O início da última década marcou a transição definitiva do padrão película para o padrão digital e anunciou um caminho irreversível rumo a uma maior diversidade estética, geográfica, racial, de classe e de gênero de nossa produção cinematográfica. Como em momentos passados, mas desta vez em uma escala bem mais ampla, as placas tectônicas do cinema brasileiro se moveram primeiramente e sobretudo a partir do curta-metragem. Urge, portanto, a construção de pensamentos que não se limitem a reproduzir a centralidade histórica do longa-metragem de ficção.
Nasceu dessa inquietação o convite do Cine Festivais para que profissionais da crítica, da realização, da curadoria e da academia respondessem ao seguinte questionamento: “em sua visão, quais são os três curtas e médias-metragens brasileiros incontornáveis produzidos entre 2010 e 2020? Por quê?”
Não se tratava, portanto, de um desejo de distribuir chancelas canônicas – embora esse risco certamente esteja colocado. Nosso intuito era romper com a tão propagada noção de “melhores filmes” e substituí-la por uma provocação: para você, o que seria um “filme incontornável”? Através do pedido para que as escolhas fossem acompanhadas de textos reflexivos, pretendíamos escapar da mera listagem, produzindo material de consulta que gerasse reflexão ou que ao menos instigasse quem lesse a pesquisa a procurar conhecer esses filmes.
A pesquisa “Curtas e Médias Brasileiros Incontornáveis – 2010-2020” contou com 45 participantes, que citaram ao todo 79 filmes. Abaixo você encontra os resultados separados em três grupos (Escolhas Individuais, Filmes por Ordem Alfabética e Filmes por Número de Citações) – para abrir cada um deles, clique no título correspondente ou no botão “+”.
Escolhas individuais
Adilson Marcelino, jornalista e pesquisador (Mulheres do Cinema Brasileiro)
Geralmente, as histórias de Clint Eastwood não me interessam. O fato de ele ser um republicano atiça em mim, de imediato, uma antipatia instantânea. E mesmo que em relação aos dois partidos políticos americanos – Republicano e Democrata – percebe-se que diferenças há, o botão do controle remoto que engendra e bota em curso guerras absurdas, oportunistas e sanguinárias nos quintais alheios é acionado sem pudor e sem pestanejar tanto por um lado quanto o outro. Aliás, ambos parecem viver disso e para isso.
No entanto, Clint é um grande cineasta. Dos maiores. E ainda que são nas histórias que mais me interessam que estão alguns de seus filmes de minha predileção, como As Pontes de Madison e Além da vida, a genialidade dele como cineasta é incontestável seja em qual história, em qual recorte ou em qual cenário escolhe para falar de seus temas recorrentes. E a cada filme isso vai ficando cada vez mais escuro, exatamente porque no cinema de Clint há, antes, abaixo e acima de tudo, Cinema. Pois parece repisar clichê ainda se ter que dizer que no cinema interessa não a história, mas como se conta essa história. Aliás, nem precisa de história, basta ver o que outro americano, para ficarmos na mesma geografia imperialista* – que delícia usar essa *expressão aqui -, Francis Ford Coppola, faz com aquele fiapo de trama para todo aquele experimentalismo na Vegas recriada em estúdio para o arrebatador e inesquecível romântico até a medula O fundo do coração.
Cinema é linguagem. Deveria ser o óbvio, mas ainda hoje parece não ser. Afinal, há, ainda, inúmeras críticas que ora elegem a história como o foco central de um filme, ora fazem quase uma bula em letras garrafais da ficha técnica para sustentar a construção da percepção do filme abordado. Nessas horas, encarno o Macunaíma com cara eterna de Grande Otelo e de botão para botão exclamo em suspiro: Ai, que preguiça!
Foi a partir do que coloco nesses três parágrafos acima, o que no texto jornalístico chamamos de “nariz de cera”, e, aparentemente, desconexos com os curtas aqui elencados, que me fez aceitar o convite para escolher três “Curtas e Médias Brasileiros Incontornáveis – 2010-2020, para o querido Cine Festivais. Há muito que, ao ver lista de melhores filmes, seja em qual formato for, arrepio do cóccix até o pescoço. E fujo desses convites igual o tinhoso aos pés da cruz. Penso que escolher melhores só é possível comparando as produções daquele recorte. Ou seja, como escolher Os Melhores Filmes Brasileiros de Todos os Tempos sem conhecer os Filmes Brasileiros de Todos os Tempos? Ou pelo menos em sua maioria ou em grande parcela? Já quanto a classificação “incontornáveis” adotada pelo Cine Festivais, ela me fez aceitar o convite de imediato. E só não denomino o recorte como instigante porque tenho pavor dessa expressão em textos críticos, que sempre me faz pensar que a tal crítica ou tal crítico sem saber mais o que dizer taca logo um instigante no meio do bolo desandado e bota a batata quente no colo do leitor. E ainda sai com cara de profundo.
Pois se com o recorte “incontornáveis” evita-se o ranking rasteiro, além disso ainda possibilita-se ao convidado escolher o incontornável sem a premissa de ter que ver todos os curtas e médias, ou a grande maioria deles, para a escolha, já que aí abstém-se da comparação e se instaura o impacto suscitado pelo filme em si e não por ele em relação a outros.
Os filmes escolhidos aqui são todos curtas e todos da segunda metade da década: Estado Itinerante (2016), de Ana Carolina Soares; NoirBlue (2018), de Ana Pi; e Cinema contemporâneo (2019), de Felipe André Silva. A morte branca do feiticeiro negro (2020), de Rodrigo Ribeiro, poderia estar aqui em igual medida dos outros três, mas como o convite foi para exatamente três, obedece quem tem juízo.
