos de um campo comum que tem uma história, um rio, uma retórica, uma maneira de olhar, uma maneira de pensar, que é natural. E cabe a quem é diferente nomear essas duas coisas: o que é a diferença e o que é esse natural.

Para mim é um processo contínuo, no qual eu acho na verdade que estou muito no começo, de desnaturalizar uma série de coisas. Eu falo de números – quantos críticos e críticas negras existem no Brasil -, mas falo também de retórica, discurso, conhecimento, maneira de se relacionar com os filmes. Inclusive de problematizar esse suposto rio comum em que todos nós entramos, saímos, tomamos banho na mesma água, e elaboramos os filmes de um jeito meio parecido. Quando eu falo isso me refiro à crítica na qual sempre fiz parte, ou fiz parte por mais tempo, que podemos chamar de crítica contra-hegemônica, crítica de internet, crítica de revista eletrônica.

O ano de 2016 pra mim foi um ano fundamental para eu me distanciar dessa roda, desse jeito de fazer as coisas já muito dado, e colocar em xeque essa roda e tentar entender onde eu estou nela. Para fazer isso eu me cerquei de uma série de leituras, muitas delas não de cinema. Uma leitura muito marcante para mim foi de um livro da Grada Kilomba, que é uma portuguesa negra, filha de pais de São Tomé e Príncipe, e que hoje é baseada em Berlim e atua tanto como artista performer quanto como uma acadêmica. Ela tem um livro chamado Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism, e algumas perguntas são centrais no pensamento dela: “quem constrói o conhecimento?”, “quem tem direito à fala e quem não tem direito à fala?”, “o que é conhecimento?”, “o que é ciência?”…

Lendo essa problematização da construção de conhecimento, discurso, retórica e maneira de experienciar as coisas, ainda que a autora não lide com o cinema, eu olho para aquilo e falo: “opa, tem uma coisa para a gente pensar o campo da crítica”. Participamos mesmo desse rio comum em que a gente vai e colhe não só palavras, mas colhe percepções e perspectivas, ou esse rio não é tão comum? Eu estou nesse momento de olhar para esse rio e falar que tal e tal coisa me interessa, mas tem um monte de coisa que não me interessa, porque elas implicam na minha anulação, a anulação da minha subjetividade, da minha historicidade e de coisas que eu quero que os filmes tragam para mim, e vice-versa.

Voltando na fala do Adirley – por enquanto estou falando de práticas discursivas. Enquanto corpo que circula por esses espaços, aí o desconforto existe desde sempre, porque aí é um desconforto que vai além do cinema. A gente está falando de uma sociedade racista que, por meio de invisibilização, naturaliza espaços “de brancos” e “de pretos”, ou que “pretos não pertencem a esse espaço”. Isso é muito naturalizado nas nossas relações desde o momento em que a gente nasce. Então tem esse ponto específico de um corpo não branco circulando por um espaço de festival. Antes até disso: um corpo não branco circulando por um espaço de cinema, por um espaço de cinefilia, por um espaço de festival enquanto crítico. O desconforto é grande porque muitas vezes ele não existe nem como questão, fica só para a pessoa que é atravessada por essa questão, então é uma questão minha, quando na verdade deveria ser uma questão nossa, enquanto sociedade, enquanto campo do cinema.

Desde muito cedo ficou evidente que meu corpo não é um corpo padrão de crítico de cinema, ou de curador, de programador, professor, se pensar em algumas atividades que eu faço. Então esse desconforto é grande, e no Brasil, nos festivais de cinema, me parece indispensável a gente nomear esse desconforto e essa nomeação vir dos dois lados, da hegemonia e da não hegemonia. Porque se não a gente fica nessas falas confortáveis: “ah, existe desigualdade; ah, é um problema mesmo; os negros não chegam; as mulheres não chegam”. Se não a gente não avança, vamos ficar nessa perspectiva liberal. Todos nós preocupados, conscientes, mas vamos fazer o quê? Quais são as ações que a gente tem no nosso dia a dia, na nossa práxis, para alterar esse cenário? Eu estou focando a minha reflexão aqui nesses marcadores que eu participo mais, crítica, curadoria e aula/debate/espaço de fala sobre alguma coisa.

