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Tematizar a forma, formular o tema: uma conversa com Rodrigo de Oliveira

27/06/22 às 13:26 Atualizado em 27/06/22 as 15:48
Tematizar a forma, formular o tema: uma conversa com Rodrigo de Oliveira

“Os meus filmes demoraram muito mais tempo para sair do armário do que eu”, reflete Rodrigo de Oliveira. O cineasta capixaba, autor de obras como os longas ficcionais As Horas Vulgares (2011) e Teobaldo Morto, Romeu Exilado (2015) e o longa documental Todos os Paulos do Mundo (2018), vinha esboçando aproximações com o universo queer em seus dois últimos curtas-metragens, Ano Passado Eu Morri (2017) e Os Mais Amados (2019). Tal inflexão ganha em robustez com o lançamento de Os Primeiros Soldados (2021), longa que estreou no ano passado no Festival Mannheim-Heidelberg, na Alemanha, e desde então vem tendo premiada presença em festivais pelo mundo. No Brasil, a obra conquistou, entre outros, o Prêmio Especial do Júri (para a atriz Renata Carvalho) no Festival do Rio e o Troféu Barroco de Melhor Filme da Mostra Olhos Livres, na Mostra de Tiradentes.

Os Primeiros Soldados se passa em Vitória, no Espírito Santo, no começo dos anos 1980, e acompanha a história de Suzano (Johnny Massaro), Rose (Renata Carvalho) e Humberto (Vitor Camilo), membros da comunidade LGBTQIA+ que vivenciam o início da epidemia de HIV/AIDS e buscam acolhimento mútuo conforme se deparam com um vírus sobre o qual nada sabem. A boa recepção em festivais e o lançamento comercial agendado para o dia 7 de julho fazem parte de um esforço de Rodrigo por fazer o trabalho se comunicar com públicos mais amplos, algo diferente do que ocorrera com os seus outros dois longas ficcionais.

“É um filme que foi feito consciente do seu desejo de se comunicar, de falar a mais pessoas, até porque aborda uma história que ainda é meio invisível no cinema brasileiro. Acho que às vezes a gente peca um pouco por promover gestos políticos sem se disponibilizar a conversar politicamente com mais pessoas. Não adianta fazer um filme para tentar tirar da invisibilidade uma partezinha dessa história da comunidade LGBTQIA+ sem tornar esse filme mais visível também”, defende o cineasta.

Durante o 11º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, mais um da extensa lista de festivais em que Os Primeiros Soldados foi exibido, o Cine Festivais conversou longamente com Rodrigo de Oliveira a respeito dos processos e dos gestos criativos tomados na realização do novo filme, também tendo em vista a carreira pregressa do cineasta.

Adriano Garrett: Em 2016, quando conversamos sobre o seu curta-metragem Eclipse Solar, você dizia que havia uma recorrência da ideia de legado em todos os seus filmes. Se em outras obras esse legado estava relacionado muitas vezes a núcleos familiares restritos, em Os Primeiros Soldados essa ideia se expande para um contexto mais amplo, evocando diferentes gerações da comunidade LGBTQIA+ no Brasil. Ele também é um filme que deseja se comunicar com públicos mais amplos e que vem ocupando espaços de destaque nos festivais por onde tem sido exibido. Então queria que você começasse falando sobre essa questão a partir da experiência em Os Primeiros Soldados.

Rodrigo de Oliveira: Eu tenho uma preocupação de vida muito forte com a noção de permanência. Não sei o quanto isso tem a ver com o fato de eu ser um homem gay, a quem não é dada como natural, por exemplo, a ideia da paternidade, ainda que ela seja uma coisa que me move, que eu quero viver um dia; é a maneira mais natural de se perpetuar, essa coisa narcisística da paternidade, da filiação, de continuar nesse que você “produz”. E aí de alguma forma isso sempre me moveu, sobretudo porque sou muito marcado pelas experiências e me coloco muito disponível para elas. Lembro muito do momento em que estava morando no Rio de Janeiro para estudar Cinema, quando comecei a escrever crítica, e ali eu me colocava em situações às vezes até um pouco arriscadas e perigosas para poder ter um acúmulo de experiências de vida, para poder ter histórias para contar, para poder me deixar marcar pelo mundo. Nesse sentido, quando chego em Os Primeiros Soldados eu me confronto com uma questão que penso ser o primeiro impulso para fazer o filme, que é uma percepção de que os meus filmes demoraram muito mais tempo para sair do armário do que eu. Ainda não tinha feito um filme abertamente queer, abertamente sobre essa comunidade. Eu já vinha ensaiando isso nos dois últimos curtas (Ano Passado Eu Morri e Os Mais Amados), mas isso chega com uma força muito grande n’Os Primeiros Soldados, e a questão do legado faz parte do impulso de realizar a história dessa maneira.

O filme é uma tentativa de evocar pessoas que eu não conheci, mas com as quais eu e toda nossa comunidade temos dívidas, pessoas que a gente talvez não honre ainda do jeito que elas precisam e merecem, que foram apagadas da história oficial. Quando se fala em HIV/AIDS, a primeira coisa que se pensa é em transmissão. Alguma coisa se transmite de um corpo para o outro levando esses corpos, em algum momento, a ficarem doentes. Eu acho que essa narrativa da “transmissão de algo que torna o teu corpo mais perecível” sufoca todas as outras formas de transmissão que a AIDS provoca. E aí, por exemplo, enquanto eu pensava em fazer o filme, nunca me passou pela cabeça que houvesse uma cena na qual o sexo aparecesse para demarcar: “olha, aqui foi o momento em que este personagem contraiu o vírus”. Isso nunca me interessou, porque eu acho que existe um histórico muito grande de culpabilização do sexo que é algo que precisamos superar. Por outro lado, existem inúmeras cenas de transmissão no filme. Transmissão de conhecimento, de legado, no fim das contas. Aquilo que o Suzano faz no meio do filme quando se dispõe a ir a uma boate lotada, naquele que vai ser o último dia da vida dele, com o objetivo de espalhar as imagens do corpo dele e dizer “olha, gente, isso está acontecendo, esse é o meu corpo e ele pode ser o de vocês se vocês não tomarem cuidado”… É a grande cena de transmissão do filme, e o que está se transmitindo ali é cuidado, é carinho, é legado.

Toda a narrativa do Muriel, que é o sobrinho do Suzano no filme, alguém a quem cabe a tarefa de manutenção e preservação do legado, literalmente, porque ele é a pessoa que vai ficar com as fitas, os cadernos, as histórias escritas, as cartas, para poder sempre se lembrar e espalhar a memória dessas pessoas que foram embora. Todas as cenas de mão se tocando que estão no filme. São muitas, e isso era muito consciente da nossa parte. Eu falava muito com os atores que as mãos eram tão importantes quanto os olhos. Porque é isso, é a mão que transmite coisas. O toque, a passagem de uma energia para outra, e isso tem muito no filme.

Então isso tudo era muito consciente, e acho que é um filme que casa essas obsessões que vêm de todos os outros filmes com uma forma que pra mim é bem inédita, e é inédita inclusive nesse lugar que você falou, do tipo de filme que é. É um filme que foi feito consciente do seu desejo de se comunicar, de falar a mais pessoas, até porque aborda uma história que ainda é meio invisível no cinema brasileiro. Acho que às vezes a gente peca um pouco por promover gestos políticos sem se disponibilizar a conversar politicamente com mais pessoas. Não adianta fazer um filme para tentar tirar da invisibilidade uma partezinha dessa história da comunidade LGBTQIA+ sem tornar esse filme mais visível também.