O mundo é comandado pelo homem branco, cisgênero, heteronormativo, e de classe média para cima. Poderia ser mais um cliché a não se citar, se não fosse o mais cruel deles todos, um retrato 3×4 em altíssima resolução empapado em sangue como prova de genocídio continuamente planejado e executado por estes ao resto todo, ou seja, à todas as minorias.
E é esse cara branco, não pálida, que treme, faz beiço, esbraveja e rasga o cu com a unha quanto tem que se a ver com a “nova” ordem do dia, marcada por levantes e reconfiguração de códigos de posturas e de vocabulário, como as cotas raciais, o politicamente correto, o Lugar de Fala, e afins. Porque sim, homem branco hetéro, não toleramos mais, por exemplo, chamar-nos de viado sem ser viado. Nem posso dizer que sinto muito, pois não sinto nada em relação a ti caro inimigo genocida, só te tigo que o privilégio de nos tratar de viados é só entre viados, ok? Porque sim, homem branco hétero genocida, não toleramos mais – quer outro exemplo? -, querer dar lição de racismo para nós pretas e pretos. Portanto, rasgue seu cu com vontade, mas bem longe de nós.
Todos esses três curtas foram escolhidos porque antes, abaixo, acima de tudo, são Cinema. E de altíssima cepa. E, depois disso, há, também, uma convergência nos três que me fascina: filmes sobre minorias dirigidos por minorias. Quais? Negritude, mulher, LGBTQUI+.
É, para ainda nos utilizar de clichês, mas aqui saborosíssimos, como ” a faca e o queijo na mão”, “a fome com a vontade de comer”. Sim, porque se há Cinema, e se há minorias, o mergulho é incontornável – para reafirmarmos o mote. Se não for fascista, sempre estarei do lado das minorias. Sempre! E sempre estarei do lado do Cinema.
Os três curtas foram assistidos em festivais, e abaixo compartilho aquelas primeiras impressões sobre eles e registradas, à época, no meu site Mulheres do Cinema Brasileiro.
Adriano Garrett, editor do Cine Festivais
2010 é o ano no qual a Mostra de Tiradentes cria uma seção competitiva (a Mostra Foco) dentro da qual passa a não distinguir curtas-metragens exibidos em película ou em formato digital. É sintomático o fato de que estava naquela programação o filme que melhor fala sobre essa transição no cinema brasileiro: Fantasmas (André Novais Oliveira, 2010). Aos puristas que valorizavam a escassez da película em contraposição à suposta banalidade da câmera caseira, André prepara uma emboscada na qual dobra a aposta no banal (“como é que é lá, é society?”, “não, é sintético”) para em seguida deixar o espectador sem chão não uma, mas várias vezes ao longo de seus dez minutos de duração. Não importa o quanto olhemos para esse found footage de Contagem, permanece a sensação de achado e de estranheza, nesse movimento que ao mesmo tempo aprisiona (“Camila… Camila… Camila”) e liberta (as algemas que Zózimo rompe em 1973 são novamente quebradas, só que agora por uma câmera, um tripé e uma laje).
Se Fantasmas é esse trabalho que se metamorfoseia e nos desconcerta a partir de uma única tomada longa, Ava Marangatu (Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites e Joilson Brites, 2016) é aquele que traz o plano que mais me marca. Depois de sermos apresentados a um ritual de caça dentro da mata, dois garotos guarani e kaiowá se deparam com uma plantação de soja. A câmera até então caminhante se estabiliza, e por cerca de um minuto vemos as crianças se afastarem em meio àquela paisagem infinita. Está tudo ali: o choque com o agronegócio, a monocultura asséptica x a valorização da biodiversidade, o poder do capital x os saberes tradicionais. Um dos garotos comenta: “se a gente cortar toda essa soja, eles nos matam”. Depois, em um microlevante somente testemunhado por nós espectadores, ele dá um tapa em uma folha de soja, reação possível diante de uma carga de violência que se apresenta à sua frente em uma escala infinitamente maior.
O choque entre escalas de poder absolutamente díspares (em um lado, o movimento por moradia; no outro, o aparato repressivo policial) também se faz notar em Na Missão, com Kadu (Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito, 2016). Kadu já avisara que aquelas imagens tinham que “rodar é mundial”, mas a institucionalidade do cinema é lenta para entender alguns recados. Se, como disse Amaranta Cesar, o “cinema chega depois”, aqui ele se apresentou com um pensamento de montagem dos mais instigantes: a fenda que divide o filme em dois e nos joga em direção ao abismo, o respeito à integridade das imagens da manifestação, o tensionamento da noção de autoria, a horizontalidade radical que nos coloca para ver junto com Izidora – e não como privilegiados “espectadores de festival” – as imagens projetadas naquele casebre. Cinema de curto-circuito que sintomaticamente acaba restrito a curtos circuitos (de exibição e reflexão).
Alice Name-Bomtempo, cineasta e roteirista
Levando para um lado bem pessoal, me ative a três curtas com os quais me encontrei em diferentes momentos da minha formação e carreira no cinema, e que me marcaram tanto que me lembro da primeira vez em que os vi, e do que senti enquanto assistia.
Fantasmas (2010), de André Novais Oliveira
Um colega da faculdade compartilhou no Facebook, em 2012, e assim que eu vi no computador tive uma necessidade doida de mostrar para outras pessoas e conversar sobre. Só fui ver no cinema em 2018, na masterclass do diretor na Semana de Cinema, e o impacto da simplicidade e intimidade do ponto de vista de uma câmera moldado pela conversa em off de dois amigos seguiu forte. Para mim, nesse gesto simples de filmagem, o curta questiona o que há por trás das imagens que vemos, os fantasmas que nos motivam a filmar justamente por conta daquilo que não podemos ver.
