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Eu, curadora, manejando efemeridades

24/09/19 às 16:30 Atualizado em 25/08/21 as 10:34
Eu, curadora, manejando efemeridades

Este texto foi escrito originalmente para ser lido junto com imagens em um dos debates do Filmes pelo Avesso – Fórum Curatorial, promovido pela conferência Besides the Screen e realizado de modo online nos dias 10 e 11 de setembro de 2020. É possível assistir às apresentações de Lila Foster e Lucas Murari neste link. Já as falas de Patricia Mourão e Raphael Fonseca podem ser acessadas aqui.

Efêmero 1

Esta cidade não tem cinema. No mês de janeiro constrói-se uma Cine Tenda onde, no tempo cotidiano, funciona a rodoviária. Essa estrutura efêmera expulsa os cachorros de suas casas, dos seus espaços de pertença, e durante a semana eles vão ocupando os cantos desse cinema temporário: latem para os jovens que tomam latinha, deitam do lado dos pufes patrocinados, entram na sala para apresentar uma sessão.

O cinema é grande, muito grande, ali se reúnem centenas de pessoas. Entro pela lateral direita, sempre pela lateral direita, passo o segurança, o banheiro químico, entro na sala refrigerada apinhada de gente.

Reclames, anúncios, patrocínios, apresentação de equipes, emoção. O filme começa: um trem, os recantos de um bairro paulistano, tudo em preto e branco. Estamos em uma São Paulo que não sabemos de qual tempo, mas que estranhamente tem uma inscrição de um tempo histórico, texto do Brecht reencenado com os artifícios do cinema. Não é realista, mas tangencia a realidade, sua estrutura de exploração. Uma padaria, o dono de uma padaria, uma jornaleira, um grupo de teatro, uma mulher injustiçada. No filme se canta e a melodia ecoa por algumas horas na minha cabeça depois da sessão.

Isso aconteceu em janeiro de 2020, era dos festivais presenciais.

Este texto foi escrito em Setembro de 2020, era dos festivais online.

Essa é a Primeira contribuição para uma “História Oral do Cinema Brasileiro Contemporâneo”.

Efêmero 2

Aqui um frame do curta-metragem Nitrato, de Alain Fresnot, Um rolo de filme com suporte de nitrato está em chamas. Nitrato, um suporte cinematográfico altamente inflamável e capaz de autocombustão. Quando em chamas, o fogo só se apaga depois de toda matéria se extinguir. Não há água que resolva. Um suporte suicidário, que traz em si a possibilidade da sua própria e repentina extinção. As imagens foram filmadas na Cinemateca Brasileira, ainda em sua antiga sede no Ibirapuera, em 1974. No filme, imagens do acervo de uma cinemateca viva, mas em ruínas. Nas imagens, paira um ar de assombro, um ar fantasmagórico, tudo parece prestes a ruir.

O cinema foi em grande parte da sua história matéria orgânica, suporte, emulsão, gelatina, cartilagem, prata, luz, fotografia que se vê a olho nu. Por isso, a história do cinema ainda é uma história que se encontra. Um filme desaparecido, um filme nunca visto, pode retornar, voltar à vida depois de revirarmos ruínas por longos anos ou num encontro inesperado, nas mãos de um vizinho. Por quanto tempo isso ainda será possível?

Em um e-mail, o pesquisador Erly Vieira Jr. comenta sobre Kaput, filmado em 16mm por Paulo Torre, em Vitória, Espírito Santo, provavelmente em 1967. O pesquisador cita um ciclo cinematográfico que surge na cidade nos anos 1960 a partir do Festival de Cinema Amador JB/Mesbla, que acontecia no Cinema Paissandu, Rio de janeiro. Kaput é um filme amador sobre o movimento estudantil. Nele, um jovem é morto ao fugir da polícia. Kaput está disponível no Vimeo da produtora Pique Bandeira. Meu amigo Vitor Graize, que também gosta de escavar, o coletou, o colocou novamente diante dos nossos olhos. É um filme forte, quem viu Kaput?

Em 2018, descobri que um amigo da minha mãe, o ilustrador Jô Oliveira, tinha feito um filme de animação direto na película, que concorreu ao mesmo festival que Kaput. Coincidência, procura, alguns meses depois o filme estava ali, diante dos meus olhos, pequeno rolo em 16mm, filme original pintado à mão com cores vibrantes. Pantera Negra junta fotos publicadas do movimento negro norte-americano, imagens de luta, de dor e violência, um ritmo animado, sincronia e dessincronia com a imagem. É um filme importante para a história do cinema de animação no Brasil. Alguém quer ver Pantera Negra? O que se sente vendo esse filme?

