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Um grito solto no ar: Carlos Segundo fala sobre Fendas

25/11/19 às 16:19 Atualizado em 01/07/20 as 18:46
Um grito solto no ar: Carlos Segundo fala sobre Fendas

Uma mulher gritando para o mar no Forte dos Reis Magos, em Natal. Com essa imagem na cabeça, Carlos Segundo começou o processo que desembocaria em seu primeiro longa-metragem, Fendas, que estreou no FidMarseille, na França, no último mês de julho, e teve exibições brasileiras na 43ª Mostra de São Paulo, no XV Panorama Coisa de Cinema, em Salvador, e na 6ª Mostra de Cinema de Gostoso (RN).

A mulher imaginada ganhou nome, Catarina, e corpo, o da atriz Roberta Rangel. Assim como Carlos, que em 2017 passou em um concurso para dar aulas no curso de graduação em Audiovisual da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a personagem é uma professora da mesma UFRN, só que leciona Física Quântica. Seu trabalho envolve uma pesquisa em busca de espaços sonoros na imagem. “Esse conceito foi aquele que me deu segurança de que o filme poderia funcionar”, comenta o diretor sobre a ideia de destruir a imagem para encontrar um outro tipo de som.

Em conversa com o Cine Festivais durante a 43ª Mostra de São Paulo, Carlos Segundo falou sobre o processo criativo de Fendas.

Cine Festivais: Fico interessado em saber como a relação com os espaços é importante para o seu processo criativo. Sei que você já morou em diversas cidades aqui no Brasil (Uberlândia, São Paulo, Campinas, Natal), passou alguns anos na Inglaterra, fez um filme em Porto Seguro (Balança Brasil)… Então gostaria de te ouvir um pouco sobre isso, pensando também em como a ideia do Fendas surgiu a partir da sua mudança para Natal.

Carlos Segundo: É engraçado porque aqui na Mostra de São Paulo assisti ao último filme do Elia Suleiman (O Paraíso Deve Ser Aqui), cineasta palestino, e eu descobri há poucos anos que o meu avô era palestino. E pra mim fez todo sentido saber que eu tinha uma raiz palestina, porque minha história tem um pouco desse não-lugar. Diversos não-lugares. Essa coisa de não entender, por exemplo, em que lugar que estou na questão racial. Negro? Branco? A questão geográfica mesmo: Mineiro? Paulistano? Agora com um pé no Nordeste. Eu brinco também com a questão de não ser homem suficiente [para o] que Bolsonaro quer, mas também não estar transitando pelo universo gay. Ou seja, existe um simbolismo em torno desse não-lugar de várias formas, e eu acho que isso acaba refletindo um pouco no trabalho que eu faço.

Não tenho nenhum problema com a ideia de mudança, acho que me daria bem em qualquer lugar. Tenho uma coisa de pensar em tempos, do tipo “vou passar cinco anos em cada lugar”. Na Inglaterra eu não cheguei a ficar cinco anos, mas fiquei três, e volto lá sempre porque minha mãe mora lá. Em São Paulo fiquei cinco anos… Então tem essa coisa dos períodos em cada espaço. Com Uberlândia tenho uma relação muito forte, porque é onde passei minha infância e adolescência, na periferia da cidade. E o Nordeste tem me trazido uma grata surpresa. Fui muito bem recebido em Natal, a cidade foi muito generosa comigo. E acho que tinha uma curiosidade por esse espaço, por essas pessoas, por esse ritmo de vida. Eu nunca tinha morado numa cidade que tinha praia, por exemplo, então tem essa novidade de conviver com essa natureza tão perto e tão forte, essa coisa do mar. E o Fendas surge dessa relação; o filme começa a se desenhar para mim com a imagem dessa mulher que está no Forte dos Reis Magos e grita em direção ao mar.

Foi algo que surgiu quando você andava pela cidade?

Não sei te dizer exatamente. É uma coisa que surge. Quando fiz o Ainda Sangro por Dentro eu tinha a imagem dessa pessoa que guarda o feto para devolver, e a partir disso fui pensar na história que está no entorno disso. Aí começa uma busca por saber quem é essa personagem, um processo bem inventivo, de ir coletando possibilidades de cruzamento de situações, de estados… Foi o mesmo que aconteceu com o Fendas: depois que veio a imagem dessa mulher que grita para o mar, eu começo a pensar quem é ela, o que ela faz, por que ela sente esse desejo de gritar para o mar, o que ela quer alcançar…

Você citou no debate que via um paralelo entre essa personagem que grita não se sabe para quem com a situação dos cineastas independentes brasileiros. Em que momento você se deu conta dessa relação metafórica?