Kbela (2015), de Yasmin Thayná
Assisti em um cineclube improvisado, e mesmo com a dificuldade de ver a tela em um espaço pequeno e lotado, fui sensorialmente sugada pelo filme. A textura das imagens e da trilha, que lembro fortemente apesar de nunca lembrar de trilhas instrumentais, geraram uma catarse em mim e no público que só um filme que permanece é capaz de gerar. Aqui, o fio da história narrada pouco interessa, e sim, a experiência que é finalmente testemunhá-la.
Guaxuma (2018), de Nara Normande
No meio de uma sessão de festival insuportavelmente longa onde se torna quase impossível assimilar os filmes como filmes e não como números, o começo dos créditos com a diretora cantando “Do You Realize??” a capela me marcou como um momento de reconhecimento. No sentido de me reconhecer na finitude da música e das memórias que acabam mas podem ser reconstruídas e tocadas como grãos de areia. Acho que é por essa refação de histórias que já foram que me envolvo com o som e a imagem dos outros, e também porque busco que envolvam-se com os meus. Reanimados na tela, todos nós que vamos morrer podemos ficar um pouco mais nessa vida que passa rápido.
Ana Siqueira, curadora (FestCurtasBH) e pesquisadora
Dentre tantos possíveis contidos na ideia de “incontornável”, esse conjunto diminuto de filmes da última década expressa a convergência de algumas obras que deixaram marcas fecundas e persistentes no meu sentir e pensar, afinal inseparáveis, incitando assim o desejo de compartilhar a experiência com essas imagens. Cada um inventando poeticamente uma política – no íntimo da família, no rugir das ruas, na interrogação dos arquivos e representações racistas – o corpo ocupa o primeiro plano de cada um dos filmes, é seu motor, testemunho, evidência.
Vós
Ana Pi
Tropical e Pindorama/Belo Horizonte MG, 2011, 5’30
Anos antes do filme infinito NoirBLUE, de que tanto e belamente já foi dito, e de uma série de filmes-performances poderosos que se seguiram, a artista Ana Pi fazia essa pequena joia com suas duas avós. Uma laje, um quintal, duas mulheres que se mostram em sua tranquila imponência. Vislumbres de uma família e uma história envolvidas nos gestos da neta que conectam tempos e espaços pelo corpo que dança. O documentário intergeracional que se insinuava logo se revela também cinema experimental, o ritmo se intensifica, sons e imagens se multiplicam, se entrecortam, reiteram, sugerem. Em meio à singeleza, uma passagem se abre para os mundos que ali coabitam.
Retrato n. 1 Povo acordado e suas 1000 bandeiras
Edu Ioschpe
SP, 2013, 5′
Filmada durante os levantes de junho de 2013, a sequência condensa a atmosfera e contradições de um momento histórico no Brasil e seus sombrios desdobramentos, assumindo um caráter premonitório. O filme recorta um breve momento sem início ou fim marcados, delegando sua conclusão à audiência e participando do embate entre uma militante histórica de esquerda (segurando resoluta sua bandeira) e jovens que mal acabaram de chegar às ruas. A câmera se une ao enfrentamento da protagonista, cujo rosto preenche o quadro na quase totalidade do filme, enquanto a turba furiosa permanece no fora de campo mas é palpavelmente sentida dentro dele. Em sua inabalável e destemida resistência à opressão do extra-campo, a mulher se torna uma heroína. “O povo acordou”?
Tudo que é apertado rasga
Fabio Rodrigues Filho
BA, 2019, 27′
Se as imagens dos filmes e da televisão encerram o testemunho de sua violência, elas guardam também o germe de sua insubordinação. No minucioso trabalho de montagem/desmontagem, o arquivo grita, a autoria estremece, o corpo se faz soberano apesar de tudo o que tentou dominá-lo. Os créditos traem seus desígnios, a devolução do olhar rasga a superfície, questões profundas da inscrição do racismo nas imagens se escancaram. Através da presença da atriz e do ator negros, a faísca contida nas imagens escapa e se espalha, não é mais possível fingir que não se vê: “o papel vai sempre guardar o relevo das letras escritas”.
Bernardo Oliveira, crítico (Multiplot! e Revista Cinética)
Aluguel: o filme
Fantasmas
Kbela
Bicicletas de Nhanderú
Swinguerra
Sem Titulo #1: Dance of Leitfossil
República
NoirBLUE
Nada é
Experimentando o vermelho em dilúvio
Bruno Galindo, curador e crítico (Sessão Aberta)
Em linhas gerais minha ideia foi pautar filmes de maneira muito concreta e objetiva: filmes sobre os quais, daqui dez anos, estaremos falando como filmes dessa década.
Segue então a lista
Deus – Vinícius Silva – a maneira como o filme retrata o espaço filmado é algo de muito singular nessa década, penso que aquele registro ficará cada vez mais incontornável com o tempo. Há, ainda, uma relação geográfica que me conecta diretamente ao filme, aqueles trajetos, a estação Artur Alvim e a quebrada da zona leste paulistana e a estação Vergueiro com seus ares de centro classe média descansada, como tão bem diz Kenia Freitas. Curiosamente, Deus é um filme que vejo pra esquecer um pouco de cinema. É um filme que penso, por vezes, não precisar ser racionalizado, basta ve-lo, estar ali, viver nele.