A maneira como tudo isso se conjuga em Os Primeiros Soldados eu acho muito… (pausa) É o famoso filme de maturidade, é onde eu acho que tudo isso que está presente nos outros filmes se resolve de maneira mais harmônica. Não acho nem que seja melhor ou pior que os outros, mas de fato consigo olhar pra esse filme e entender que algumas escolhas feitas ali só são possíveis porque quem o fez experimentou outras formas de contar e outras maneiras de se relacionar com as suas obsessões até chegar a esse momento.

Adriano: Ainda naquela entrevista de 2016 sobre Eclipse Solar, você falava: “meus filmes são mais solitários do que eu”. Nessa primeira fala aqui você comentou como na sua vivência como estudante você tinha essa intenção de se colocar disponível ao mundo, o que diz muito sobre essa porosidade entre vida e cinema que acompanha toda a sua obra. Você também falou de Os Primeiros Soldados como o filme em que você efetivamente saiu do armário, apesar de esboços existirem em Os Mais Amados e Ano Passado Eu Morri. Então queria que você dissesse se essa percepção sobre fazer “filmes solitários” mudou em Os Primeiros Soldados, já que ele definitivamente não é um filme solitário.

Rodrigo: Acho que toda minoria é sempre convocada a existir como sujeito político, às vezes à revelia das suas próprias vontades ou mesmo da sua consciência. Hoje em dia eu vejo jovens LGBTQIA+, em geral pretos, periféricos, com corpos muito afeminados… E eu olho para essas pessoas com uma inveja, sabe? Porque eu acho que tem ali coragens que eu mesmo não tive ao longo da vida. De me expor. Eu posso esconder a minha sexualidade se for necessário, por medo. E eu ainda tenho muito medo. O medo de sofrer violências homofóbicas é muito presente na minha vida. Ainda hoje eu não consigo dar a mão pro meu namorado no banco de trás de um Uber. E aí, quando eu me encontro não só com esse tema, mas com essa sensação comunitária que Os Primeiros Soldados tem, percebo como essa solidão era uma escolha, muito mais do que uma contingência.

Eu me lembro muito dessa entrevista que fizemos, que tinha esse mesmo título (“Meus filmes são mais solitários do que eu”), e essa é uma frase que ecoa muito na minha cabeça sempre, desde que você publicou. E o remédio para isso foi realmente me entender parte dessa comunidade. Um desejo que estava na origem de Os Primeiros Soldados era fazer um filme sobre essa comunidade com essa comunidade. Então o elenco vai ser todo LGBTQIA+, metade da equipe vai ser LGBTQIA+, e aí coisas que eram muito complexas e que me levavam para esse lugar do isolamento se desfazem muito naturalmente. Entre nós havia um senso de responsabilidade, como se a gente estivesse mesmo sendo convocado a contar uma história que ainda não tinha sido contada, a evocar esses ancestrais que a gente não conheceu, mas a quem devemos tanto. Porque entre nós não somos minoria; as nossas histórias são as mais importantes porque elas são nossas. Então o elenco é composto por pessoas diferentes – tem a experiência do homem branco gay, da mulher travesti, do homem preto gay, além de diferenças de classe e de localidades -, mas de alguma forma a gente fala meio que a mesma língua, e acho que é aí que se quebra essa ideia da solidão. Quando falava que os filmes pareciam mais solitários do que eu, eu já sentia um abraço da comunidade fazedora de filmes, mas o meu lugar sempre foi esse, da comunidade de onde eu venho (LGBTQIA+), que é a expressão da minha própria identidade. E esse reencontro eu devo todo a Os Primeiros Soldados.

Adriano: A gente está falando muito dessa sua trajetória individual e dos seus filmes, mas não podemos esquecer que de 2015, quando você lançou Teobaldo Morto, Romeu Exilado, até 2021/2022, com Os Primeiros Soldados, as discussões que circulam pelos festivais de cinema brasileiros se modificaram bastante, com a representatividade e os modos de representação de grupos contra hegemônicos passando a ocupar lugar proeminente. Quando a gente se falou pela primeira vez, na Mostra de Tiradentes de 2015, havia uma acusação de que as discussões ali presentes eram formalistas, desconectadas do mundo. Hoje em dia, vendo o debate de Os Primeiros Soldados na última Mostra Tiradentes SP, sinto que a acusação poderia ser outra, de conteudismo, no sentido de que o tema e as subjetividades permearam todas as intervenções do público. Claro que essa dicotomia formalismo x conteudismo é simplista, mas queria que você comentasse sobre como essa transformação recente do cinema brasileiro também integrou as nítidas mudanças na sua obra como diretor.

Rodrigo: Quando estive em São Paulo para a Mostra Tiradentes SP, no CineSesc, tive uma conversa com o [crítico de cinema] Raul Arthuso, que recentemente escreveu sobre a minha filmografia no contexto de uma retrospectiva organizada pelo MAM-RJ. O Raul observou que era a primeira vez em debates de filmes meus que as pessoas falavam muito sobre o tema, e isso é verdade. No debate de Tiradentes sobre Teobaldo Morto, Romeu Exilado ninguém estava falando sobre paternidade. No debate sobre Eclipse Solar ninguém estava perguntando sobre maternidade, amor de mãe. E de repente, em Os Primeiros Soldados, tudo o que se fala é o tema… Eu acho que isso parte de uma responsabilidade que todo mundo que faz cinema e lida com as ditas minorias sempre vai enfrentar, que é a questão do peso da representação. Os realizadores são mais diversos hoje do que eram há seis anos, mas ainda não são diversos o suficiente, e de alguma forma sempre recai sobre esses filmes a responsabilidade de dar conta do todo.

Pensando em Os Primeiros Soldados, as primeiras versões do roteiro tentavam ser muito panorâmicas, porque tinha a responsabilidade de ser o primeiro filme brasileiro que vai falar sobre esse momento, sobre essa geração, então o filme tentava dar conta de tantos aspectos daquela experiência que ele não conseguia respirar. Eu acho que a gente ainda não avançou tanto nesse papo de forma e conteúdo do jeito que seria esperado. Existe uma tradição brasileira que às vezes é muito radical, que está lá no Glauber Rocha, “não existe conteúdo revolucionário sem forma revolucionária”, e eu sinto que às vezes a gente se obriga a definir muito especificamente como uma coisa influencia a outra, e penso que existe um caminho que pode ser mais simples.

Em Os Primeiros Soldados havia muita consciência de que o tema estaria na frente e que de alguma maneira eu ainda tinha um controle de como as pessoas iriam falar sobre o tema, e isso estava na forma. Por exemplo, um desejo que estava presente desde o começo e que permanece ali na versão final é que o filme espelhasse na sua estrutura a maneira como aqueles corpos e aquelas pessoas atravessavam a crise da AIDS. Queria muito que o filme sentisse no seu próprio corpo os sintomas que os personagens estavam sentindo, queria muito que o espectador estivesse o tempo inteiro no mesmo lugar dos personagens, e nunca muito à frente. O filme de alguma forma propõe um certo pacto de ignorância com o espectador, do tipo “vocês sabem o que aconteceu na história do HIV/AIDS, vocês certamente já viram vários filmes sobre isso, mas suspendam esse conhecimento em nome da ignorância pela qual os personagens estão passando”.

