A pequena cidade de Cachoeira, situada a cerca de 120 quilômetros de Salvador e com cerca de 35 mil habitantes, entrou no mapa do cenário audiovisual brasileiro nos últimos tempos graças ao curso de Cinema oferecido pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e ao CachoeiraDoc – Festival de Documentários de Cachoeira, que chegou no ano passado à sua sétima edição. Curadora do evento e professora da instituição, Amaranta Cesar é parte importante deste processo.
Doutora em cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3), ela enxergou na criação do festival uma oportunidade de exibir na cidade filmes com o mesmo espírito independente que gostaria de ver sendo produzidos pelos alunos da universidade que, como ela mesmo coloca, está situada “na periferia da periferia”.
Como se notou na última edição do CachoeiraDoc, quando houve uma vivência de curadoras (que posteriormente resultou em uma mostra com curadoria coletiva de mulheres), o pensamento de Amaranta dá especial atenção à representatividade e aos modos de representação de mulheres e outras minorias (LGBTs, índios, negros) – a quem chama de “novos sujeitos históricos” – no cinema.
Durante a 20ª Mostra de Tiradentes, o Cine Festivais conversou com Amaranta Cesar a respeito de temas como curadoria, festivais de cinema, documentário, representação/representatividade e ensino universitário.
Cine Festivais: Queria começar perguntando sobre como se deu a sua trajetória no campo do cinema.
Amaranta Cesar: Eu fiz mestrado em Estudos de Cinema na UFBA e doutorado na Paris 3, na França. Quando voltei prestei concurso para a Universidade federal do Recôncavo da Bahia, que tem o curso de Cinema em Cachoeira. Era uma universidade nova, dentro do projeto de descentralização das universidades federais realizado pelo governo Lula.
Então eu me defrontei com esse desafio da construção de um curso de Cinema em uma cidade que fica no interior da Bahia, ou seja, na periferia da periferia, e pensei justamente em construir mecanismos para fazer o cinema contemporâneo, que desafia também estruturas de produção estandartizadas, hegemônicas… Ali (em Cachoeira) a gente não pode produzir nada hegemônico, por condições óbvias, materiais mesmo, e isso nos dá um desafio muito bom por um lado.
Fiquei pensando em como fazer esse tipo de cinema chegar em Cachoeira, e aí veio a ideia de fazer um festival de documentário. Inicialmente o curso de Cinema era específico, tinha ênfase em documentário; hoje não é assim. Mas (o curso) tem uma vocação para um cinema que se faz no risco, que se faz num campo com alguma precariedade, com um campo materialmente desafiador. Foi aí que cheguei nesse âmbito dos festivais. A gente começou dentro da universidade e depois o festival se expandiu para fora desses limites.
CF: Sendo um festival voltado para a exibição de documentários, é natural perguntar qual tipo de conceito o festival possui sobre o que é documentário.
AC: O CachoeiraDoc é irmanado e nasce muito inspirado no Forumdoc, que é um festival que acontece em Belo Horizonte e que tem uma série de pensadores que o circulam, como Claudia Mesquita, Cesar Guimaraes, Ruben Caixeta, André Brasil, que têm pensado muito o documentário como esse terreno expandido, mas o tempo todo friccionado e provocado pelo real e que não perde esse engajamento, ainda que invente formas que sejam diversas, inventivas, e muito próximas inclusive da ficção.
Então eu acho que a gente se coloca aí nesse lugar também. O documentário é um cinema de altíssima capacidade inventiva, mas essa capacidade se dá justamente por um enfrentamento do desafio que é o que o real põe, o real como um risco, uma rasura, uma provocação, um engajamento que é inventivo, que é criativo, que demanda uma proposição sempre renovada. É nesse lugar que a gente se coloca.
CF: Não em uma posição de moldar o que seria o documentário?
AC: Não, de jeito nenhum. Acho que o documentário é um campo fértil porque ele está o tempo inteiro se reinventando. Ao se confrontar com o desafio do real, e não poder negá-lo, ele precisa necessariamente se reinventar. O documentário é um campo em reinvenção. As pessoas perguntam “o que é documentário?”, e parece que (a falta de uma definição clara) funda a fragilidade do documentário, mas eu acho que o inverso funda a própria força do documentário.
CF: Da maneira como vem sendo encarado por alguns festivais, o conceito de curadoria em festivais de cinema é algo bem recente, de pouco mais de dez anos para cá. Como você enxerga a evolução desse conceito de curadoria ao longo destes últimos anos?
