Vencedor do Prêmio Aquisição Canal Brasil na 19ª Mostra de Tiradentes, o curta Eclipse Solar é o terceiro trabalho dirigido por Rodrigo de Oliveira, que já havia exibido no evento mineiro em anos anteriores os longas As Horas Vulgares e Teobaldo Morto, Romeu Exilado.
No novo filme – que será exibido na edição paulistana da Mostra Tiradentes nesta segunda (21), às 21h30, no CineSesc -, uma intrincada rede de ressentimentos é revelada aos poucos em uma história que reúne dentro de um museu uma avó, um filho, uma mãe e um neto, além do Diabo em pessoa.
“O Eclipse Solar, como o Teobaldo antes, é um filme de acerto de contas. Tudo o que aconteceu a essa família está no passado, e quando o filme começa os dramas já estão estabelecidos, o pior já passou. Mas sobram as pessoas e seus rancores; elas carregam as marcas das escolhas que fizeram no passado, e o presente é o espaço do confronto com quem eles se tornaram, e não com o que aconteceu”, comenta Rodrigo.
Em entrevista por e-mail ao Cine Festivais, o cineasta falou sobre questões ligadas ao seu processo criativo e à participação na Mostra de Tiradentes.
Cine Festivais: Assim como em Teobaldo Morto, Romeu Exilado, Eclipse Solar apresenta relações familiares conflituosas que vão sendo reveladas aos poucos para o espectador, de maneira nunca óbvia. Essa é uma preocupação que você tem no processo de roteirização? Há espaço para a improvisação durante as filmagens?
Rodrigo de Oliveira: Os fatos costumam me interessar muito pouco, gosto mais de lidar com o senso de acontecimento, das reverberações que um fato provoca, das consequências daquilo que se deu. O primeiro passo no processo de escritura do roteiro é sempre o de investigar os fatos: é fundamental, para mim, dominar completamente a trama desses personagens, os detalhes de tudo o que aconteceu e como aconteceu, para só então conseguir escolher o que não mostrar, que informações negar.
O Eclipse Solar, como o Teobaldo antes, é um filme de acerto de contas. Tudo o que aconteceu a essa família está no passado, e quando o filme começa os dramas já estão estabelecidos, o pior já passou. Mas sobram as pessoas e seus rancores; elas carregam as marcas das escolhas que fizeram no passado, e o presente é o espaço do confronto com quem eles se tornaram, e não com o que aconteceu.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a improvisação é impossível, ela é também o que faz o filme ganhar vida. Sou bem estrito com os atores em relação ao texto, aos diálogos – ali não há nenhuma chance de improvisação, porque nessa negociação que faço com os fatos, a palavra tem um poder revelatório muito maior, e as coisas precisam ser ditas na hora certa, quando falar é inevitável. Mas todo o resto, a maneira de falar, onde colocar as pausas, que olhar carregar durante cada frase, isso é da ordem do ator, é o espaço sagrado deles. Aí tudo o que surge é improviso (no sentido de uma ideia que não existia antes que essas vozes e esses corpos entrassem em cena).
Eu posso dizer no roteiro que “Henrique chora” ou “o Diabo gargalha”, mas a escritura disso, a imagem disso, é de responsabilidade do Erik Martincues e do Rômulo Braga, por exemplo. Eles se preparam bastante para esses momentos, buscam os sentidos e as emoções em lugares que eu nem preciso conhecer, e no momento em que choro e gargalhada se dão diante da câmera, é tão surpreendente e inédito para mim quanto para qualquer outro espectador.
CF: Você pretende seguir realizando filmes em que a temática do conflito familiar seja central? Já há novos projetos em andamento?
RO: Famílias sim, mas não exatamente em conflito (e certamente não mais diabólico, como no Eclipse Solar). O que mais me move, hoje, é uma ideia de legado: o que se transmite de uma pessoa a outra, de uma geração a outra, de uma mãe a um filho, de um irmão a outro, quando há amor? O que sobra em nós todos daquilo que está para além da influência genética, do que se aprendeu, do que se abraçou e do que se rejeitou da mãe, do pai, da família?
Pensando nos projetos que estou tocando agora, todos eles carregam algo disso. O próximo longa chama O Amor dos Meus Filhos, por exemplo. Também estou trabalhando num curta-metragem novo em que uso materiais que filmei ao longo da vida – fitas caseiras da adolescência e um filme que realizei na faculdade e que nunca ficou pronto -, e na hora de imaginar que filme eu poderia fazer a partir dessas imagens tão diversas entre si, rodadas em momentos completamente diferentes da minha vida, foi de novo uma ideia de ficção familiar que surgiu.