 

CF: Imagino que você tenha tido um questionamento grande sobre sua própria formação…

HA: Sim. Tenha tido não, eu esteja tendo. Volto na questão do rio comum. A gente enquanto crítico tem uma formação que em teoria é “a” formação. Existe um cardápio dos filmes obrigatórios, existe um cardápio dos filmes alternativos/independentes/obscuros do campo da cinefilia, existe uma maneira de lidar com os filmes, existe uma retórica, e muito pouco incômodo com isso.

Vou dar um exemplo de um conjunto de filmes com o qual eu lido muito. Por que o cinema africano é sempre tido como algo ou menor, ou paralelo, e nunca integrado ao cinema mundial? Nós estamos falando de uma produção que existe enquanto tal desde o começo da década de 60, tem uma penca de países com muitos processos particulares, e esses filmes não estão colocados pra gente enquanto obrigatórios de cinefilia, enquanto obrigatórios para se fazer uma reflexão, não estão inseridos nesse lugar genérico de cinema mundial. Por que não estão? Que corpos, quais seres históricos construíram esses marcadores? É tirar desse lugar de que está tudo certo, porque não está. Aí eu descubro a multiplicidade do cinema africano. Tá. Mas isso foi um exercício individual de um desconforto meu. Esse desconforto não pode ser meu, ele tem que ser nosso.

Eu olho para a cartela de filmes e falo “cacete, quase nunca vi filmes de mulheres”. Sim, mulheres como diretoras são muito subrepresentadas, mas existem muito mais filmes dirigidos por mulheres do que a gente já viu, e por que a gente não viu? É sair desse lugar de “nossa, não vi, que coisa, né”, sair desse autoencantamento crítico, e fazer esses deslocamentos.

Eu estou nesse deslocamento. Quando falo desse afastamento é justamente para isso, sair desses filmes que são os filmes que em teoria essa crítica contra-hegemônica tem que responder e pensar: “mas eu tenho que responder mesmo?” É com esse filme que eu quero dialogar, ou tem uma penca de outros filmes antigos, novos, que são aqueles que eu quero dialogar. Ou trazer eles também para o diálogo. São várias coisas que atravessam, e uma das questões primordiais é sim formação de conhecimento e cultura cinéfila. É perguntar isso: o que constitui cultura cinéfila?

 

CF: Acredito que venha daí pela formação do outro, pelo papel de professor…

HA: É difícil falar sobre a formação do outro sem cair num lugar messiânico e sem também cair num lugar ególatra. Tentando fazer um exercício de tirar esses dois riscos, não tem como você não pensar na formação, inclusive como medida corretiva. Eu estou descobrindo isso nos últimos anos. Já que ocupo esses lugares também como professor, eu contribuo para que pessoas descubram isso muito mais jovens, para que essa reformulação de cultura cinéfila exista muito anteriormente.

Quando eu tento pensar sobre a minha práxis, escrevendo dando aula, curando, eu tenho uma preocupação muito grande com formação. É obvio que existe sempre um lugar nosso dessas três atividades que sempre tem essa preocupação com a formação de publico, é um termo muito utilizado, mas eu estou falando de um público para o qual nunca foi pensado, não é um publico levado em conta, não é um publico tido como a essência quando a gente usa o termo formação de público.

Para mim não tem como não passar de alguma forma por, mais do que dividir conhecimento – estou falando de algo muito sério e tentando fugir desses termos chavões… -, mas passa fundamentalmente por contribuir na formação de conhecimento de outras pessoas, na construção de percepção, de sensibilidade de outras pessoas, porque essas pessoas estão aí, eu não tirei essas pessoas do meu bolso, as pessoas estão aí há muito tempo, mas é que nós enquanto sociedade e enquanto campo parece que acordamos agora.

É como diz a Juliana Vicente, diretora e produtora. Ela fez essa colocação algumas vezes em público como uma brincadeira séria: “nossa, 2015, inventaram os negros”. Mas aí, por exemplo, você olha para um texto antigo, de meados da década de 60, e essa discussão de representatividade – não de representação –, estava colocada literalmente no cinema. “Cinema de assunto negro nós temos, e cinema de autor negro, nós temos?” Já tinha essa colocação em meados dos anos 60.

Para voltar ao que estava dizendo, a questão da formação, e da minha contribuição e responsabilidade para a formação, é central, não tem como não passar por isso, para que as pessoas descubram antes e criem menos fissuras entre o filme e o “eu”, para que esse “eu” do filme não seja sempre um outro distante, para que haja reconhecimento.

 

CF: Isso varia entre alunos de perfis diferentes, que vão aos seus cursos por razões distintas?