AC: É um conceito que se colocou, que está em uso e tem se expandido, e que não era um conceito habitual e tão presente no debate. No campo das artes há pesquisas curatoriais e relatos inclusive de processos de curadoria, mas no campo do cinema essa bibliografia é super rarefeita, e no Brasil, salvo engano, não há.
Eu acho que é um campo de construção de um pensamento acerca disso, porque há praticas já de longo prazo. A gente vê determinados curadores que estão trabalhando, construindo um lugar de pensamento. A curadoria como espaço de crítica, a crítica em ação. Acho que é uma coisa que aparece, mas que ainda não está sistematizada.
A gente tem relatos de caso, percursos de curadores, gente que veio da crítica, da realização ou da pesquisa acadêmica, e começa a se firmar como curador. Acho que é um campo interessante de investigação agora. Tanto de investigar essa trajetória (dos curadores e festivais), quanto de investigar os processos curatoriais, inclusive pensando, por exemplo, numa questão que foi posta aqui (na 20ª Mostra de Tiradentes), que é a questão das minorias.
Sob quais parâmetros as curadorias são fundadas? Que ideia de cinema ela defende, ela reforça, e como é que ela pode também se reconstruir a partir de um cinema que existe, que está sendo feito. Acho que isso é um campo que agora precisa ser sistematizado, pensado, teorizado, refletido. Salvo engano de minha parte, não há pesquisa acadêmica dedicada a isso, por exemplo.
CF: Falando sobre representatividade e representação de minorias, como você vê a evolução dessa preocupação de um modo geral, e como isso teria que resultar em um próximo passo, que é de pensar, por exemplo, o lugar da mulher em mais posições de poder em termos de curadoria?
AC: A gente nota a emergência desses debates nos festivais. Em 2016 e 2017 todos os festivais tiveram alguma mesa tematizando essas questões, e isso diz respeito também a uma movimentação das próprias minorias, as mulheres e os negros, e ao tensionamento que esses movimentos fazem em todos os campos da vida social brasileira.
Os movimentos feministas passaram por uma reorganização no mundo todo. As mulheres fizeram um grande evento claramente contra as políticas e os discursos de Trump imediatamente após a posse dele. No Brasil uma das grandes forças de resistência contra o golpe foi articulada pelo movimento de mulheres. Primeiro tem isso: o cinema dificilmente pode não reagir a uma coisa que está posta para fora dele, na sociedade. Então eu acho que isso é uma reação. Quase que pega mal não falar disso mais.
O que eu acho que a gente precisa pensar é que não adianta só fazer uma mesa sobre cinema de mulheres, sobre críticas mulheres ou sobre a presença das mulheres no cinema de uma maneira geral se isso não afeta efetivamente todo o pensamento de um festival. Seja na representatividade – as mulheres ocupando espaços de poder, e elas são minoritárias na curadoria inclusive – seja no reconhecimento dessa demanda de representação, porque o problema é que às vezes parece que o pensamento é “vamos contemplar aqui para contemplar”.
A questão é reconhecer que essa pauta é de fato importante e que ela pode contribuir com a colocação em crise da própria ideia de cinema que se defende, do próprio conceito curatorial que se defende, e não aparecer como uma exigência à qual se precisa fazer uma condescendência ou se precisa agir com complacência. Ou seja, escutar efetivamente as mulheres e os negros. Deixar que as demandas dos negros, das mulheres e das minorias sexuais, dos índios, afetem o próprio pensamento de cinema. Porque o pensamento de cinema e o campo de cinema não é uma coisa dada. Ele precisa ser tensionado. A própria ideia de crítica inclui uma autocrítica. A crítica não assegura um parâmetro para valorizar e legitimar historicamente os filmes. A crítica também precisa reconstruir parâmetros em função dos filmes que surgem e dos sujeitos históricos que começam a filmar.
Então eu acho que os festivais ainda olham muito pouco, ou olham enviesadamente, a partir dos seus quadros já estabelecidos, para a produção dos novos sujeitos históricos que estão a filmar. Isso é um outro dado. A gente precisa se confrontar com sujeitos históricos que estão filmando e que não filmavam antes. Seja os militantes na rua filmando manifestação, sejam as mulheres, sejam os negros, sejam os índios que pegam a câmera para se defender de ataque de fazendeiro. Então há sujeitos históricos filmando, e filmando em modos de produção que não são os modos de produção tradicionais, delimitados pelo campo cinematográfico institucional. Fora de uma institucionalidade, fora de um quadro conceitual pronto. Como lidar com isso?