Isso me veio em um debate depois da estreia do filme no FIDMarseille, na França. Parece que você se exercita mais a pensar o filme quando vai falar em outra língua, porque não é algo natural, então você tem que ficar sistematizando um pensamento para poder estudar as palavras que vão ser usadas, e nisso me veio essa imagem: pô, esse grito é também um grito nosso, de um cinema que está em busca de alguém que escute, que veja. E é muito louco pensar como no filme esse grito é para um outro continente, justo num momento em que o cinema brasileiro vem sendo reverenciado fora do país, muito mais às vezes do que aqui dentro. Então talvez o grito faça sentido.

E no seu caso o reconhecimento internacional veio, por exemplo, na exibição de dois curtas-metragens no festival de Clermont-Ferrand, na França, tendo ali um reconhecimento maior do que em grandes festivais brasileiros. Você sente um pouco isso: que às vezes o seu grito, o seu cinema, reverbera mais no exterior?

É uma coisa sobre a qual eu venho refletindo. Não quero fazer críticas, ou apontar o dedo para algum lugar ou para alguém, mas de fato houve essa melhor recepção em festivais de fora, e eu não sei dizer por quê. Não sei se é porque esses três filmes (os curtas Ainda Sangro Por Dentro e Subcutâneo e o longa Fendas) tratem de universos femininos, e isso talvez crie um certo bloqueio a partir do meu lugar de cineasta homem cis. Nesse momento histórico brasileiro, é uma coisa que talvez tenha um impacto. Lembro que quando estreei o Ainda Sangro por Dentro no Olhar de Cinema, em Curitiba, depois de ter passado em Clermont, houve um debate um pouco acalorado. Aí comecei a entender que isso poderia ser uma questão. Mas também não quero dizer que seja por isso [que haja uma divisão de recepção].

E surpreendentemente o Fendas voltou para dentro de casa muito rápido. Ele estreou em Marselha, passou em Praga, e agora teve exibições na Mostra de São Paulo, no Panorama Coisa de Cinema e na Mostra de São Miguel do Gostoso. Com os curtas foi diferente, eles demoraram a chegar no Brasil. E se formos pegar os grandes festivais do Brasil – Brasília, Gramado, Janela, Curta Kinoforum – eu não tenho nenhuma passagem por eles com os curtas… Talvez essa coisa do grito no Fendas possa ser também uma forma de querer dizer “estou aqui também”.

A protagonista do filme tem um trabalho obsessivo – ela adentra aquelas imagens, faz zooms cada vez maiores. E é um trabalho muito solitário também. Você sente que o seu trabalho tem um pouco dessa obsessão da personagem?

Eu acho que Catarina está buscando algo que ela não sabe o que é. Quem espera ver um filme que conte uma história de uma personagem fica meio decepcionado com o Fendas, porque na verdade é um filme para dentro, e não para fora. O movimento que ela faz no trabalho com a imagem é o movimento que ela faz na própria vida. Então é um filme muito mais cerebral do que corporal. Ela não tem movimento pelos espaços no sentido do confronto com o externo, a não ser em um momento mais para o final do filme em que ela reencontra o ex-marido francês. Ou seja, ela grita para fora, mas ao mesmo tempo quer romper com essa relação que já tinha criado fora, e isso talvez seja também uma metáfora bem interessante com relação ao meu cinema, de aproximação e distanciamento com o que é de fora.

Acho que nesse sentido tem essa coisa de uma busca constante por entender o que me motiva a fazer cinema. Se Catarina busca esses sons e por meio disso tenta entender a si própria enquanto subjetividade, acho que tenho buscado entender que cinema é esse que estou fazendo, e nesse caminho vou encontrando coisas, assim como ela. E a personagem tem um mergulho formal nas imagens que é uma coisa que me interessa muito; tenho tentado lidar com uma relação mais próxima entre forma e conteúdo. O primeiro curta que eu fiz, lá atrás, estava muito mais interessado em pensar o cinema enquanto ontologia do que de fato numa história, mas agora eu tento criar uma aproximação entre esses dois universos.

Pensando essa divisão ontologia/dramaturgia, queria perguntar sobre suas escolhas formais por filmar com planos abertos, longos, com uma recusa pelo contraplano. Me parece que isso pode gerar uma certa desdramatização, se formos pensar na evolução da personagem da Catarina.

Desde os meus curtas, uma das coisas que eu discuto com as atrizes é que o que tem que ser estranho não é a encenação, e sim o que já é estranho no próprio filme. O Ainda Sangro por Dentro tem um plano de oito minutos na hora em que é apresentado o feto, e eu não queria me aproximar para poder potencializar isso pela imagem. Meu desejo era que o estranhamento estivesse na própria situação, e não nesse confronto com o rosto, que eu acho que poderia levar o filme para o lugar de um arquétipo que não me interessava, uma ampliação do que já estava dado pela situação.