HA: Falando das aulas de história e teoria de cinema, tem alguns perfis. Um dos perfis é formado por estudantes de cinema, negros e não negros, que simplesmente não tiveram aquele conteúdo em sala de aula. Tiveram no máximo uma menção. Uma gente que chega com um desespero, uma indignação, de “como não ouvi isso antes”.

Tem um outro recorte que é de um público que se considera cinéfilo, mas é uma cinefilia muito canônica, que passa por todos aqueles marcadores, Nouvelle Vague, etc. Então tem muita gente que chega com esse conhecimento dos cânones, escuta falar sobre algum curso meu, como o sobre Blaxploitation, e fala: “o que são esses filmes?” E aí “pira o cabeção”, porque é todo um mundo, uma quantidade grande de filmes.

Tem um outro público, que geralmente surge muito nas minhas aulas, que é um público que gosta de cinema, que geralmente não se intitula cinéfilo, mas que vem para um determinado curso por conta da questão. E aí tem uma tensão muito interessante, porque ao mesmo tempo em que eu trago a coisa da questão nos meus cursos, eu tenho formação de crítico. Tenho formação de construção de olhar, de plano, de mise-en-scène, e tem sempre uma questão muito interessante, porque essas pessoas interessadas na questão vêm para a minha aula e aí a gente tem uma discussão de análise fílmica.

Geralmente são esses três grupos, e eles são muito complementares. Quando eu dou a sorte de eles por acaso se encontrarem em um curso, rola algo muito interessante. O último curso de cinema Blaxploitation, que eu dei no fim do ano passado, no Sesc Bom Retiro, teve essa mistura. Tinha pessoas da História que tem interesse por cinema nesse recorte de raça, tinha pessoas do cinema que não tinham na universidade nem como eletiva nem como currículo obrigatório passar por esses filmes – o máximo que eles ouviam sobre Blaxpolitation era através do Tarantino, um diretor branco tentando se relacionar via cinefilia com o cinema do passado. Tinha um ator negro que trazia toda a experiência dele de vivência. A gente trazia discussões no sentido teórico e ele vinha com a experiência prática. São contribuições muito distintas.

Por isso que eu bato muito na tecla de outras pessoas pensando sobre o cinema, escrevendo sobre o cinema, porque tem muita contribuição a ser dada. Por exemplo, um crítico que me influenciou muito numa outra faceta do meu trabalho é o Robin Wood. Ele tem vários livros sobre autores canônicos, Bergman, Hawks e tem um texto chave para mim, de 1977, que chama “Responsabilidades de um critico gay de cinema”. Na primeira parte do texto ele tenta lançar um programa sobre o que seriam essas responsabilidades, do tipo “porque eu enquanto gay preciso dizer que sou um critico gay”. Aí ele faz um delineamento disso a partir das opiniões dele, inclusive de colocar como práxis não ir só aos filmes tidos como gays, mas de ir a filmes, e isso é um pouco de como eu penso. A questão não são só os filmes, somos nós indo aos filmes. Na segunda parte do texto ele observa filmes, alguns do Howard Hawks e A Regra do Jogo, e a contribuição que ele dá para a maneira de se experienciar esses filmes é muito interessante e muito distinta.

Quando li pela primeira vez esse texto – que eu inclusive traduzi para o português -, eu olho para ele e falo: “é isso.” Por isso que precisamos não só de mais gente. Não é só quantidade, são outros pontos de partida, outros lugares históricos, outros lugares de gênero, outros lugares de raça, para poder observar cinema. Para quebrar esse não enunciado paradigma de uma história do cinema, uma maneira de ler cinema, especialmente na critica contra-hegemônica brasileira de internet pós-paradigma Contracampo.

 

CF: Você citou essa questão da divergência entre a temática dos filmes e a análise da mise-en-scène, etc. Essa questão é muito levantada quando se discute quantos filmes de negros estão em festivais, quantos filmes de mulheres estão em festivais… Você citou no debate como é possível que haja diversos tipos de análises dos modos de representação. Quando as figuras de poder no festival se repetem, por mais que haja…

HA: Um interesse, uma vontade, uma preocupação…

CE: … a análise do que é esse modo de representação importante acaba tendo uma mobilidade não tão grande?