CF: Em debate na Mostra de Tiradentes de 2014, que homenageou Marat Descartes, o também ator Gero Camilo reclamou do senso comum que associa a atuação “teatral” a algo negativo. Uma tendência anti-naturalista pode ser notada em seu cinema. Por que você vem realizando essa opção e como é o seu trabalho de escolha de elenco e preparação dos atores? Nesse sentido, você sente que está numa contracorrente do que vem sendo produzido hoje em dia no Brasil?
RO: Isso depende muito de como se define “natureza”. Se isso se refere a um modo mais corriqueiro e coloquial de comunicação, a um uso mais pobre da língua, aí eu enxergo anti-naturalismo nos meus filmes sim. Mas tudo isso parte de uma premissa muito errada, e tão antiga, que é a de que o cinema é uma tradução literal da vida que “fala a língua do mundo real”. O real é sempre construção, e a natureza será sempre renovável – cada filme refunda o mito da criação original do mundo, estabelece suas regras próprias.
No mundo do Eclipse Solar, onde um soldador urbano pode virar um capataz de fazenda, uma diretora de museu pode virar uma aristocrata do século XVIII, e onde até o Diabo em pessoa aparece, a natureza é claramente outra, e dentro desse universo todos os personagens respeitam estritamente o naturalismo que lhes coube viver.
A outra parte tem a ver com o próprio espírito do drama, sobre o ponto da vida em que os personagens se encontram quando o filme se aproxima deles. Articular bem um pensamento sobre si mesmo, sobre a situação que te cerca, usar a retórica como parte da expressão da alma, isso tudo é tão humano e natural quanto qualquer outra coisa. Nesse sentido, há um primeiro nível de teatro evidente, e que está lá nos filmes do Eduardo Coutinho, ou na definição de auto-ficção que o Jean-Claude Bernardet tem trabalhado recentemente. Todo aquele que fala diante de outro se teatraliza, encarna um personagem.
O segundo nível do teatro-de-si-mesmo me parece ainda mais interessante, e tem a ver comigo mesmo. Meus filmes nunca poderiam existir em outro lugar que não o cinema. Eles são obviamente inviáveis na vida real, justamente por serem tão radicalmente reais: não existem metáforas, não existem suposições teóricas, não há sonho ou escape do inconsciente; o desejo é filmar o símbolo despido de simbolismo. Tudo o que se experimenta como sentimento é traduzido em imagem filmável, em matéria visível. Não existe pregnância possível, as imagens e os personagens já estão grávidos desde o começo do processo, e o filme é o lugar dos partos, um atrás do outro. E não existe coisa mais natural que um parto, ao mesmo tempo manifestação da carne e do espírito, do milagre.
Meus filmes são muito mais solitários que eu. Mas não acredito que eles estejam na contracorrente, eles só estão navegando na corrente há algum tempo abandonada do cinema moderno brasileiro. Somos poucos os que ainda encontram fôlego no moderno nesse ambiente tão opressivamente contemporâneo, mas os filmes existem, estão por aí.
Sobre o registro dos atores, bem, a eles se impõem todas essas condições que falei acima, eles são parte dessa mesma ideia de cinema, e eu tenho a sorte de já ter um pequeno grupo deles, minha “trupe”, gente com quem eu trabalho com frequência (tanto o Erik quanto o Rômulo estiveram nos meus três filmes, por exemplo), e atores que eu enxergo dominando de cara esse universo (como a Rejane Arruda, com quem trabalho pela primeira vez no Eclipse).
Eu escrevo roteiros com esses atores já em mente, a voz dos personagens já nasce associada às vozes deles. E por isso, e mais por uma confiança que vou aos poucos adquirindo no contato com os atores, eu cada vez faço menos preparação anterior ao set. O Eclipse tem um exemplo lindo disso, que é Rômulo e Rejane se conhecendo pela primeira vez às oito da manhã, para filmarmos a sequência do diabo às dez, e em duas passadas de texto que eles dão fica muito evidente não só como faremos, mas o que a cena significará dali em diante. É por causa dos atores que o Diabo e Selma são tão sensuais, lascivos, flertando no limite da violência. Eu só fiz observar e obedecer.