República – Grace Passô – Embora seja um filme feito no ápice deste fatídico e já tragicamente histórico 2020, ao fim também dessa década, o filme e o projeto estético de Passô fornecem uma bússola ética e moral sobre o Brasil em vários níveis de disrupção, de quebra não apenas da quarta parede, mas de todas as paredes. Entraremos na nova década olhando para este filme de Passô, penso eu, como temos olhado, nestes pouco menos de 10 anos desde seu lançamento, para “Fantasmas”, de André Novais Oliveira. Há algo de tão insólito, de tão disruptivo, que o que cê diz parece sempre pouco sobre o filme. “O Brasil é um sonho, mãe”. Se há algo mais dessa década que essa frase eu desconheço.
Motriz – Taís Amordivino – Poucas vezes um filme me bagunçou como essa singela obra-prima. Um filme que, na camada bruta de sua própria matéria fílmica (a câmera na mão, o foco instável, o quadro trepidante), encontra um gesto afetivo ímpar, que resume como poucas obras (entre curtas, médias e longas) a experiência da juventude negra brasileira pós 2010. Afeto maternal, luto, morte, resistência, resiliência, uma câmera na mão e muita treta na cabeça. Acho este também o filme que melhor representa o grande dado político do novo cinema brasileiro na última década: as cotas nas universidades públicas deram voz e ferramentas à uma geração sem precedentes na história do Brasil. Esse filme é uma delicada e sensível pérola, a ser tratada com a mesma delicadeza e sensibilidade.
Carla Italiano, pesquisadora e curadora (forumdoc.bh e Olhar de Cinema)
Como era gostoso meu cafuçu (Surto e Deslumbramento, 2015)
NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018)
Quebramar (Cris Lyra, 2019)
Cecília Barroso, crítica (Cenas de Cinema)
Fantasmas (2010), de André Novais Oliveira
Com uma construção muito simples, em um único plano, André Novais fala de mágoa, efemeridade e tristeza a partir de uma conversa entre amigos. Interessa o jogo entre a imagem e a abstração que aqui esconde o usual e dá forma à ausência, concretizando-a em tela.
A Casa Cinza e as Montanhas Verdes (2016), de Deborah Viegas
Apesar de partir de um conto básico, quase um facilitador, Deborah Viegas constrói com cuidado o seu tenso universo: plano milimetricamente calculado, tempo muito bem distribuído, sons urbanos e de natureza para tratar de relações humanas, dor e fuga.
A Morte Branca do Feiticeiro Negro (2020), de Rodrigo Ribeiro
Imagens de arquivo são resgatadas para ilustrar as últimas palavras de Tenório em seu bilhete de suicídio. Demarcando a força das imagens e da palavra escrita, o novo e o velho se misturam para demonstrar a perenidade do racismo no Brasil.
Chico Fireman, crítico (Filmes do Chico)
Quem Tem Medo de Cris Negão? (2012), de René Guerra
Guaxuma (2018), de Nara Normande
A Morte Branca do Feiticeiro Negro (2020), de Rodrigo Ribeiro
menções honrosas:
Eu Não Quero Voltar Sozinho (2010), de Daniel Ribeiro
Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho
Claire Allouche, crítica (Cahiers du Cinéma), curadora e pesquisadora
1. Nunca é noite no mapa (2016), de Ernesto de Carvalho
O dispositivo de inversão de ponto de vista em relação à opressão panóptica do Google é tão simples quanto impressionantemente eficiente. Apesar de ser um brilhante filme ensaio sobre a capitalização das imagens, o filme de Ernesto de Carvalho também é um generoso convite a ocupar as ferramentas digitais com a mesma irreverência vital que a gente ocupa os espaços públicos, pensando o cinema como um bem comum.
2. NoirBLUE – les déplacements d’une danse (2018), de Ana Pi
O filme da Ana Pi se compõe com a mesma profundidade e fineza que a sua pesquisa gestual original. A experiência subjetiva do seu duplo deslocamento, geográfico e coreográfico, se torna a ocasião de reescrever com tinta invisível (o famoso azul e a sua voz aérea) tanto a experiência imemorial da cor da pele entre a África e o Brasil quanto a historicização emancipada de um movimento interno, íntimo, que é também a remanescência secreta de toda uma comunidade viva.
3. Sete anos em maio (2019), de Affonso Uchôa
Com a intensidade narrativa de um encontro filmado por Coutinho e com a musicalidade discursiva digna de Huillet e Straub, Affonso Uchôa distingue-se tanto por potencializar a performatividade da fala dos seus protagonistas quanto por construir um lugar de escuta para o espectador. Estamos todxs em volta dessa fogueira, essa noite continua se estendendo fora da tela.
Menções (é muito difícil escolher. Teria gostado de fazer um Top20, frente à pluralidade tão estimulante das experimentações nos curtas brasileiros durante essa década):
4. Apiyemiyekî? (2019), de Ana Vaz: pela sua forma tão orgânica quanto complexa de tecer a história do povo Waimiri-Atroari entre os traços desenhados por eles e as paisagens silenciadas no presente.
5. Plano controle (2018), de Juliana Antunes: pelo seu modo alegre, livre, profanamente criativo de estar engajada nas imagens contemporâneas.
6. Filme dos outros (2015), de Lincoln Péricles: pela sua montagem delicadamente brutal na hora de desvelar o que é uma maquina de filmar, o que é a construção perceptiva de uma classe social.
7. Swinguerra (2019), de Benjamin De Burca e Bárbara Wagner: pelo seu vigor e pelo seu humor na hora de compartilhar a mise-en-scène com protagonistas explosivos.