HA: Sim, e quanto mais eu convivo, tomo contato, leio esses outros seres históricos analisando filmes, eu vejo, por exemplo, que a discussão não fica só em tema x forma. Esse paradigma é presente, tem que estar presente e ter espaço na discussão. Se a gente fala em festival como formação de público tem uma questão de reconhecimento, de você olhar para aquilo e falar: “aquilo pode ser eu”. Para um adolescente ou para uma adolescente ver um filme coming of age de alguém que estava num lugar e vai para outro no qual que não sejam pessoas todas brancas, num colégio de elite, falando de um jeito muito específico de uma experiência de zona sul ou zona oeste de São Paulo. É importante que tenham outros corpos, isso é um pedaço relevante da discussão.

Outro pedaço, que gasto muita atenção, é que eu percebo que quando você tem mais mulheres, mais negros participando desses espaços de decisão, de curadoria, de debater filmes, de escrever sobre filmes, não se fica só nesse paradigma. E o rio comum já é outro. O rio que se bebe a água já não é tão comum e a água tem muitos outros sabores.

Dou como exemplo a oficina de crítica que eu dei ano passado no festival Janela, no Recife. Passou o filme Elle, do (Paul) Verhoeven, e houve dois textos escritos sobre ele, e dois textos escritos por jovens críticas mulheres. E os textos foram super hábeis em apontar o que elas acham problemático no filme por meio da encenação. Na leitura delas a misoginia no filme não se dá no acontecimento, mas por meio da encenação, por como o diretor apreende essa matéria.

Para citar outro exemplo, eu li uma crítica recente sobre o Mate-me Por Favor, escrita pela Karine. É um filme cheio de ressalvas, tal, e aí o que ela aponta no filme, a questão do atravessamento físico, ela leu o filme numa chave completamente diferente do que foi lido por esse campo da critica de cinema, inclusive por mim. Lendo o que ela disse eu falei: “eita, isso me escapou.” E era toda uma análise baseada na encenação.

Então eu percebo que quando você tem isso que eu chamo de outros seres históricos, outros corpos, outras cores, outros gêneros, essa discussão de um ou outro (tema x forma) se resolve muito mais simples, se torna muito mais orgânica, não é ou isso ou aquilo, essas coisas que competem entre si. Estou falando de coisas que eu percebo na vivência. A discussão toma outro corpo, outra práxis. Por isso que para mim é evidente, evidente, que se precisa desses outros seres, porque inclusive esse outro paradigma já é alterado, ele já não é o centro da questão, embora a componha. Passa a ser o centro da questão o entendimento de que a gente lida com filmes de formas diferentes, e como a ausência dessas pessoas nesses espaços muitas vezes implica a inexistência de circulação de certos filmes.

 

CF: Você citou que há alguns anos uma mesa de debate como a que você participou na abertura da Mostra de Tiradentes não existiria. Eu vejo que está havendo, pelo menos nas mesas de debate, discussões sobre representação/representatividade. No ano passado teve uma mesa sobre representatividade negra na Mostra de São Paulo; em Brasília teve uma mesa parecida e um debate acalorado sobre a temática indígena. Mas eu vejo que essa questão ainda é tratada na antessala. É na mesa de debate, mas ainda…

HA: Cadê os filmes dessas pessoas que foram convidadas para falar? Essa é uma questão. Esse termo que você usa é ótimo, antessala. Eu acho que existe sim um lugar de importância para a existência desses debates, porque se existe debate existem as pessoas, e se existem as pessoas existem as questões. Não é uma viagem, não estamos inventando coisas. Mas por outro lado a gente precisa tomar cuidado com o quão confortável que é colocar a questão só enquanto debate, na antessala.

Se temos uma preocupação com isso, isso tem que estar de forma mais presente inclusive com a presença de filmes, de quem fala sobre filmes, etc., se não fica confortável, se não todos nós vamos dormir muito tranquilamente em casa. Põe a cabeça no travesseiro e acabou, fiz uma mesa, e pronto. Eu não estou diminuindo o valor da mesa não, só acho que, e aí eu falo dos festivais de forma ampla, porque como você mesmo colocou isso tem se repetido, a gente precisa dar mais passos; a mesa é um passo, mas e os filmes? E outras pessoas pensando, falando e colocando os filmes em relação, outras pessoas decidindo sobre filmes, escolhendo os filmes, curando os filmes.