A sede atual da Cinemateca Brasileira, que está abandonada pelo poder público, fica no antigo matadouro municipal de São Paulo. Morte e cinema caminham sempre juntos? Não é o cinema, afinal, que confere eternidade a um semblante? Será que eu tenho pensado demais na morte?

Efêmero 3

Arcano XIII, o arcano sem nome. Mas tem nome sim, é a morte.

Em 2001, Paolo Cherchi Usai, preservacionista audiovisual e curador, publicou o livro “The death of cinema”. Nessa virada de milênio, o digital surgia como um substituto mais econômico e comercialmente viável para a indústria como um todo. Foi uma grita. O que seria da película? O que seria do cinema? O digital é muito inferior ao celuloide!

Quando as câmeras digitais ficaram tão boas quanto as analógicas, o cinema não se viu mais ameaçado. As mortes do cinema também são efêmeras e estão em eterna transmutação.

Mas Paolo Chechi Usai vaticina: Cinema é a arte da destruição da imagem em movimento.

Somente a constante destruição da imagem em movimento permite a escrita de sua história.

Meditações sobre os 22 arcanos do Tarot, autoria anônima:

“A nossa experiência empírica da morte é a do desaparecimento dos seres vivos do plano físico. Essa é a experiência que nos dão nossos cinco sentidos. Mas o desaparecimento como tal não se limita a isso, uma vez que é experimentado também no domínio da experiência interior, ou da consciência. Imagens e representações desaparecem dela como os seres vivos desaparecem da experiência dos sentidos. É o que denominamos “esquecimento”. Todas as noites esse esquecimento se estende sobre nossa memória, nossa vontade e nosso entendimento, de modo que nos esquecemos inteiramente. É o que denominamos sono. Esquecemo-nos, adormecemos e morremos. Lembramo-nos, despertamos e nascemos”

Quantas imagens o mundo produz por minuto?

Qual é a coisa mais efêmera que existe no mundo agora?

Efêmero 4

Ephemeros no grego é a duração de um dia. O registro do céu e da passagem dos dias é a ephemeris, uma tabela que registra a trajetória dos planetas, a posição de asteroides, o universo visto do ponto de vista da terra e, portanto, humano. O efêmero registrado, as ephemeris mais antigas, são de dois milênios atrás.

Como parte da equipe de seleção de longas-metragens da Mostra de Tiradentes, assisto mais de 100 longas-metragens brasileiros por ano. Em três anos realizando esse trabalho, ainda sonho com filmes que não entraram na seleção; filmes que me impactaram de alguma forma, mas que não passaram a integrar a programação de qualquer outro festival ou sala de cinema. Essas imagens sempre voltam. Fico atenta para saber se eles vão nascer ou existir, finalmente, no mundo. Mas de qual mundo estou falando?

O filme citado em Efêmero 1 é Pão e Gente, de Renan Rovida. Durante o debate com a equipe, alguém o perguntou: como vai distribuir o filme? Como fazer o filme furar a bolha? Ao que ele respondeu: “vejo o meu filme quase como uma peça de teatro: existiu aqui, vai existir de forma efêmera em outros lugares e pronto.” Eu complemento: vai existir de forma efêmera, sem ter a sorte de um novo encontro no futuro.

Eu achei muito justo aceitar o efêmero do cinema. Mas dói, sempre dói.

Me pergunto: a bolha é uma UTI neonatal?

No teatro, o original talvez seja o seu texto. Na era do digital, o que será o original?

No digital, a memória do nosso tempo se tornará cada vez mais humana, cada vez mais destituída de objetos. Teremos que lembrar, descrever os filmes a partir de nossas lembranças nas aulas sobre o cinema brasileiro dos anos 2000. Sonho em estar viva em 2050 para dar aula de cinema brasileiro.

Para os professores do futuro, proponho aqui o projeto, a ser publicado em papel acid-free, “História Oral do Cinema Brasileiro Contemporâneo”.

Efêmero 5

Como curadora, eu me coloco abaixo do céu do cinema brasileiro. É desse ponto de vista que crio relações entre o que acredito que sejam tramas tecidas entre passado, presente e futuro.

Mapeio o céu, tento ver para além dos astros já detidamente medidos e esmiuçados. Existe algo que precisamos ver? Que linha certos filmes são capazes de criar? Que linhas são rompidas? Que linhas são retomadas?

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