Acho que esse critério de qualidade, de qualidade vinculada a uma ideia de forma como formalismo, como se a invenção formal tivesse uma hierarquia acima de qualquer coisa, acho que ele precisa ser tensionado sim. Os filmes militantes têm forma, elas só não são hierarquizadas em relação às demandas politicas. Os panfletos têm forma. Então eu acho que desierarquizar e problematizar essa separação é urgente, sob pena de a gente perder de vista alguma coisa que está sendo produzida e que não ache espaço de exibição.
E aí você tem razão, os festivais terminam por repetir programações. Os filmes se repetem. Os filmes que circulam são mais ou menos os mesmos, dos quais a gente já sabe o que esperar, então é entender que não é a gente que vai fazer um gesto de condescendência com relação às minorias, ou dizer como elas podem entrar nos nossos festivais, no nosso campo de cinema, no nosso olhar crítico. É pensar como esses filmes das minorias podem inclusive tensionar, problematizar, colocar em crise o nosso olhar crítico, a nossa perspectiva curatorial, o enquadramento que a gente faz, da limitação do que a gente chama de cinema.
CF: Aproveitando este tema, gostaria que você falasse sobre a experiência de curadoria a partir do olhar de mulheres que foi realizada no último CachoeiraDoc.
AC: Eu organizei no CachoeiraDoc um programa chamado Com Mulheres, que era uma vivência com muitas mulheres, algumas relatando suas experiências de curadoria. Eram mulheres curadoras, jovens, e outras pessoas que se inscreveram, um encontro que se chamava “curadoria da perspectiva das mulheres”. E a pergunta era: “O que as mulheres podem fazer pelos filmes das mulheres?” Como se pode escrever historicamente e legitimar os filmes das mulheres, dada a negligência crítica que há com relação aos filmes das realizadoras.
Isso não significava dizer que as mulheres têm uma perspectiva própria e que essa perspectiva coincide, porque as mulheres são diversas, são múltiplas, mas significava dizer que a gente estava ali tomando uma posição enquanto mulher. Significa se posicionar em relação aos filmes com um posicionamento claro. Não se trata de uma essência feminina ou de um olhar feminino que viria a se somar, acrescentar ou problematizar o olhar masculino. Um homem pode fundar uma perspectiva considerando o lugar da mulher, pensar como se colocar em relação a esses filmes considerando o fato de elas serem mulheres.
Então é diferente de dizer “os filmes se impõem não importa se eles são feitos por mulheres ou por homens”. É dizer que sim, os filmes são feitos por mulheres e por homens, mas a partir de que lugar eu olho esses filmes? E que lugar é esse de onde eu olho esses filmes? Então era reconhecer que essas coisas existem e que para a gente olhar a gente precisa tensionar o nosso quadro.
E eu não acho que foi por acaso que os filmes de mulheres começaram a se impor. Não foi porque mudaram, porque são filmes melhores, por acaso realizados por mulheres, mas porque efetivamente começa-se a considerar a perspectiva das mulheres no cinema, porque há um campo de força, organizações das mulheres na sociedade civil, no campo do cinema, na crítica, na realização, para tensionar, para que essa perspectiva apareça.
A gente teve esse momento para pensar o que significava fazer curadoria enquanto mulher, enquanto sujeito histórico, que produz uma leitura, uma vez que se assume desse lugar. Não é uma coisa dada, mas é uma coisa que se constrói, é uma construção reiterada, múltipla, e aí fizemos esse encontro.
A outra parte foi um programa de filmes, que foi curado coletivamente, chamado Com Mulheres. Eram filmes feitos por mulheres, com mulheres. Tinha tanto a questão da representatividade (filmes de realizadoras) e da representação (filmes sobre mulheres), e ao mesmo tempo foram curados coletivamente justamente dentro dessa ideia de que não existe um olhar feminino, não existe uma essência feminina. Existe uma condição histórica de ser mulher, como é a de ser negro, e essa condição histórica precisa ser elaborada constantemente. O que que significa ela? Como é que as mulheres constroem partilhas, como é que se dá a ver relações entre mulheres? Então (o objetivo) era um pouco também contribuir nesse sentido. Saber que as mulheres interagem, estão juntas fazendo cinema e pensando, diferindo, criando multiplicidades.