Os filmes sobre HIV/AIDS são em geral sobre pessoas que morrem de AIDS, e mesmo sabendo que existia uma morte no filme, a ideia nunca foi que ela estivesse no final, isso sempre foi inviável. Eu queria tentar fazer um filme sobre pessoas que viviam com HIV/AIDS, que é uma coisa mais habitual recentemente, depois do coquetel, depois da medicação, depois do Indetectável = Intransmissível, mas a gente ainda não pensa muito sobre essas vidas que perdemos de fato. E tudo isso se dava tematizando a forma. A maneira como o filme joga com o tempo, o desaparecimento dos protagonistas por dez minutos ali no meio do filme, a existência desses registros em VHS que aparecem no filme, essa relação muito fluida com o tempo, que é um tempo bem específico da experiencia queer… Conversando com amigos que vivem com HIV, eles me contavam como o diagnóstico transforma a relação com o tempo, mesmo hoje em dia, quando a medicação te permite ter uma vida igual à de qualquer outra pessoa que não vive com o vírus; ainda assim você é forçado a lidar com a noção da morte, porque se você deixar de tomar aquele comprimido todo dia você ainda pode morrer daquilo. 11 mil pessoas ainda morrem de AIDS a cada ano no Brasil. Então, pegando todas essas coisas que eram tema, eu pensei: se isso tudo virar forma, quando as pessoas estiverem discutindo o tema do filme no debate elas vão estar falando na verdade da forma, sabe? E eu fico satisfeito com isso, pra mim é o bastante. Em algum momento vou discutir a autoralidade, a estética, vai ter sempre alguém que depois de um debate vai vir falar sobre a montagem ou sobre a fotografia, e tá tudo bem, porque eu acho que quando as pessoas falam sobre o filme elas só falam dessa maneira porque ele usou as armas da ficção, da encenação, para poder falar desse tema.

Adriano: Falando em armas de ficção, ainda naquela entrevista de 2016 você comentou que: “o primeiro passo no processo de escritura do roteiro é sempre o de investigar os fatos: é fundamental, para mim, dominar completamente a trama desses personagens, os detalhes de tudo o que aconteceu e como aconteceu, para só então conseguir escolher o que não mostrar, que informações negar”. E aí é óbvio que há uma diferença grande entre quando os fatos são concretos, tendo impactado uma cidade e vidas que existiram ali, e quando, como em outros filmes, havia um universo ficcional “puro” que não permite essa pesquisa mais concreta em fatos, documentos. Então gostaria que você comparasse esses processos de roteiro.

Rodrigo: Eu estava falando um pouco antes sobre como o processo de escrita de Os Primeiros Soldados começou muito panorâmico, tentando dar conta de todos os aspectos, e acho que isso é um pouco devedor do fato de que, apesar de serem personagens ficcionais, eles eram muito baseados numa pesquisa que envolveu não só revirar arquivos, mas conversar com pessoas, recolher histórias, e isso era algo que eu nunca tinha feito antes. Apesar de esses personagens não terem existido na vida real, eles de alguma forma fazem menção a coisas que certamente aconteceram, então havia um compromisso com o real que era muito diferente para mim. Penso aí em coisas muito pragmáticas, do tipo: qual é a doença que o Suzano tem? A gente sabe que a AIDS permite que doenças oportunistas te atinjam, então quais eram as doenças do Suzano? E aí também valia essa coisa do que não mostrar; para mim era importante saber, mas ao mesmo tempo esse conhecimento era usado para gerar forma, para gerar encenação. Na prática, o Suzano tem neurotoxoplasmose, que é o que faz com que ele tenha esses lapsos de memória e essas ilusões. Ele vê o namorado na praia, às vezes acorda sem consciência de quem ele é, e isso tem uma origem médica/biológica muito específica que não precisa estar no filme, desde que o filme encare esse sintoma como algo a ser encenado.

Isso valeu para um monte de coisas no filme. Ao mesmo tempo, estávamos lidando com uma ideia de realidade que a gente estava tentando não digo nem reconstruir, mas de fato imaginar, porque durante a pesquisa do filme em Vitória foi muito difícil encontrar sobreviventes. Eles existem, mas foi muito difícil encontrar. Algumas das referências mais importantes vieram de médicos que estavam na linha de frente lá em 1982, 1983, o que traz uma outra perspectiva, porque eles estavam vivendo um pouco na periferia desses sentimentos todos. Então é uma realidade que a gente de fato precisou imaginar bastante sobre ela, mas ao mesmo tempo ela é muito forte. E para isso era preciso fazer com que de alguma forma eles também experimentassem a realidade para além do que estava no roteiro, principalmente o elenco.

Em cada filme eu tenho um processo específico de preparação de elenco, e em Os Primeiros Soldados trabalhamos com improvisações. Íamos para a sala de ensaio, passávamos o texto do roteiro, mas quando a gente ia trabalhar de fato a gente estava sempre lidando com coisas que não estavam lá. Com o núcleo dos personagens do Johnny Massaro, da Renata Carvalho e do Vitor Camilo, que formam uma comunidade em um sítio, a gente ia para a sala de ensaio e imaginava toda a vida deles ali dentro daquele sítio, tudo que não estava no filme e tudo que a gente sabia que jamais iria entrar no filme. Não era uma improvisação no sentido de “vamos criar coisas aqui que talvez possam virar uma fala”. Eventualmente virou, mas o objetivo não era esse, e sim preenchê-los de vida mesmo, para que quando a gente fosse filmar eles tivessem muita consciência do que tinha acontecido no dia anterior, do que iria acontecer no dia seguinte.

A gente estabeleceu um código interno imaginando que esses três personagens sempre tinham um dia bom e um dia ruim. O dia bom era quando eles conseguiam acordar, viver plenamente o dia e ir dormir sem sentir nenhum sintoma, sem passar mal, sem ficar triste. E o dia ruim era aquele em que estava tudo errado, eles se sentiam mal. Então quando a gente ia filmar as cenas de VHS e falávamos que hoje seria um dia bom, eles sabiam exatamente em que lugar se colocar. Isso é completamente nascido dessa ideia de que eles de fato habitaram a vida daqueles personagens para coisas que estão muito além do que a gente vê no filme. Então tem certas escolhas que quando eu revejo o filme, falo: “eu sei exatamente de onde isso vem, não é importante que ninguém que esteja vendo o filme saiba de onde isso vem, mas só existe com essa potência porque a Renata sabe exatamente porque ela está com aquele figurino naquela cena; porque o Johnny sabe exatamente porque ele olhou pra esse lado e não pro outro; por que o Vitor sabe exatamente porque entrou naquele momento”. Eles sabem tudo isso porque viveram aquilo, e aí a decisão do que entra e do que não entra fica muito mais fácil, porque na verdade tudo entra. A história de Os Primeiros Soldados é uma história em que todo esse acúmulo que eu acho que o roteirista precisa ter, tudo o que se precisa saber sobre a história para poder decidir depois o que tirar, foi totalmente compartilhado com os atores, o que é algo que eu nunca tinha feito antes. Então todos os atores sabiam tudo o que eles tinham vivido e sabiam que a gente só ia mostrar um pedacinho dessa vida, mas que eles precisavam estar plenos da vida inteira desses personagens.