Cleber Eduardo, curador (DOCSP)
Filmes: A morte branca do feiticeiro negro, Chico e Bicicletas de Nhanderú
Menções: Noir Blue e Ruim é ter que Trabalhar
Daniel Nolasco, cineasta
– Latifúndio – Érica Sarmet
A pele é o maior órgão humano e nosso primeiro elo físico de contato com o mundo. Um filme sobre as possibilidades eróticas, sensíveis e interpretativas do nosso corpo.
– O Mistério da Carne – Rafaela Camelo
Atmosférico, sensual e com a melhor cena de podolatria que já vi no cinema brasileiro. Um filme que infelizmente não fez o sucesso que merecia dentro do Brasil.
– Virgindade – Chico Lacerda
Que gay nunca passou por uma determinada rua e não lembrou de alguma experiência sexual rápida e descompromissada vivida ali. Uma carta testemunho da descoberta das delícias e (des)encontros do mundo da pegação.
Diego Benevides, crítico e pesquisador
A OUTRA MARGEM (2015), dir. Nathália Tereza
Nunca foi tão bonito ver a solidão e a paixão dividindo o mesmo espaço no cinema brasileiro. Nathália Tereza organiza um encontro de amores, sensibilidades e canções que nos atravessa profundamente e nos faz acreditar que amar é sempre uma possibilidade.
ESTADO ITINERANTE (2016), dir. Ana Carolina Soares
O corpo feminino como obra de resistência em um mundo patriarcal e violento. Um grito de liberdade cantado e dançado porque sempre existirá um paraíso acima de nós e todo pranto lavará a nossa alma. A luta de uma mulher em busca da permanência de si.
O DUPLO (2012), dir. Juliana Rojas
O bem e o mal que habitam em nós ganham vida pelas mãos de Juliana Rojas, que se apropria dos códigos clássicos do cinema de horror para criar o seu aterrorizante conto sobre vida e morte e refletir sobre os medos, intolerâncias e estranhamentos do mundo.
Érica Sarmet, roteirista, realizadora e doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais (ECA-USP)
Entendo o conceito de “incontornável” como aquilo do qual não há volta, portanto, filmes que tenham causado transformações profundas no cinema brasileiro, que abalaram as posições de poder do campo (seus modos de distribuição e produção), sua estrutura interna (temas, personagens, encenações, linguagem) e no modo de ver e agir no mundo por parte de seus agentes.
Só vejo um curta-metragem que tenha tremido o chão do nosso cinema dessa forma: Kbela (2015), de Yasmin Thayná. Deu a volta no modo de distribuição tradicional que um curta deve percorrer, ao estrear com três sessões lotadas no Odeon e só depois seguir para o circuito de festivais; apesar de outras diretoras negras terem trabalhos prévios com temáticas transversais de racialidade e gênero, é Kbela que catapulta a potência da produção de mulheres negras, transmutando debates e levando a uma reflexão profunda sobre o perfil de realizadores e filmes tanto nas mostras e festivais como nas equipes, uma fricção profunda à hegemonia dos olhos e ouvidos brancos – sendo um dos exemplos mais notórios a carta escrita por Thayná para a Semana de Cinema, à época Semana dos Realizadores, e todas as mudanças que se sucederam na mostra desde então. É também a partir de Kbela que se fortalece uma onda de filmes de realizadores negros e periféricos que encenam o corpo como lugar de performance, memória, ancestralidade, gestos que encruzilham passado, presente e futuro e que seguem firmes como tendência no cinema contemporâneo. Em suma, um curta que convocou mudanças em festivais, equipes e nos modos de fazer e pensar cinema no país, do qual não há possibilidade de retorno, só novos giros.
Fabio Andrade, crítico de cinema e artista (fabioandrade.me)
Três curtas e médias 2010-2020, sem ordem de preferência:
Fantasmas (2010), André Novais de Oliveira
Sem Título #1: Dance of Leitfosil (2014), Carlos Adriano
Ava Yvy Vera – A Terra do Povo do Raio (2016), Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonaton Gomes, Edina Ximenes, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites
Há muito a se dizer sobre esses três extraordinários filmes individualmente, mas aproveito a montagem solicitada pela lista para pensar o que eles revelam em conjunto, e como isso expressa algumas das qualidades mais singulares e especiais da produção brasileira neste período.
Nos três filmes há um desvelamento radical do antecampo: a presença de quem está atrás da câmera é afirmada na contundência de sua invisibilidade, seja pela narração in situ que reconfigura o espaço cênico em Fantasmas e Ava Yvy Vera – ponte levadiça entre My Hustler e Deise do tombo, reforçando a antiga percepção contracultural de que a experiência cotidiana brasileira é uma forma de vanguarda – ou pelo embaralhamento da enunciação no filme de Carlos Adriano (e de George Stevens, de Ginger Rogers, de Fred Astaire, de Ana Moura – mas, sobretudo, de Bernardo Vorobow): amar é querer ser – e não ter – um pouco do outro.
Essa operação, no entanto, se torna radicalmente política nos três filmes justamente em seu endereçamento. Fantasmas, Sem Título #1: Dance of Leitfosil, e Ava Yvy Vera – A Terra do Povo do Raio chegam feito ecos de não-lugares diversos que questionam o estranho calvinismo tão comum ao espectador brasileiro que vê filmes brasileiros (e somente os brasileiros) de seu mais alto espírito fiscal: cadê o trabalho? E isso lá é um filme? Cadê a equipe? Onde estão os recibos?