CF: Aqui na 20ª Mostra de Tiradentes houve uma mesa de apresentação do Elviras – Coletivo de Críticas de Cinema, e um dos focos foi a apresentação de dados que atestam uma desigualdade grande. Como você avalia iniciativas como essa?
AC: É importantíssimo levantar os dados, mas eu acho que a gente precisa passar desse lugar. Já há grupos que estão levantando esses dados. O GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro) está levantando, o Instituto Geena Davis também. Agora é preciso criar instrumentos de análise desses dados. Eles não são suficientes, não explicam o estado das coisas, precisam ser interpretados por chaves diversas, mas são reveladores de uma desigualdade que não pode mais ser lida e tratada como alguma coisa natural.
Ela precisa ser enfrentada em todos os campos, na curadoria, nos editais, e há um reconhecimento muito simples de que efetivamente é importante que haja uma maior representatividade, que haja um conjunto mais heterogêneo, complexo – como é efetivamente a sociedade, o mundo, o próprio cinema – que componha esses lugares de pensamento, de poder, de institucionalidade, de determinação do que sobrevive ou não, de que imagens a gente vai ver ou não. É disso que a gente está falando também: quem é que pode fazer uma imagem, quem pode decidir sobre a existência histórica e social de uma imagem.
E é preciso que esse poder esteja compartilhado. Ele não pode ser monopolizado pelos mesmos sujeitos que estão no Congresso Nacional: homens brancos, de classe média, heterossexuais. Do mesmo jeito que a gente se incomoda que o Congresso Nacional seja desse jeito, que a gente se incomoda com aquela foto antológica do ministério do Temer no momento em que se concretiza o golpe, a gente precisa se incomodar com uma mesa composta por homens, brancos, de classe média, no debate de um festival. É disso que a gente está falando.
CF: Um tema que surgiu em algumas entrevistas é do papel das universidades na perpetuação de desigualdades de gênero no cenário do audiovisual. Qual é a sua percepção sobre isso no papel de professora?
AC: Acho que as universidades também são lugares de exercício do machismo. As próprias bancas que escolhem os professores que entram nas universidades, as funções estabelecidas… A gente vive um machismo, um patriarcado que, assim como o racismo, é estruturante na nossa sociedade, e ele é naturalizado. Então o que a gente está fazendo, as mulheres de uma maneira geral, é tensionar essa naturalização.
No debate (de apresentação do coletivo Elviras) se falou da insegurança, do desconforto de uma mulher crítica em um ambiente eminentemente masculino. Parece sempre que depende de uma atitude da mulher, mas não, a situação é estruturante. É como se as coisas estivessem organizadas para que elas (as mulheres) não estivessem ali.
Isso não depende só da energia do sujeito, do indivíduo que pode, do indivíduo que vence a batalha… não é disso que se trata. Acho que isso na universidade também é uma problematização constante. E aí os agentes do machismo não são exclusivamente os homens, é óbvio. Na medida em que o machismo é estruturante, as mulheres, as professoras, também podem replicar essas estruturas sem nem se dar conta. Então o que a gente precisa fazer é tensionar, desnaturalizar isso em todos os campos.
CF: Para fechar, gostaria de saber como que você compara o ambiente da Mostra de Tiradentes com o do CachoeiraDoc, já que são festivais realizados em cidades bem pequenas.
AC: Espacialmente tem uma coisa que é muito semelhante. Estamos numa cidade (Tiradentes) que facilita a convivência, facilita o encontro. Tanto em Cachoeira quanto em Tiradentes a gente se encontra o tempo inteiro na cidade, nos espaços, são festivais que entram na cidade. A gente não fica de van do cinema para o hotel, a gente vive, convive.
Por outro lado, são realidades sociohistóricas radicalmente diferentes. Cachoeira é uma cidade de uma herança escravocrata e colonial que não é a herança mineira. É uma herança que deixou mais destruição do que patrimônio. Então essas realidades geram engajamentos diferentes com as cidades.
Materialmente também é diferente. A gente realmente é um festival que está na periferia da periferia, em termos orçamentários, em termos geográficos, o que dá engajamentos diferentes. Do mesmo jeito que a incapacidade de definir o que é documentário é aparentemente uma fragilidade, mas no final das contas é também um lugar de força, de potência, acho que talvez a precariedade material da cidade, ou uma estrutura por criar, também gera um engajamento outro, desafiador para todo mundo, pra gente que organiza, pra quem vai, pra própria comunidade.
*O repórter viajou a convite da organização do festival