Rose (Renata Carvalho) em cena de Os Primeiros Soldados

Adriano: Pensando ainda sobre o que entra e o que não entra no filme, queria falar sobre o seu trabalho como montador. Em outra entrevista você me disse ser “um roteirista extremamente narrativo e clássico, mas um montador experimental e interventor”, e que “nem sempre essas personalidades antagônicas se entendem”. Queria saber o quanto que isso ainda é verdade no seu trabalho, como isso aparece em Os Primeiros Soldados e como esse trabalho de montagem também tem a ver com a dicotomia mostrar/ocultar.

Rodrigo: Eu acho que hoje em dia os gestos de escrever, dirigir e montar viraram meio que o mesmo gesto. Eu devo muito isso ao processo de Todos os Paulos do Mundo, que foi o primeiro longa que eu montei. Devo muito isso ao Gustavo Ribeiro, que dividiu a direção e também montou o filme comigo. Mas devo sobretudo ao próprio Paulo José. Aquele filme de fato me mudou muito. Eu acho que sou um diretor de atores melhor hoje porque passei pelo Todos os Paulos do Mundo, mas especificamente na montagem… A sensação de artista é algo que a gente às vezes tem um pouco de vergonha, sabe? Tenho muitos amigos das artes plásticas para quem esses gestos são muito naturais, e mesmo para alguns cineastas com quem eu aprendi muito, que eu admiro e que me formaram, como a Paula Gaitán e o Luiz Pretti, para quem esses gestos sempre foram muito naturais. Eles sempre estavam com uma câmera na mão, por causa disso produziam um olhar, e aí depois tinham ali o computador, jogavam lá, montavam, e de repente os filmes saíam de um gesto muito natural; e esse gesto não foi natural pra mim, porque a minha história é outra. 15 anos atrás eu não imaginava que seria diretor. Eu achava que estaria entrevistando diretores hoje em dia, era o sonho da minha vida. Então eu tive que aprender a aceitar que esse gesto artístico era algo que eu podia aprender também.

Em Os Primeiros Soldados eu acho que o roteirista e o montador estão falando a mesma língua, embora o processo de montagem desse filme tenha sido muito difícil por ter acontecido na pandemia. A gente filmou em setembro e outubro de 2019, cheguei a mexer em algumas coisas no fim de 2019, mas comecei a montar de fato duas semanas antes de ser decretada a pandemia. Aí veio essa coisa de levar a ilha de edição da produtora para casa e mergulhar numa solidão não programada e não desejada, porque a ideia não era essa. Uma coisa que eu faço sempre em todos os filmes, inclusive nesses filmes malucos e complicados que eu fazia antes, é a sessão teste. Juntar pessoas numa sala e ouvir impressões, mostrar os cortes de 2h40, e isso não dava pra fazer na pandemia, e por link não é a mesma coisa. Então o filme ficou muito meu. Eu montava sozinho e mostrava pro Vitor Graize e pra Maria Grijó, que são os produtores. Ficamos só nós três nesse circuito um ano inteiro. A gente passou por um laboratório de montagem no meio, que também deu um alívio, um respiro, mas o processo de montagem foi todo muito solitário. E nesse confronto com essa solidão não desejada, durante o processo de montagem, talvez tenha sido o momento em que me percebi realmente um artista mais maduro. Porque as decisões eram complicadas em um nível técnico, mas elas não eram exatamente difíceis. Existe uma versão do filme com 2h40 que eu acho muito pior do que o filme que existe hoje em dia. Personagens inteiros caíram. Havia ainda um pouco desse desejo panorâmico quando fomos filmar, e a decisão do que cair na montagem foi ficando muito fácil, porque o material falava muito alto. Tive essa descoberta de que, apesar da solidão, eu estava conversando com o filme o tempo inteiro. Então… (pausa) É isso, os filmes não são mais solitários do que eu, a gente se acompanha agora. E acho que isso é fruto direto de ter crescido.

Adriano: Ao longo do processo do filme você me mandou o argumento de Os Primeiros Soldados, e ontem eu voltei a esse material. Queria pensar na abordagem do militarismo, que no argumento estava mais acentuada, pensando o momento de abertura democrática no final da Ditadura Civil-Militar. Me parece que essa questão macropolítica foi um pouco deixada de lado na versão final, com a questão militar se mantendo mais associada à cinefilia e ao imaginário. Queria que você comentasse sobre isso, também tendo em vista que ao longo do processo do filme houve uma nova emergência do militarismo a partir do governo Bolsonaro.

Rodrigo: Eu tenho uma obsessão, na verdade uma tentativa de filiação aos militantes contra a Ditadura que não me é ainda muito bem resolvida. Não é a primeira vez que eu tento abordar esse assunto, e por ser algo que ainda está muito imaturo em mim, é sempre a primeira coisa que cai ou é sempre a coisa que fica meio pendurada. O Teobaldo Morto, Romeu Exilado tem ali uma certa menção a isso, mas tinha muito mais em versões anteriores, e depois foi caindo. Um dos personagens que caiu em Os Primeiros Soldados falava explicitamente sobre o exílio. Era um personagem que estava voltando com a abertura política, e em algum momento isso também não fez mais sentido… Então isso é algo que eu ainda preciso amadurecer em mim. porque sinto que quero muito falar disso, mas ainda não aprendi como. Em todo filme eu tento um pouquinho e acabo desistindo, mas eu sinto que no meu futuro tem algo por aí. Tem imagens dessa militância, da guerrilha, dos desaparecidos…. Eu só faço filmes sobre gente que desaparece. Em todos os meus filmes alguém desaparece, e são filmes sobre abandono, sobre quem vai embora e sobre como vivem aqueles que ficam pra trás. Enfim, um parêntese grande para falar dessas minhas falências. (risos)

Agora, sobre o militarismo em si, acho que a chave que você propôs é a que vale: é uma relação muito mais com a imagem do soldado do que com o espírito militarista. No cinema, a imagem do soldado é a imagem mais absoluta da coragem. Mesmo os cowboys em alguns momentos titubeavam; os soldados nunca, pelo menos no cinema moderno. Então é uma tentativa de imaginar personagens a quem a história oficial atribui uma fraqueza fundamental. Para a história oficial, ser viado é ser mais fraco, é ser mais covarde, é se esconder nas sombras, é viver na periferia do mundo, é ser forçado a ter vergonha de quem se é… Dentro da comunidade LGBTQIA+, a gente tem esse hábito de se reapropriar de coisas que nos eram imputadas como ofensa; a gente reclama essas palavras de volta como maneiras de nos identificar com orgulho. Em Ano Passado Eu Morri eu me apresento dizendo: “sou viado e este é um filme de viado”. Não era um filme gay, era um filme de viado, e isso tem uma diferença. Outro exemplo: a Renata Carvalho se identifica e se apresenta como uma atriz travesti, e nem toda mulher trans se apresenta desse jeito. O termo travesti era uma ofensa, e elas retomam isso como identidade política e como ser no mundo. Então o título em Os Primeiros Soldados tinha uma vontade de fazer algo parecido. Do tipo: “então é essa a imagem da coragem que vocês elogiam tanto? Pois então, ela pode abrigar também esses outros corpos”.