É bonito que algumas das expressões mais tocantes que surgem da experiência disforme do necro-liberalismo meritocrático que marca a vida brasileira nesse período sejam filmes – especialmente filmes que não são de longa-metragem, e que têm um horizonte de circulação já ontologicamente adverso – que ao mesmo tempo desautorizam e reafirmam as formas cinematográficas como formas de vida e de morte. São filmes que existem na contramão da lógica do trabalho, e que afirmam o cinema no subdesenvolvimento como prática diária de reencarnação.
Fabio Rodrigo, cineasta
LÚCIDA (2015) – Dir. Fabio Rodrigo e Caroline Neves
O filme marca uma virada de chave no cinema nacional junto com Fantasmas de André Novais, leva o cinema feito por realizadores de regiões periféricas do país a um novo nível estético com um cuidado formal surpreendente.
Não só pelo reconhecimento dos festivais de cinema, mas por abrir uma possibilidade nova na realização desses filmes, para além da precariedade dos meios de produção. E por usar suas limitações como potência criativa na arte cinematográfica.
FANTASMAS (2010) – Dir. André Novais de Oliveira
Por levantar uma grande possibilidades de sua interpretações, economia de recursos, metalinguagem, uso de linguagem e aspectos culturais de uma região em específico e abrir possibilidades de inovação a partir do mínimo.
ALMA BANDIDA (2018) – Dir. Marco Antonio Pereira
Por colocar Cordisburgo no grande jogo, pela inteligência na mise-en-scene e aliar drama e humor através de simbolismos de alta profundidade e por tocar a fundo a alma de adolescentes de todas as periferias do mundo, falando de suas dificuldades e sonhos simples, esse filme mostra que não há retorno. O futuro do cinema do país está em lugares sempre ignorados pela nossa “indústria”.
Felipe André Silva, cineasta, crítico (Revista Cinética) e curador (Janela Internacional de Cinema do Recife/Mostra de Tiradentes)
Incontornável muito provavelmente diz respeito àquilo que é impossível de ser ignorado, que marca e propaga tão profundamente que se torna algo como uma norma, um norte. Queria aproveitar o gesto dessa lista para falar na verdade de três filmes incontornáveis que foram absolutamente contornados pelas cabeças que pensam e disseminam o nosso cinema. O primeiro deles é Dia Branco, de Thiago Ricarte. Uma das coisas mais belas e delicadas que essa nossa produção recente rendeu, e talvez por ser tão singelo, quase como um sopro, uma pincelada, uma olhadela nas suas crianças protagonistas, o filme não arranjou um público que lhe olhasse com carinho. Mais ou menos a mesma coisa que acontece com Como são cruéis os pássaros da alvorada, de João Toledo. Não sei se a total falta de feedback a este filme foi relevante para o sumiço de uma mente tão linda como a do João do mapa do nosso cinema, mas é fato que havia ali um meio de campo entre um cinema delineadamente maneirista, que ferveu com vigor nos anos 2010, e um cinema de “festival”, mais narrativo e realista, que se tornaria o padrão nos anos vindouros, e isso é tão fascinante quanto soa. Gosto de alinhá-lo com filmes como Os Mortos-Vivos, da Anita Rocha, ou Takotsubo, do Nicolas Thomé Zetune, numa tríade de visões da juventude, que talvez pela sua frontalidade e honestidade para com o tema/personagens, não tenha sido tão levado a sério. Talvez um pouco o que ocorra também com Coração Migrante, de Roberto Cotta e Leonardo Amaral. Ainda que seja um filme extremamente recente e talvez tenha uma história mais feliz com o tempo, me parece que os atores do nosso cinema não estão prontos para recebê-lo. Não suporto futebol, mas por algum motivo a ideia de Brasil que a paixão por esse esporte comporta me emociona muito, e os diretores aqui amam muito o que fazem. Espero que pelo menos este não seja contornado.
Francis Vogner dos Reis, roteirista e curador (CineOP/Mostra de Tiradentes)
Três filmes que filmam o espaço de maneira inaudita, pois é no espaço onde testemunhamos por meio da intervenção da câmera uma experiência da complexidade do tempo no extracampo: a emanação do tempo passado no presente, o presente como caixa de ressonância dos fantasmas, dos mortos e dos deuses em uma articulação entre o visível e o invisível. Raramente nos últimos dez anos o cinema, essa invenção do século XIX, pareceu tão nova e ao mesmo tempo com a capacidade de conservar seu espanto original. Essa relação entre passado e presente, velho e novo, céu e terra, memória e contingência, esse diálogo dos vivos com os mortos, mais do que uma invenção da modernidade antiga, me parece uma arte nova e inexplorada. Paisagens raras no cinema, pois cada um desses filmes relacionam, no mínimo, duas paisagens: uma paisagem material e íntima (Uma rua de subúrbio em Contagem, becos do Capão Redondo, uma aldeia Mbya guarani no RS) e uma outra paisagem espectral. Elas podem até ser distintas, mas não se opõem e não separam.
Enquadro, de Lincoln Péricles
Bicicletas de Nhanderú, de Ariel Ortega e Patrícia Ferreira
Fantasmas, de André Novais
Francisco Carbone, crítico (Cenas de Cinema, Cineplayers)
* A Outra Margem, de Nathália Tereza
Talvez se enquadre nesse filme inúmeras provocações que perpassem meu gosto pessoal, minha percepção qualitativa enquanto crítico, minha procura instintiva cinéfila – aplacar a solidão, caminhar no íntimo não-dito, observar o interior geográfico, a música como vetor de investigação narrativa. A solitude que revela não apenas os personagens como o espaço.
