Este era pra ser um texto de balanço da 23ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada entre os dias 24 de janeiro e 1º de fevereiro de 2020, que tive a alegria de cobrir pelo Cine Festivais. Mal sabíamos que talvez estivéssemos vivenciando o último festival de cinema presencial de 2020. Em meados de março, o ano tomaria um rumo absolutamente inesperado, nos lançando em um abismo espaço-temporal sem prenúncio de fim. Muito rapidamente o país se dividiu entre os que puderam fazer um isolamento rigoroso e o fizeram; os que não puderam fazer, em grande parte por falta de políticas públicas de auxilio econômico, e continuaram suas atividades com os milhares de protocolos não-oficiais (já que dos governos as ordens são calculadamente confusas e contraditórias); e os que, podendo fazer isolamento, em um desvario sociopata, optaram por não fazê-lo, auxiliando o projeto de aniquilação do Brasil do governo federal e submetendo a todos a um looping pandêmico sem prazo de retomada.
Em todos os casos, a pandemia traz uma marca indelével para as relações em 2020: o afastamento dos corpos, o temor do próximo, o risco de contágio pela proximidade com o outro. Neste contexto, as salas de cinema são fechadas e as mostras e festivais adiados ou realizados virtualmente. O que esta situação e seus desdobramentos evidenciam é algo que estava um tanto esquecido: cinema é, também, prática social. É na experiência compartilhada que o filme se materializa, e isso se dá não só pela reunião em um mesmo espaço, mas sobretudo pelo diferente trato temporal que a “instituição festival” nos pede. Como aponta Janet Harbord,
os festivais de cinema atenuam os efeitos do tempo desregulado ao fazerem com que o tempo importe de duas maneiras aparentemente opostas. Por um lado, o tempo do programa de filmes é uma temporalidade estruturada: a duração dos filmes é indicada no programa e a programação de todo o evento é definida com antecedência, fornecendo um ritmo temporal que a desregulamentação eliminou de outras áreas da vida cotidiana. Por outro lado, o festival aproveita o tempo da contingência através de eventos ao vivo com exibições limitadas, oferecendo a singularidade de uma experiência que não pode ser reproduzida em uma data ou local posterior. (HARBORD, 2016, p. 75-76)
Se uma parte do público em geral, mas também uma parte da comunidade cinematográfica, já estava migrando, sem muita reflexão ou pesar, para uma fruição cinematográfica solitária, doméstica, de streamings e torrents, o confinamento forçado nos lembra que cinema é encontro. Encontro com os filmes, encontro com o outro, encontro com o mundo, com as imagens. Imagens que também são corpos, que reivindicam presença, deslocamento, toque, respiração, tempo. Reivindicam que as olhemos nos olhos, expostos publicamente, longe do espaço seguro dos nossos quartos.
Este impacto se sente, sobretudo, nos festivais e mostras do período pandêmico. À impossibilidade do encontro, da troca, da tensão e do afeto da presença do outro, soma-se a alteração radical do mundo como o conhecemos. Depois de um, dois, três, quatro meses (e contando) de isolamento social, como se relacionar com os filmes deste outro mundo que parece tão distante quanto improvável? Na “ralação” dos filmes com o mundo (ato falho preciso de Kênia Freitas durante conversa sobre a curadoria do festival Cachoeira Doc), quais imagens sobrevivem, nos mobilizam, nos desafiam? Ainda, em relação à feitura mesma dos festivais, como transformar uma impossibilidade de existência em realidade provisória?
Aqui faço referência explícita ao Cachoeira Doc, que trouxe esta reflexão para o cerne da sua realização e programação de filmes, intitulando a sua IX edição de Festival Impossível, Curadoria Provisória. O distanciamento dos corpos se reflete na fragmentação da curadoria: cada curador escolheu um filme para ser disponibilizado online durante o período de realização do festival, de 26 de maio a 7 de junho. A opção por uma curadoria fracionada – cada filme selecionado foi acompanhado pelo texto de um curador -, mas não solitária, pode ser lida como um protesto à impossibilidade do encontro físico, do debate corpóreo, da “ralação” dos corpos.