No momento em que o título apareceu eu não sabia que as coisas no Brasil tomariam esse rumo político. No meio do processo eu pensei em mudar o título porque não queria me associar de forma nenhuma a isso tudo que está acontecendo, mas ao mesmo tempo fui me convencendo de que esse gesto inicial ainda valia, sobretudo nesse momento pré-eleitoral em que a gente está agora, com essa nojeira toda que já não tem vergonha de mostrar a cara e com tudo que a gente já descobriu – que a gente sempre soube, óbvio – sobre a maneira como o Exército Brasileiro se relaciona com o poder, o dinheiro e a corrupção.

Viver com HIV no Brasil ainda é uma batalha. O que a Susan Sontag fala nos anos 1980 sobre militarização da medicina ainda sobrevive, porque o vírus segue cruel. O meu sonho era que Os Primeiros Soldados nascesse datado, que fosse o retrato de uma época com a qual a gente não teria tanta relação assim, porque as coisas já teriam se transformado. Infelizmente, ele ainda é um filme muito atual, e penso que isso também vale para a questão do elogio da coragem LGBTQIA+.

Adriano: Queria falar sobre o papel do Adrian, o namorado estrangeiro do Suzano. No argumento que li ele teria uma presença mais marcante no filme, e fiquei pensando em como esse enredo é atual se pensarmos na questão da vacina, porque na pandemia de Covid-19 também há essa dependência do exterior. Adrian é um lampejo de esperança ao fornecer medicamentos para a comunidade, mas quando ele morre essa possibilidade é apartada. E uma coisa que acho bonita em Os Primeiros Soldados é o modo como ele lida com as noções de sucesso e fracasso. Já vi alguns filmes sobre AIDS que quantificam a ideia de sucesso, do tipo “esse cara salvou não sei quantas pessoas”, e o que há no seu filme é um grupo muito pequeno de pessoas, mas isso não impede que haja ali a construção de um legado imensurável. Então queria que você comentasse um pouco sobre tudo isso.

Rodrigo: O Adrian é um personagem que, à medida que eu ia reescrevendo o roteiro, me parecia cada vez mais fundamental e mais fugidio. Em algum momento ele sobrevivia e aparecia no filme anos depois; já na versão final ele é um grande amor, a garantia de sobrevida do Suzano e dessa comunidade que ele forma, e tem uma importância fundamental para a mecânica do filme. No entanto, ele está completamente ausente. O Adrian fala duas frases que são absolutamente banais, por telefone. É um personagem que não tem corpo. A ideia ali era também ecoar aquilo que eu estava falando sobre essa relação entre forma e conteúdo. Como transmitir o que a AIDS fazia com os amores? Porque ela inviabilizava os amores. A ausência física desse personagem no filme me bate sempre em um lugar estranho, porque é isso, é mais uma das coisas que se perdeu. O Suzano perde a possibilidade de conviver com seu amor por causa da doença, e de alguma forma o espectador perde a possibilidade de conhecê-lo por causa disso. O Adrian vai ser sempre uma menção, uma coisa que talvez seja verdade, talvez seja mentira. Um grande amor que é fundamental para o que o filme é e que, no entanto, é absolutamente ausente e em alguma medida até meio irrelevante, porque a vida tornou essa existência compartilhada impossível.

Sobre a ideia do sucesso e do fracasso… Eu até estava falando isso com o Johnny Massaro esses dias: o aspecto do Suzano que eu mais admiro e que é mais diferente de mim é o pragmatismo. A habilidade de estar vivendo o seu pior momento e ainda assim ser completamente lúcido e consequente nas suas ações. Quando eu revejo o filme hoje, a coisa que mais me emociona é a carta que ele escreve pra irmã. É a última chance de se despedir, e o que ele faz é dizer que existe um sítio, que esse sítio é do Muriel, que não é para ser vendido. Nesse último sopro de vida o cara está pensando na pragmática dos negócios! Aí eu fico me perguntando sobre a ideia que Suzano tem do que é o sucesso e o fracasso. Porque no fundo o desejo do filme é o mesmo desejo dos personagens: a busca por conhecimento.

A última coisa que o Suzano fala no filme é: “nós vamos morrer sabendo o máximo que podíamos”, e eu acho que talvez demore um pouco, mas o filme de alguma forma percebe que isso é o bastante, que essa é a vitória. Morrer consciente das suas potências e das suas limitações, mas de alguma forma ter vivido uma vida plena. E a vida plena pra esses personagens tem a ver com saber o que está acontecendo com eles, e a história do espectador desse filme também é um pouco a mesma. O importante era falar, era saber, era existir. Tanto que esse filme tem uma primeira parte inteira na qual os personagens estão vivendo os seus sonhos, seus anseios. Essa primeira parte do filme seria dispensável tecnicamente, e no entanto eu acho que o coração do filme tá todo ali. Apresentar esses personagens em sua inteireza, não condicionados por uma doença, mas existindo com ela e de alguma forma a abraçando de um modo como talvez só hoje se consiga fazer, de maneira mais completa.

Suzano (Johnny Massaro) e Muriel (Alex Bonini) em cena de Os Primeiros Soldados

Adriano: Você estava falando sobre o pragmatismo do Suzano e essa coisa concreta da busca pelo conhecimento. Isso ocorre muito localmente, dentro de uma comunidade, à revelia desse auxílio estrangeiro. E pensando em um campo mais macro, acho que isso se relaciona com a questão das imagens que nos chegam do exterior e das imagens que nós produzimos ou deixamos de produzir…

Rodrigo: A gente tinha muita consciência sobre essa história dos filmes sobre o HIV/AIDS, e ao mesmo tempo a gente ia ter que lidar com imagens que são muito absolutas. É muito difícil ser sutil ou se esconder de um corpo fragilizado marcado por sarcoma de Kaposi. Essa era uma imagem que a gente sabia que estaria no filme, que de alguma forma é reconhecível, mas que em diversas sessões havia gente na plateia que não associava aquelas marcas à AIDS, e acho que isso parte um pouco do apagamento dessa história. No primeiro momento em que a AIDS vem pro centro da narrativa de Os Primeiros Soldados, quando são mostrados os sarcomas, tem quem não reconheça isso como revelação, porque a história não fez com que essas imagens sobrevivessem na nossa memória.

Então a gente ia ter que lidar com a questão de como filmar esse corpo de maneira diferente do que se filmou antes. Tem um programa televisivo do Goulart de Andrade que é muito complexo, mas que é um documento histórico importantíssimo: a visita dele, em 1987, a uma ala de pacientes de AIDS, todos muito fragilizados, com sarcomas… É muito difícil olhar para aquelas imagens, sobretudo porque tem um sensacionalismo natural do registro jornalístico, mas ao mesmo tempo é um dos documentos mais importantes da história do HIV/AIDS no Brasil.

O cinema é reprodução; a gente trabalha tecnicamente para reproduzir coisas que estão às vezes na ordem do espiritual, então decidir mostrar um corpo com sarcoma significa fazer vários testes de maquiagem tentando reproduzir fielmente marcas que para as pessoas que as tiveram na vida significavam coisas muito terríveis. A gente está de alguma forma mexendo com esses ancestrais, mexendo com esses sentimentos, então isso demanda muita responsabilidade. Por isso essas imagens todas que a gente evocava precisavam ser mais responsáveis, pelo menos em comparação a algumas que outros filmes fizeram.