* Fantasmas, de André Novais Oliveira
A forma e o conteúdo, em perfeita conexão. Como ampliar o mínimo em recursos em máximo de possibilidades, tanto emocional quanto narrativa. Espremer o aparente nada até dele revelar um manancial de recursos cinematográficos que leem o material imagético e sonoro dentro de muitas vertentes possíveis da realização, e da arte. Pessoalmente, como destrinchar de maneira gradual nossa empatia e nossas próprias experiências.
* Nova Dubai, de Gustavo Vinagre
O corpo e a cidade, em suas infinitas camadas de leituras. Prazer, empoderamento e liberdade de um lado; memória, ocupação e História de outro. Onde um termina e o outro começa? Interligando sexualidade plena, o conhecimento que se tem do próprio corpo enquanto espaço e o distanciamento da geografia que um dia foi sua, ninguém nessa década lidou com o sexo de maneira tão irrestrita como Vinagre.
Gabriel Araújo, crítico (Coletivo Zanza, Projeto Enquadro, Fale de Cinema)
Para mim, foi um exercício interessante voltar, nem que seja mentalmente, aos filmes que assisti nos últimos anos. Sou jovem, então também encontro nesse período diversas obras que são fundamentais para minha formação enquanto crítico, programador e espectador. Por isso, de largada, explico minha decisão política de escolher, nesta breve lista, curtas realizados por diretores e diretoras negras. Como a década que se passou foi decisiva para que diversas concepções de cinema contribuíssem para chacoalhar o que talvez estivesse estabelecido como a ideia do universal – pensando principalmente na presença e na agência de corpos negros, índigenas, de gêneros e orientações dissidentes, entre outras subjetividades – aposto nesse gesto não apenas como uma tentativa de valorizar essas obras que se impuseram ao cânone, mas como uma vontade de que elas continuem apontando outros caminhos nessa década porvir.
Sem mais delongas, aos filmes:
Quintal (2015), de André Novais Oliveira
Depois de assistir a essa maravilha inúmeras vezes, comecei a prestar atenção nas reações das pessoas que descobriam Quintal pela primeira vez. É emocionante ver como a galera se apropria e se relaciona com esse filme, tão nosso, tão mineiro, tão revolucionário. Para além de nos presentear com Norberto e Maria José Novais Oliveira, ícones acessíveis, Quintal consegue brincar com o gênero, com a surrealidade, a política e o academicismo, entre tantas outras possibilidades, sem perder de vista o cotidiano encantador (alô, Ozu) de duas pessoas negras idosas na periferia de Contagem. Por fim, convenhamos que é impossível falar desta década sem falar do que foi produzido e conquistado pela Filmes de Plástico. In Andrezera, Gabito, Maurílio e Thiago, we trust.
NoirBLUE – Deslocamentos de uma dança (2018), de Ana Pi
“É importante saber que o que eu tô vivendo agora é o futuro que alguém sonhou para mim”, diz Ana Pi em certo momento de NoirBLUE, esse filme que me ensinou e continua me ensinando tanto. A respeitar e a pedir a bênção aos que vieram antes de nós. A finalmente entender uma dimensão de tempo espiralar que já estava presente na obra de Leda Maria Martins, mas que Ana Pi materializou em sua dança e em sua fala calma, pausada, acalentadora. A pensar o futuro e a ter esperança com as possibilidades que ele reserva. Tudo isso interligadamente. NoirBLUE é uma experiência singular que, por compartilhar a intimidade de sua realizadora, encontra os meios de fazer com que uma viagem pessoal se torne, de certo modo, uma jornada coletiva.
República (2020), de Grace Passô
Por fim, destaco o grito que encerra República, curta de Grace Passô realizado e lançado durante a pandemia. “O seu Brasil acabou e o meu nunca existiu”. Talvez o sonho – e, no caso, o pesadelo – seja um dos poucos meios para que consigamos acessar o horror que é viver no Brasil da desigualdade, do desastre e da necropolítica. Infelizmente, ainda não acordamos. Com a proposta narrativa e estética ousada de Repúbica, Passô consegue questionar, de modo muito complexo, desgraças e privilégios num país em ruínas, construindo ficções em abismo e subvertendo realidades distintas. Talvez sejam esses alguns dos questionamentos que precisamos fazer para articular alianças e resistências vindouras.
Gabriel Carneiro, crítico, cineasta e pesquisador
Eclipse solar (2016), Rodrigo de Oliveira
As possibilidades que a cena e o quadro abrem para a narrativa ficcional.
Guida (2014), Rosana Urbes
A animação brasileira que se impõe: a delicadeza e a melancolia em formas rascunhadas.
Lembranças de Mayo (2015), Flávio C. Von Sperling
A revisão histórica do cinema brasileiro também pode ser terna.
filme bônus:
O duplo (2012), Juliana Rojas
O cinema fantástico que se assume sem medo: horror, sangue, entranhas e perturbação estética e narrativa.
Gabriel Martins, cineasta
Três escolhas que traduzem três pontos fortes dessa década para o cinema.
Fantasmas (2010) – O filme segue ainda hoje sendo exibido em sala de aula e isso por si só já diz de seu poder de resistência. “Fantasmas” aparece na transição da película para o digital no que diz respeito a valor de espaço em grandes festivais. A partir disso, um filme que nasce pequeno em forma e recursos mas se mantém gigante como resultado e de enorme influência para as novas gerações. O curta traduz também o espírito daquele momento a partir de novas tecnologias de câmeras portáteis e as potências a partir delas. André também reinventa a seu modo a ideia de filme dispositivo que naquele momento estava em forte discussão a partir de “Pacific” e outras obras. Muito do que há de mais forte no cinema do André está ali: a vontade de observar, as atuações naturalistas, o improviso, a periferia, o fracasso de um relacionamento.