Eu comecei essa conversa falando sobre essa certa perspectiva de esquerda que existe. Por que eu falo que a gente precisa tomar cuidado com o conforto do debate? Porque não só não é suficiente, como também corre-se o risco de ser um mecanismo narcísico de quem realiza e de quem “dá espaço”, esse termo problemático – se você dá espaço, você continua sendo uma espécie de “mastermind articulador”. Mais do que dar espaço, é ter o dissenso e outras maneiras de pensar no centro da coisa, estando ao lado, inclusive de espaços de decisão. Não é só dar espaço, é (estar) ao lado.

 

CF: Qual é a sua opinião sobre iniciativas como a do Fincar, festival voltado para a produção de realizadoras?

HA: Acho importante. Você falou do Fincar e eu incluiria também a iniciativa da Amaranta Cesar, que é curadora do CachoeiraDoc, de propor um espaço de curadoria perspectivada pelas mulheres. Por que esses espaços me parecem mais do que indispensáveis, super necessários em termos de tensionamento? Porque obrigam o campo hegemônico a pensar “tá, se foi inventado um festival de cinema de realizadoras, significa que elas não estão participando de outros espaços?” Então do lado daqui, “opa”, precisa pensar.

Uma curadoria perspectivada pelas mulheres tem como interesse não só o que vai surgir dessas discussões, mas fazer esse outro lado não enunciado se enunciar. “Então existe curadoria só de homem?” Não, não existe. “Por quê?” Porque o homem é o pensamento universal. No debate eu me coloquei enquanto um negro critico de cinema. Significa que eu falo só de filme dirigido por preto? Não. Significa que eu falo só de filme que tenha a temática negra? Não. Mas significa que eu estou tentando tensionar essa relação. Mais do que a relação, tentando tensionar esse lugar não enunciado. “Ah, então existe critico branco?” “Não, existe tudo critico.” Mas o que é essa visão de critico? Quando você fecha o olho e fala “crítico”, quem que vem, o que que vem? Tanto em corpo, quanto em retórica e práxis?

Fiz essa comparação porque acho que tem efeitos da mesma ordem. Obrigar o não enunciado a se enunciar. De certa forma, obrigar o universalista a problematizar o quão universalizante é a sua perspectiva de fala, conhecimento, enfim.

 

CF: Poderia citar filmes recentes brasileiros que você acha importantes e não tiveram um espaço muito grande em festivais?

HA: É claro que a gente precisa reconhecer que a quantidade de filmes produzidos no Brasil, tanto de longa quanto de curta, é muito maior do que as janelas de exibição disponíveis. Sempre vai haver esse desequilíbrio se a produção continuar nessa quantidade, e me parece que vai continuar e aumentar. Feita essa ressalva, eu penso em três filmes recentes que circularam muito pouco e que eu não entendo essa não circulação. Não à toa, são três filmes dirigidos por mulheres.

O primeiro deles é Kbela, da Yasmin Thainá. É um filme que transborda cinema. Minutos atrás eu falei que quando você tem seres distintos olhando para filmes a discussão deixa de ser cinema x tema, e isso é incorporado. No caso do Kbela, pra mim é óbvio e ululante que se tivesse outras pessoas que se reconhecem naqueles seres que estão ali, esse filme não teria circulado de forma tão aquém. Ele circulou em espaços de militância, mas quase não passou nesses espaços prestigiosos de festivais. Se não me engano passou na Goiânia Mostra Curtas e só, se eu não estiver esquecendo de outro festival.

Chama atenção essa quase linearidade da decisão. “Aqui não”, “aqui não”, “aqui não”, “aqui não”. E é um filme que pra mim transborda cinema. Se a gente está procurando inventividade, ousadia, não didatismo, eu vejo tudo isso lá em Kbela.

É um filme formado por blocos nos quais mulheres negras trabalham essa experiência de se tornar negra. Tem uma performance de uma artista que – como nós negros ouvimos como adjetivo pejorativo cabelo duro, “cabelo de Bombril” – usa o cabelo dela para lavar uma panela. Tem outro bloco em que a mãe de uma mulher passa uma gosma para poder alisar o cabelo. Tem uma coisa que talvez a gente sequer tenha ouvido no cinema, que é o som de um cabelo de preto, cabelo crespo, sendo penteado, trabalhado com garfo. Um som que não existia na sonoplastia do cinema. Você ouve e fala: “ah, é assim.” Isso é um elemento estético fortíssimo no filme. Estou citando só méritos estéticos, para dizer que a pouca circulação desse filme é problemática demais.