Adriano: Você colocou como o sarcoma de Kaposi se tornou um signo não reconhecido por muitos espectadores do filme, e acho que por outro lado há uma série de clichês cinematográficos associados à AIDS e às pessoas enfermas de um modo geral. Um dos que eu não suporto mais ver é a cuspida de sangue. Havia outros clichês que você evitou? Como foi também lidar com o signo do sangue, muito associado à AIDS e também a essa ideia de transmissão?

Rodrigo: Em relação aos sintomas que os três personagens vivenciavam, tinha uma pesquisa muito grande para entender como encená-los. Dois desses três protagonistas têm cenas de apresentação que envolvem sangramento. O Suzano é apresentado sangrando na praia e a Rose é apresentada sangrando depois de uma altercação no ônibus, e nas duas ocasiões, imediatamente após a imagem do sangue, o gesto é o de lavar ou tapar. De alguma forma, reconhecer que isso é um signo relevante e, ao mesmo tempo, tentar superá-lo imediatamente.

Adriano: E quando aparece esse clichê da cuspida de sangue normalmente é para anunciar o fim, o que o seu filme não faz.

Rodrigo: É porque a própria ideia de fim está muito subvertida em Os Primeiros Soldados. Por exemplo, eu não sei dizer qual é a identidade do Suzano quando ele reaparece no filme. Eu já ouvi que é uma imagem de fantasmagoria, que é uma imagem de ressuscitação, que na verdade tudo é um presente contínuo e que o que está deslocado nesse contexto todo é a morte, a vida dele continua… Eu ainda não tenho muita certeza sobre o que que é, mas o fato é que o filme não acaba, e acho que isso tem muito a ver com o assunto do filme, com o desejo de realizá-lo, já que existem muitas outras narrativas sobre HIV/AIDS que ainda precisam ser contadas. Uma das coisas que eu espero que esse filme faça é despertar em outras pessoas o desejo de contar essas outras histórias que ainda são muito incipientes. E nesse sentido acho que o filme não podia nunca ter fim.

Outra parte sobre a qual não tenho uma opinião formada é o final. É esperançoso? É melancólico? Certamente tem uma coisa de continuidade… Fato é que o filme termina “pra cima”, em termos muito genéricos, e essa era uma outra questão: será que a gente se permite esse tipo de coisa? Isso era uma coisa que a gente conversava muito quando estava fazendo o filme: é importante que ele tenha alegrias. A gente adora quando as pessoas riem das piadas, e isso era muito consciente. É importante que as pessoas riam, que elas percebam que essas vidas eram vividas plenamente e que não eram condicionadas totalmente pela doença.

Essa coisa que você falou de cuspir sangue e desses clichês todos, certamente versões anteriores do filme passaram por isso. Em algum momento no final há uma menção a uma ida do Humberto para o hospital, e a gente pensou em efetivamente fazer cenas com ele hospitalizado, mas tudo isso começou a me parecer desinteressante, ao mesmo tempo que outras decisões foram ficando muito mais fáceis. Eu não queria, por exemplo, que houvesse nenhum contraponto heterossexual no filme. Boa parte das histórias dos filmes sobre HIV/AIDS envolvem pacientes gays e travestis morrendo cuidados por médicos heterossexuais, e em Os Primeiros Soldados nem o médico é hetero, até ele é da comunidade, até ele entende.

Conversei muito com meu editor de som sobre a cena de apresentação da Rose. Ela está claramente sendo atacada dentro de um ônibus, mas a gente sempre só ouve a voz dela. As coisas que certamente estão gritando contra ela eu nunca quis ouvir, nunca quis ter a voz desse “outro” agressor, desse “outro” homofóbico dentro do filme. A gente sabe que ela está sendo violentada, mas só vamos ouvir ela. Porque é isso, a gente começa o filme com o Suzano de soldado, mas aquele é o momento da Rose soldada, aquela é a batalha dela. E aí me interessa só a versão dela, que pra mim é a versão das vencedoras.

Adriano: Queria falar também sobre a questão da transformação do corpo. A mudança física, pelas lentes da grande indústria, pode render notícias em revistas de celebridade, gerar justificativas para premiações, etc. Há toda uma história de uma certa fetichização desse tema. Tendo isso em mente, como você e toda a equipe pensaram em lidar eticamente com essa questão sem adentrar a lógica da espetacularização.

Rodrigo: Apesar de ser um filme incrível, um problema que o Touro Indomável e o Jake La Motta interpretado pelo Robert De Niro criam é acreditar que a transformação do corpo transforma o método de atuação ou tem valor por si só. No cinema americano isso é um absurdo, tem também essa coisa da maquiagem…

Adriano: Que rende comentários do tipo “tá igualzinho!”

Rodrigo: Exato! Essa coisa de se perder por trás do personagem, não conseguir reconhecer que é o ator tal ali por trás de tanta camada de maquiagem… Mas aí quando a gente está lidando com corpos enfermos isso é mais delicado. N’Os Primeiros Soldados, o Johnny Massaro e a Renata Carvalho passaram por esse processo, a Renata um pouco menos, por causa do estágio da doença em cada personagem. E nos dois casos eles estavam interessados em entender o que essas transformações fariam com o próprio estar deles no set e na vida. O Johnny fez coisas muito radicais. Como ele tinha uma transformação muito evidente, a gente filmou duas semanas com ele, a primeira parte do filme, depois a gente continuou filmando por mais duas semanas e ele se retirou para poder emagrecer 11 quilos em duas semanas, com o objetivo de reaparecer na segunda parte do filme já debilitado. É um processo super delicado, então ele estava acompanhado de uma equipe médica e todo mundo no set estava muito zeloso do bem estar dele. Mas aí quando eu revejo o filme e penso na relação dos atores e desses corpos com o filme, eu me lembro sempre dos momentos anteriores à gente rodar, no processo que cada um tinha para se concentrar e para estar no personagem. Com o Vitor Camilo, que faz o Humberto, a conversa era muito assim: “o que o Humberto passa é muito parecido com a sua vida, não tenta criar uma ideia do que o ator deve ser para só então poder interpretar. Pode usar a sua experiência, esse corpo do personagem é o seu também”. Com a Renata era uma coisa de entender a complexidade da Rose. Eu lembro de a gente estar filmando a cena do camarim e a Renata vir assistir a um plano no monitor e falar: “nossa, é um momento tão doce. A gente tinha acabado de filmar a cena do ônibus, que é super agressiva e violenta, e olha o tanto que essa mulher se permite”. Toda vez que a gente ia rodar ela tentava se lembrar de onde o corpo da Rose precisava estar naquele momento. E o Johnny, apesar de estar nesse processo de emagrecimento, com uma dieta pesada, antes de cada plano ele ia lá e colocava uma musiquinha pra poder se conectar com a cena. E em nenhum momento eles precisaram ser aquelas pessoas o tempo inteiro.

Eu já trabalhei com atores com esse método mais americanizado, mais tradicional, e acho que isso tem muito a ver com aquilo que a gente estava falando antes, sobre a gente estar muito imbuído desse espírito comunitário. Existem diferenças radicais entre esses atores e esses personagens, mas no fim do dia a Renata sair da Rose e voltar pra Renata não era um exercício muito trabalhoso, porque esses corpos já estavam se conversando há muito tempo. O corpo emagrecido do Johnny e o corpo saudável dele no começo do filme eram meio que o mesmo gesto. Pra ele eu tenho certeza que não tem diferença nenhuma emagrecer 11 quilos ou escolher a música certa pra ouvir antes do plano X, onde ele precisa ter tal emoção.