No Fendas tem isso, mas tem também a questão de a câmera se posicionar como Catarina se posiciona no mundo. A gente olha Catarina como ela olha o mundo: distante. Só que ela tem também o movimento de entrar nesse mundo pela imagem. Então eu queria manter esse olhar distanciado para que o impacto da experiência dela com as imagens pudesse ser mais forte.

E esse plano longo, principalmente aquele de mais de 12 minutos, para mim é fundamental, porque ele muda o filme; é um momento da transição de um início que mostra o cotidiano dela para um momento em que de fato começamos a entrar na pesquisa dela. Quando começa o movimento de zoom da imagem, é o momento em que a Catarina começa a entrar na discussão sobre a pesquisa dela. Aí sim me interessa ir me aproximando dela. De resto, eu entendia que se eu cortasse aquela imagem, estaria interferindo naquele movimento, que eu achava que deveria ser natural das duas personagens.

Nesse ato de adentrar as imagens para encontrar novos sons que constituirão uma fonética própria há um contraponto a um privilégio histórico da imagem com relação ao som. Gostaria que você comentasse sobre isso.

Essa experiência da personagem abre dois tipos de pensamento, um enquanto ontologia e outro enquanto simbolismo. No primeiro caso é a ideia de destruir a imagem para encontrar o som, e acho que esse conceito foi aquele que me deu segurança de que o filme poderia funcionar. E pensando nisso, talvez esse seja um filme que só faz sentido se você ouvi-lo em 5.1, dentro de uma sala de cinema, porque aí você mergulha nesse universo. E talvez por isso ele perca força em seleções de festival, porque se você tá ali com uma telinha, tem que imaginar que esse som pode ser potente na sala, né?

Pensando enquanto simbolismo, acho que estamos em um momento em que vemos o outro a distância e já tentamos criar uma imagem desse outro, até pela questão do momento político que a gente atravessa. Então tem esse lugar de pensar no que significa ouvir o outro. E quando eu falo nisso penso não só na escuta direto, mas na essência. E a personagem consegue acessar um universo que talvez seja inacessível, daquilo que eu ouço e que não está sendo dito para mim, mas que eu posso acessar. E isso na vida talvez seja muito difícil, por isso que eu acho que o cinema é tão bonito.

Imagino que esse conceito trouxe um desafio para o próprio trabalho sonoro do filme. Como se deu o trabalho com o Léo Bortolin, que fez a edição de som e o desenho sonoro?

Acho que um desafio era encontrar esse som fruto da destruição da imagem. Eu não sabia que som era esse, e nem como distingui-lo de um som, digamos, realista. A questão era: como distanciar, de um lado, o mergulho subjetivo dela naquelas imagens, e de outro, o universo da vida cotidiana da personagem, que a gente ia apresentando pouco a pouco?

Por uma grande coincidência, antes de prestar concurso em Natal, eu prestei na UnB, em Brasília, para uma vaga de Som. Porque é isso, quando você começa a prestar concurso e abre uma vaga, você vai lá e faz. Não é propriamente seu universo, mas você se arrisca. Para prestar o concurso eu li várias coisas sobre som, e cheguei na dissertação do Léo Bortolin sobre O Som ao Redor. Eu não sabia exatamente quem ele era, mas conhecia os filmes do João (João Paulo Miranda Maria), e eles têm um trabalho sonoro muito interessante. E aí casou de chamar o Léo: expliquei o projeto e ele topou entrar.

Acho que foi muito enriquecedor para o filme o que ele trouxe de possibilidades sonoras. Porque não é só pensar o som enquanto espaço sonoro, mas o que poderia ecoar ali dentro das imagens, e ele foi trazendo várias referências. O som de baleia que está ali em alguns momentos, que se mistura com o som de um possível ventre, que se relaciona à filha que morreu… Então ele foi pensando essas camadas sonoras, e em como isso poderia secar na hora em que a gente fosse mostrar a vida cotidiana dela. Mas não secar completamente, guardar alguns resquícios também.

Tem uma coisa que o Deleuze coloca enquanto pensamento que eu acho que serve para tudo que a gente estava fazendo. Ele fala que o professor que ele respeita é aquele que não dá aula sobre o que ele sabe, mas sobre o que ele busca. Acho que a gente não fazia um filme sobre o que a gente sabia; fazia um filme sobre o que a gente buscava. Por isso é um filme menos fechado enquanto narrativa. Talvez seja fechado enquanto conceito, mas enquanto narrativa ele é bem aberto.

Assista ao trailer de Fendas.

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