Outro filme que acho muito interessante e cuja circulação está aquém é A Boneca e o Silêncio da Carol Rodrigues, uma diretora de São Paulo. É um filme sobre uma adolescente que engravida. A diretora articula vários sentimentos, inclusive sentimentos de pavor e de horror, sobre o medo da gravidez e o aborto. Claro que é difícil fazer essas equivalências, mas talvez, pelo fato de muitos dos espaços de decisão sobre onde os filmes passam serem dominados por homens, talvez não haja ali reconhecimento, uma coisa de olhar para aquele pavor e não entendê-lo só como ideia, mas como algo que atravessa. É uma hipótese, e acho que a gente precisa pensar sobre essa hipótese.

Um filme que gerou muito debate, mas que eu ainda tenho a sensação de que circulou menos do que deveria, é o Quem Matou Eloá?, da Lívia Perez. É um filme que é importante porque coloca em primeiro plano a questão do feminicídio e o tratamento midiático dado ao caso da Eloá, mas acho que é um filme interessante também pelas discussões que ele levanta enquanto forma. Não que o filme levanta em si, mas a maneira que várias pessoas de formações cinematográficas distintas podem lidar com aquele filme.

Foi um dos filmes que eu mais discuti do último Festival de Curtas de São Paulo, não só pela relevância do tema. Discuti, eu, um homem, observando aquele filme, em comparação com uma mulher observando aquele filme, como a gente avaliava as decisões de forma da Lívia enquanto diretora. Eu ficava ali com um desejo de ver o filme mergulhando nas imagens de arquivo e no absurdo da escrotidão daqueles âncoras de televisão, e a minha amiga apontava que é importante que o filme tenha essa forma por: 1 – ter mulheres nesse lugar de fala, elaborando intelectualmente sobre alguma coisa; e 2 – negar para a gente o gozo, o orgasmo com a catarse daquelas imagens. É uma discussão interessante, inclusive enquanto crítica. Esse filme circulou mais do que os outros dois que eu citei, mas acho que talvez deveria circular muito mais. E repito, méritos de tema, nos três filmes, mas méritos muito outros, méritos de cinema.

 

CF: Para fechar, queria que você falasse sobre como enxerga a questão do incentivo à produção no meio dessa busca por diferentes modos de representação e por uma maior representatividade.

HA: A questão do incentivo à produção é uma questão de política, e eu acho que não tem muito como contornar não. Nós temos vários editais, nacionais, estaduais… cota. Medidas de ação afirmativa. Ponto. Cada lugar com seu formato. São Paulo deu um passo importante com o edital da Spcine que procurou uma equidade em todas as etapas. Não tem como não passar por políticas de ação afirmativa.

Porque se não, volto à minha colocação inicial, a gente vai ficar só constatando a desigualdade: “nossa, não tem, não chegam, né?” E a gente pega um cafezinho e continua: “tá, mas não chegam por quê? Como fazer chegar, então?”

Por exemplo, “não tem pessoas trans que dirigem, atuam, fazem luz”. Não tem mesmo? Tem um grupo, que acho que por enquanto está fechado, que é o “LGBT no Audiovisual”, e eles têm feito um levantamento. Estão contando mesmo: “quem aqui nesse grupo é trans, faz o quê?”. E ai você fala “nossa, as pessoas existem”. Existem muito menos do que deveriam existir (no meio cinematográfico), óbvio. Mas essas pessoas existem. E no caso de pessoas trans, muitas delas não assumem sua identidade trans com medo de marginalização. “Se eu me assumir como homem trans e mulher trans, minha produção acadêmica vai para onde? Os filmes que fiz vão para onde? Vou conseguir trabalho? Ou só vou conseguir interpretar travesti? Eu vou conseguir dirigir um filme ou eu não vou ser vista enquanto diretor ou diretora, vou ser visto enquanto um subcidadão?”

A gente precisa, com o perdão do pleonasmo, encarar de frente. E sair do conforto da lamentação. Acho que a gente está no conforto da lamentação ainda. “Ah, não tem”. Não tem por que e o que a gente pode fazer? É muito confortável lamentar, e aí estou falando desse nosso campo do cinema independente, de arte, brasileiro, de festivais. Claro, se a gente for pensar enquanto sociedade, é uma desgraça, né? O discurso nem chega em uma quantidade muito grande de pessoas. Mas dentro dos nossos espaços, nos quais em teoria esse discurso chega, é hora de trocar a chavinha. E uma maneira de trocar a chavinha é questão de política.

 

*O repórter viajou a convite da organização do festival

Entre em contato

Assinar

Siga no Cine Festivais