Adriano: É uma ferramenta?

Rodrigo: É uma ferramenta como outra qualquer, e acho que assim que devia ser. Sem essa glamourização e essa fetichização do esforço. Quando o Johnny fala sobre o emagrecimento ele só conta as histórias engraçadas, só os perrengues que ele passou. Ele emagreceu, engordou de novo, fez outros personagens de lá pra cá, e o que importa é que em algum momento ele precisou dessa ferramenta, soube utilizá-la, a gente soube protegê-lo e isso está no filme do jeito mais digno possível.

Adriano: Pensando nessa experiência dos atores e nessa transformação, eu também queria saber sobre a utilização do VHS. Historicamente essas mídias não-hegemônicas foram muito utilizadas por grupos contra hegemônicos. A gente tem vários exemplos de produções realizadas por e sobre mulheres, pessoas LGBTQIA+, pessoas negras, indígenas, de diferentes maneiras se aproveitando de suportes que não são os habituais da grande indústria naquele momento. Queria saber como que essa história também participou da sua vontade de trazer o VHS para o cerne da narrativa em Os Primeiros Soldados. Além disso, queria pensar como a mudança de registro impacta a encenação, tendo em vista não só a mudança de equipamentos, mas também as diferentes visibilidades e texturas entre as imagens que estão no filme.

Rodrigo: Historicamente, quando o vídeo aparece, foi muito imediata a compreensão de que ele podia ser uma arma política. Lá em Vitória, por exemplo, pouco tempo depois da época em que se passa Os Primeiros Soldados, surge um grupo chamado Balão Mágico, que hoje a gente entenderia como um coletivo queer ativista, mas que na época era só um grupo de vídeo, de intervenção. Isso não está no filme, mas na minha cabeça o Humberto é um dos fundadores desse grupo. O Balão Mágico fazia intervenções de vídeo, filmava performances e protestos. Ele nasceu numa cabine da biblioteca da Universidade Federal do Espírito Santo, primeiro reproduzindo uma rádio pirata e depois, quando chegam as câmeras de vídeo, esse grupo começa a usar isso imediatamente para se posicionar como corpo no mundo. Como corpo registrável, como corpo que existe como imagem.

E bem, a história toda do ativismo contra a AIDS é toda muito marcada pelo vídeo. O ACT UP Nova York tem um acervo imenso de VHSs de todas as manifestações, das intervenções que eles faziam, o ACT UP de Paris a mesma coisa. Um cara que foi muito importante no processo de Os Primeiros Soldados é o Hervé Guibert, um escritor francês que escreveu Para o Amigo que Não Me Salvou a Vida. Ele fez um filme pra televisão francesa em 1992, pouco antes de morrer, no qual ele se filma nos estágios finais do tratamento. Quando o Suzano está sendo massageado pela Rose e pelo Humberto, é uma citação direta desse filme, e isso tudo enforma essa sensação de que os próximos passos da luta contra a AIDS já estavam plantados naquele momento, porque não tinham como não estar. Tudo o que começa a acontecer oficialmente de 1985 pra frente (as casas de acolhimento, o contrabando de remédios, os vídeos produzidos), a gente tem certeza que já acontecia antes, e o filme é um pouco a imaginação disso.

Sobre a encenação, a gente não filmou com uma câmera VHS, e sim com uma câmera digital dos primórdios, uma HVX-200. E isso é muito louco porque eu me lembro muito de na faculdade a gente conseguir essa câmera uma vez para fazer um curta e ela era assim, a revolução das revoluções. E hoje em dia a gente a escolheu porque era a pior imagem digital que a gente conseguia, mas ainda assim manipulável, pra gente poder mexer depois.

Em tese, as câmeras digitais deviam ter existido para baratear a produção e para serem equipamentos mais leves, mas as câmeras digitais de hoje em dia são tão ou mais pesadas que as câmeras 35mm, então a sensação que a gente tinha 10 anos atrás de filmar com digital já não existe mais. Tem uma imponência quando você coloca uma ARRI no set, e o que a gente fazia nas diárias de VHS era se livrar disso tudo. A equipe inteira dava um passo atrás. Tem alguns planos que são de câmera fixa porque os três personagens estão em cena, mas os planos em que o Humberto está filmando era o ator quem estava operando a câmera, aí os atores estavam muito livres para de fato jogarem entre si. E isso se tornou naturalmente um registro diferente, porque cria-se essa intimidade e uma interlocução com a própria câmera. Nessas cenas eles estão o tempo inteiro muito conscientes de que estão sendo observados, e isso muda muito a maneira como eles se colocam em cena. E aí não estou dizendo nem os atores, mas os próprios personagens. São personagens que têm consciência de que naquele momento eles são sujeitos e historiadores de si mesmos, e eles querem se mostrar no seu melhor, mas nem sempre  conseguem, porque tem dias que são ruins e eles têm que se mostrar daquele jeito mesmo. Então o VHS abre uma liberdade pros atores que eu acho que é um dos grandes valores do filme.

Adriano: Naquele primeiro momento do Ano Novo eu acho que há um grande encantamento com a imagem em VHS, com o autorretrato da comunidade…

Rodrigo: Sim! O tema do primeiro, do inédito, é muito recorrente no filme. E quando eu vejo aqueles VHSs do Ano Novo, penso muito nisso. Esses talvez sejam os primeiros corpos LGBTQIA+ filmados naquela cidade, naquele contexto. E naquele momento do Ano Novo a gente tem uma luz muito forte ali, que é pra ser intrusiva mesmo. A ideia daquele momento era dizer: “o foco agora são vocês, tem uma luz sobre vocês, existam no seu melhor”. E eu acho aquilo muito poderoso.

Adriano: Ainda nesse tema, a sensação que eu tenho é que a coisa do download, dessa cinefilia muito digital dos dias de hoje – ao contrário talvez do momento em que você estava na faculdade, descobrindo o eMule e coisas do tipo – formou pessoas que cada vez mais têm um desejo por uma imagem muito limpa. Então é o 4K, é o 1080p, e me parece que isso provoca uma transformação na própria relação com a imagem, de tudo estar ali sempre restaurado, com a assinatura da Criterion Collection. E talvez isso produza uma relação cada vez mais chapada com as imagens, um entendimento de que a única imagem possível é uma imagem muito nítida. Isso pode causar uma dimensão que é justamente o contrário disso que a gente estava falando, desse encantamento com a imagem. Com o 4K e o 8K, cada vez mais todas as informações estão em tela, e o que o vídeo e a película fazem é justamente suprimir informações. Então queria que você comentasse um pouco sobre isso.

Rodrigo: O VHS faz isso com certeza, mas eu acho que a câmera “normal” também pode tomar partido dessa ideia de ir um pouco contra essa visibilidade total, essa necessidade de tudo ver. Eu tenho notado recentemente uma outra tendência que é oposta. Mesmo com essas câmeras com uma super qualidade, os filmes estão cada vez mais escuros e mais feios. É difícil ver um episódio de Game of Thrones sem se perguntar: “gente, mas não pensaram em acender mais uma luz? Como alguém deixou isso passar?” Esses filmes da Marvel eu realmente não assisto, mas de vez em quando aparecem umas imagens… Um todo visível onde na verdade nada está sendo mostrado. É o 4K para nada. É o 4K que podia ser um 460p sem nenhum prejuízo do que se está mostrando ali. E nesse sentido eu acho que a gente pode, mesmo para além do registro do VHS, jogar contra esse esquema.