Disponibilizar filmes em uma plataforma online é um modo de realizar um festival? O que é um festival de cinema? Seus filmes? Sua premiação? Aqui lembro da opção, tanto elogiada quanto criticada, de Cannes de distribuir láureas aos filmes selecionados no lugar de sua exibição. Talvez para Cannes seja o que resta, já que os filmes inéditos devem desejar se manter assim até que as coisas “se normalizem”. E para o restante? Disponibilizar filmes online com recorte de áreas geográficas de exibição, realizar debates virtuais com curadores e realizadores, exibir filmes com dia e hora marcados, são algumas das estratégias das mostras e festivais que, se de uns anos para cá já estavam flertando com certa virtualidade na sua realização, em relação a coberturas, disponibilização de bate-papos, aulas magnas e interações online, se viram obrigados a se repensar integralmente para o contexto impossível e provisório da separação dos corpos ou do “isolamento social”, expressão que me atormenta até em sonhos.
Um festival não competitivo que pessoalmente acompanho de perto há algumas edições, e que acontece em terras um pouco menos epidêmicas, é o Bazofi, festival de filmes raros, exibidos em película, que acontece paralelamente ao Bafici, Festival Internacional da cidade de Buenos Aires. Organizado por Fernando Martins Peña, conhecido colecionador de “pelis” argentino, o Bazofi tem como característica o acesso a filmes raros, a valorização das sessões presenciais e a sua forma de exibição. Sua existência provisória foi articulada por uma série de “exibições” de filmes no Youtube, com dia e hora marcados, apresentações anteriores aos filmes gravadas e uma caixa de comentários bastante ativa. Reunir as pessoas para ver o mesmo filme no mesmo horário, com uma possibilidade (ainda que fria e distante) de interação anterior e posterior à “sessão”, foi o mais perto que cheguei de um festival durante este período.
Já o Festival de Gramado, primeiramente adiado para setembro, acontecerá online e em parceria com o Canal Brasil, que exibirá as mostras competitivas. Ainda acontecem e acontecerão online: Festival Ecrã, CineOP, entre outros. O Olhar de Cinema, que foi adiado para outubro, mas certamente ainda com muitos questionamentos sobre a sua viabilidade, também abraçou a ideia do provisório e realizou uma edição especial em parceria com o Mubi (plataforma de streaming), com filmes que integraram edições passadas. Uma opção tão retrospectiva quando festiva: aproveitar o período de inação para refletir sobre o que o festival foi e, consequentemente, sobre o que poderá vir a ser.
Diante do cenário impensável há menos de seis meses, organizações e indivíduos improvisam como podem para manter alguma estrutura mental, emocional, e até mesmo econômica. Os impasses sobre nossa presença no mundo entraram na mira de uma lente de aumento. Tramar futuros parece impossível, mas pensar o passado também. Estamos de alguma forma presos a um presente de duração indefinida.
Quanto a isso convém também destacar a iniciativa do Instituto Moreira Salles com o projeto IMS Convida, um programa de fomento à produção artística durante o período da pandemia, que se tornou também uma espécie de coleção de diários de artistas refletindo sobre o momento. Ana Pi, Grace Passô, Helena Ignez, Karim Aïnouz e Vinicius Silva foram alguns dos nomes, entre dezenas de outros artistas, que já deixaram seu testemunho do tempo registrados para a posteridade.
Impossibilitados de nos relacionarmos com o passado recente, e sem instrumentos mentais ou imaginários para vislumbrar um futuro próximo, pensar o presente enquanto se vive parece ser o desafio inevitável que se coloca. Que logo este momento se torne um passado sobre o qual nos debruçaremos para traçar desdobramentos estéticos e de pensamento.
Este era pra ser um texto de balanço da 23ª Mostra de Tiradentes. Poderia ser sobre a efervescência dos encontros inesperados, sobre novas e pulsantes narrativas, sobre as possibilidades de renovação do cinema brasileiro, sobre os debates controversos, sobre a energia pulsante de uma tenda de cinema lotada, suada e voraz. E de alguma forma é. Só que ao contrário.
REFERÊNCIAS
HARBORD, Janet. Contingency, time and event: an archaeological approach to the film festival. In: DE VALCK, Marijke; KREDELL, Brendan; LOIST, Skadi (orgs.). Film Festivals: history, theory, method, practice. Londres: Routledge, 2016. p. 69-82
*com colaboração de Adriano Garrett