CF: De maneira parecida, a palavra “melodrama” e suas variações aparecem associadas no senso comum a algo negativo. Sobre este aspecto, em que autores (seja de cinema ou de outras artes) você se inspirou para realizar Eclipse Solar?
RO: Sem os arquétipos todos, sem as informações, sem a programação para determinados efeitos reconhecíveis e já vistos, eu diria que o Eclipse Solar está no lado oposto ao melodrama. Mas ele está sim muito próximo de certas bases fundadoras da cultura ocidental, a começar pelo Goethe, que tá lá “traduzido” no coração do filme, mas também o Tolstói e o Thomas Mann. Do cinema, a origem está no Eric Rohmer, no Manoel de Oliveira e no Paulo César Saraceni.
CF: Seja pelos selecionados para a Mostra de Tiradentes neste ano ou pela abertura feita pelo regulamento do Festival de Brasília do ano passado a médias-metragens, é possível notar em um período recente uma tendência à existência de curtas com uma maior duração. Texto escrito pelos curadores Cleber Eduardo e Francis Vogner dos Reis no catálogo da Mostra de Tiradentes diz que “entre os selecionados para a Foco e para outros segmentos de Tiradentes, há casos de adequação à duração e casos de excessos (mesmo em filmes mais econômicos)”. Qual é a sua percepção geral sobre essa tendência e de que modo a questão da duração foi pensada, principalmente nos processos de roteirização e montagem do seu filme? A ideia inicial sempre foi de fazer um curta?
RO: Sinto que a montagem ainda é um problema nesse panorama do cinema brasileiro mais jovem, que costuma mesmo ser mal-montado, às vezes muito indulgente com o material, ou com dificuldade em intervir e corromper a natureza das imagens e dos sons, talvez porque haja muito apego ao processo de realização, enfim. Mas isso não explica a duração dos filmes, nem as justifica. A culpa da duração é da vida contemporânea, dos tempos que vivemos, da relação que o mundo tem hoje com a extensão temporal, com nossa capacidade perturbada de fruição.
O (Jacques) Rivette falava isso a respeito do cinema clássico americano: que o Preston Sturges conseguia apresentar dois personagens, fazê-los se odiar, se desimportar e por fim se apaixonar no espaço de uma cena de três minutos, e que qualquer cineasta sério hoje precisaria de pelo menos uma hora para filmar a mesma coisa.
Eu acho que o importante é se respeitar o tamanho da ideia que se tem em mãos, e depois arcar com o preço disso. Eu fiz um longa com 123 minutos, outro com 118, e agora um curta de 28, e eu tenho plena consciência de que a duração afasta alguns espectadores, e desmobiliza alguns curadores, irrita alguns críticos. Mas nessa ideia de cinema que opera por acúmulo, por informações espalhadas aos poucos, com criação de tensões que levam até uma explosão final, a duração é parte do encanto e do peso, do lastro que o filme precisa deixar.
O meu grande problema de montagem é que eu sou um roteirista extremamente narrativo e clássico, mas um montador experimental e interventor, e nem sempre essas personalidades antagônicas se entendem. Tem um reequilíbrio de forças aí, entre o desejo e a recusa de narrar, para o qual o Eclipse Solar é um primeiro passo. Eu sempre soube que o filme teria essa duração, e o corte final contém todas as sequências que filmamos, nada ficou de fora.
CF: Neste ano foi muito destacada pelos realizadores a maneira como os filmes da Mostra Aurora dialogaram entre si. Você enxerga a mesma organicidade nos trabalhos exibidos na Mostra Foco este ano? Como vê o seu filme nesse contexto?
RO: Pela própria natureza da curadoria, e pelo volume de produções, é muito difícil supor organicidade à Foco, porque a ideia nem é essa mesmo. E aí eu acho que o mais importante é notar as diferenças mesmo, é investir nas lacunas e tentar fazer os filmes dialogar na ruptura, e não na adesão.
Eu tenho um irmão no Giovani Barros e no seu A Vez de Matar, A Vez de Morrer, e existem algumas outras relações possíveis com o Noite Escura de São Nunca (que tem uma cena de mulher assediada pelo Diabo também!). Em termos de geração, de ousadias, arrogâncias, inocências e errâncias, acho que estamos todos muito próximos, e é excitante perceber que ainda assim os filmes surgem tão diversos entre si.
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