No caso de Os Primeiros Soldados eu penso muito nas fusões. Eu acho que virei montador também para poder fazer as fusões sem os montadores ficarem me perguntando o motivo, porque eu adoro. É uma maneira de fazer imagens dissonantes conversarem entre si, e esse filme tem muito disso, porque a primeira parte toda dele são histórias paralelas que vão acontecendo e vão sendo agrupadas por afinidades que não ficam claras no momento em que aparecem. Essa é uma maneira que o filme tem de equilibrar essas dissonâncias, e isso eu acho que joga um pouco contra essa ideia da visibilidade absoluta, do todo cristalino. Acho que é preciso estar muito engajado no filme, porque tem muita coisa meio cifrada que só se revela com o acúmulo das coisas. Então eu prefiro a ideia do acúmulo em relação à ideia da visibilidade completa. Você aprende pelo acúmulo das imagens, e por isso as fusões são todas muito importantes pra mim. É de fato tentar criar essa mágica impossível de fazer duas imagens diferentes coexistirem num mesmo espaço.

Adriano: A gente está falando muito de imagem, mas eu fico me perguntando como que o som chega para você durante o processo e como ele conversa com tudo isso. Porque essa coisa da coexistência está na natureza do som, né? Então eu queria saber como que o som te chega ao longo do processo. Quando você começa a escrever já tem uma ideia clara dos sons?

Rodrigo: Os meus roteiros têm indicações muito precisas de como o som precisa se comportar, porque eu acho o som um elemento narrativo fundamental que não pode ser pensado a posteriori. Em Os Primeiros Soldados eu conversava muito com o Hugo Reis, técnico de som e também editor de som, sobre uma ideia de som de época. A gente pensa muito em imagens de época, em reconstruir uma época pela aparência física, e nunca pela aparência sonora. Então a gente assistiu a muitos filmes para entender como esses sons eram captados, a que distância essas pessoas ficavam, que microfones eram esses, que relações de ambiência se criavam. Isso serviu pro elenco e pra equipe também. Eu passei uns 30 filmes brasileiros feitos entre 1982 e 1985 para todo mundo assistir, criei um Google Drive e escrevi um parágrafo para cada filme sobre o que eu achava que podia ter de interessante para cada um da equipe e do elenco. E aí eles podiam entrar lá, ler e escolher o que queriam ver.

A Próxima Vítima, do João Batista de Andrade, é um filme que foi muito importante no processo. A gente olhava para as cenas de rua dele para poder entender como fazer as cenas de rua em Os Primeiros Soldados, porque ali é uma mistura do som direto, dessa origem do João Batista no documentário, com a necessidade de dublagem, e aí foi um barato muito grande, porque isso significava não só tentar pesquisar equipamentos de época, mas também pensar: qual é a postura de um técnico de som num set em 1982? Ela certamente é diferente da de hoje. E será que era possível reproduzir isso? A que distância o Hugo precisava ficar com o microfone dele pra gente de alguma forma habitar a mesma dinâmica de espaço e de corpo que um técnico de som de 1982 tinha com os seus atores ali no set? Isso foi muito gostoso de fazer.

E fora isso o filme tem uma relação com a música que é muito forte, assim como em todos os meus filmes. Tem as músicas de cena e tem as músicas da trilha sonora original do Giovani Cidreira, que eu acho incrível. Mas tinha também um desejo de contar coisas através das músicas, e aí vem a maneira como a gente mixou essas músicas, isso de poder pegar um fonograma e manipulá-lo de alguma forma até ele se encaixar dentro da proposta sonora que o filme tem. A música e o som nos livram de responsabilidades dramáticas com as quais às vezes a gente não sabe como lidar. Sobretudo pra mim, que escrevo roteiros nos quais as pessoas às vezes falam muito, é um momento sempre muito importante. A coisa que eu mais me orgulho de ter feito no cinema ainda é a sequência de Beethoven em Teobaldo Morto, Romeu Exilado. Ali é uma pira audiovisual extrema. O único prazer que existe ali é o prazer dos sons e das imagens se conversando, e nem importa muito se as pessoas entendem o que está acontecendo ou não, sabe?

Adriano: Teobaldo Morto, Romeu Exilado tem também a cena em que se toca San Vicente, do Clube da Esquina. Eclipse Solar bebe na música de concerto. Então, pra gente terminar nossa conversa, queria que você falasse sobre como a música constrói determinadas tonalidades, seja no processo de escrita, seja na inserção em momento cruciais, como a presença de Fala, dos Secos & Molhados, no final de Os Primeiros Soldados.

Rodrigo: Pra mim a música é claramente a arte superior entre todas as outras. Eu escrevo muito com música, dependo muito dela. Tudo que eu já escrevi na vida tem junto uma playlist muito específica. Quando revejo meus filmes, sei exatamente o que estava ouvindo naquele momento. Os Primeiros Soldados é um filme no qual consegui de alguma forma fazer com que essas músicas que eu estava escutando na época também fizessem parte do próprio filme. Todas as músicas de cena da versão final estão no roteiro desde o começo, sobreviveram a todas as versões e transformações.

Eu queria muito que a Rose dublasse Gonzaguinha, e conversei bastante com a Renata Carvalho pensando que uma travesti naquele momento tomar a decisão de dublar uma música de uma voz masculina já era por si um gesto importante. E eu convivi por tantos anos com essa cena na minha cabeça que jamais vi a Renata a ensaiando antes de a gente rodar aquele plano, porque era uma maneira de experimentar aquela música de outra forma. Tem uma memória minha no Facebook em que eu digo que aquele era o dia em que amadureci, pois finalmente tinha colocado Gonzaguinha em um filme meu. De novo esse papo de maturidade. (risos)

Quando entra “Linda Juventude” é o momento de contraste mais radical entre o que a música está dizendo e o que está acontecendo na cena, mas aí eu me lembro que isso é Clube da Esquina, que de todos os artistas brasileiros que sofreram repressão na Ditadura, foram os que decidiram ficar no Brasil, que não se exilaram, então quando eles estão cantando sobre aquela linda juventude eles estão falando sobre uma imagem de beleza que não é a que eles experimentavam, é uma projeção. Tudo isso vai enformando inclusive a maneira de filmar.

E bem, o Secos & Molhados fazem uma música que se chama “Fala” e que na verdade é sobre como melhor escutar. Quem fala na música não é o eu lírico dela, é esse outro. Ao eu lírico cabe aprender a escutar. E eu acho que é um pouco isso: apesar de Os Primeiros Soldados ser um filme que fala bastante sobre tudo, só foi possível realizá-lo porque a gente escutou muito mais, desde a pesquisa até a experiência íntima com os atores, até a relação que cada pessoa da equipe tinha com o que a gente estava falando, com essas energias que a gente estava conjurando. Eu acho que é o meu filme mais eloquente, e ao mesmo tempo sinto que é o filme em que estive mais disponível a ouvir do que a falar, sabe?

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*O repórter viajou a convite do 11º Olhar de Cinema

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