Nova Dubai (2014) – Este média quase longa carrega em si o peso deste que talvez seja o grande tema da década: a especulação imobiliária. Aqui, ela toma contornos mais ousados com uma presença muito forte de Gustavo Vinagre, seu corpo e seus amigos. É um filme bastante década de 10 mas também com uma aproximação direta ao sexo que não encontra muitos paralelos nos seus contemporâneos. O filme parece estar sempre um passo adiante e também nasce de uma vontade explosiva de fazer cinema. Analisado minuciosamente talvez eu encontre vários gestos que não me agradem completamente mas se tem algo que este filme sem dúvida é, é incontornável.
NoirBLUE (2018) – Eu imagino que este filme possa aparecer com frequência na lista e torço muito por isso. Eu já era próximo de Ana Pi antes de ver o filme mas ainda assim me vi completamente embriagado pela experiência. É um filme incontornável pois ele talvez consiga encapsular na sua postura o que é o cinema brasileiro dos últimos anos com uma presença cada vez mais fortes de cineastas negrxs. No futuro se alguém me perguntar o que estava acontecendo em 2017/2018/2019 eu mostraria esse filme e ele diria muita coisa. Assim como os outros dois dessa lista, ele carrega em si algo de manifesto quando, na intenção, é “apenas” uma carta apaixonada. É forte também ver que um dos grandes filmes dos últimos tempos vem de alguém que não teve sua formação no cinema e inclusive se considera como alguém de fora – um aspecto que tem se tornado mais comum nos últimos tempos em curtas.
Glênis Cardoso, realizadora e crítica (Verberenas)
A questão das listas de final de ano e, no caso, do final da década, tem me inquietado nos últimos tempos. No email-convite para compartilhar quais seriam meus três curtas brasileiros incontornáveis, essa é uma das perguntas: Por que incontornáveis? Me preocupa acrescentar a um discurso em que coloca determinados filmes como essenciais e imperdíveis, que constroem novos cânones que invariavelmente vão deixar certas coisas de fora por inúmeras razões. Pensei muito, desde receber o convite do Adriano, sobre o que seria incontornável e cheguei à conclusão que os curtas incontornáveis são aqueles que me afetaram de forma irrevogável, que mudaram a minha forma de pensar, de ver o mundo e de entender o cinema e o país, mas que não necessariamente fizeram o mesmo para com o Cinema Brasileiro como um todo. É possível falar de curtas que mudaram a cultura e o Cinema quando a maioria deles nem chega ao grande público? Uma questão que me volta com frequência. Assim, cheguei aos meus três curtas incontornáveis dos anos 10:
Fantasmas (dir. André Novais, 2010)
Fantasmas, de André Novais, é um filme que estreia a década já se utilizando de uma estética totalmente digital. Ao longo dos 11 minutos de filme, há apenas um plano: um posto de gasolina. Enquanto observamos o posto em que nada em especial acontece, ouvimos dois amigos conversando sobre assuntos corriqueiros. Apesar da simplicidade da proposta do filme, André Novais surpreende e captura a imaginação através do banal. Trata-se de um curta que em seus poucos recursos técnicos e justamente pela utilização de escassos recursos materiais, me maravilha lembrando de toda a potência do cinema.
A outra margem (dir. Nathália Tereza, 2015)
A outra margem, de Nathália Tereza, é um filme em que ainda penso com frequência por diversos motivos, mas é na sua investigação de uma masculinidade do centro-oeste brasileiro que ele me captura. A visão do agroboy que se desloca pela noite, atravessando os cenários áridos da cidade dirigindo e bebendo cerveja enquanto escuta mensagens de amor e canções românticas na rádio local é uma imagem que fica comigo.
República (dir. Grace Passô, 2020)
República, de Grace Passô, me atravessou como um choque. “O Brasil é um sonho”. Nada mais que eu li, vi ou ouvi no último conseguiu expressar tão bem o sentimento de desespero, febre, delírio que é viver no Brasil em 2020. Grace Passô, para mim uma das maiores artistas brasileiras vivas neste momento, dirige um filme que olha para o outro, sem nunca deixar de olhar para si, profunda e apontadamente. Em determinado plano, ela olha para nós, espectadores, em um uso fantasmagórico da quebra da quarta parede que ainda vai me assombrar por muito tempo.
Ingá, crítica (Revista Cinética)
Noirblue (Ana Pi): Por tornar o documento da viagem, um experimento, dando conta de três atos fundamentais: esculpir a obra, intervir na rua e se coligar pela dança.
Para todas as moças (Castiel Vitorino): Pela operação de montagem entre quarto, mundo, letra e toque. Por lembrar que a cura arde.
Mulheres Sem Terra ocupam fazenda de João de “Deus” (Brigada Audiovisual Eduardo Coutinho): Pela lida com a música, ato, terra e memória.
Ivonete Pinto, crítica (Revista Teorema) e professora (UFPel)
1- Deus, de Vinícius Silva (2016)
O filme rompeu diversas barreiras, primeiro do próprio diretor, um jovem preto da periferia de São Paulo, que se graduou em cinema longe de sua cidade, em Pelotas (RS), que enfrentou dificuldades financeiras no percurso. Depois porque conseguiu ser selecionado, e premiado, em inúmeros festivais, no Brasil e no exterior. Conta a história de sua própria tia (Roseli da Silva) e seu sobrinho (Breno da Silva de Araujo) construindo um dispositivo do cinema direto, mas sem ficar preso a normas de captação de imagens. Ao mesmo tempo, é sofisticado na montagem e no som. O filme abriu caminho não só para ele, que continua filmando sem parar, mas é exemplo inspirador para vários jovens, mostrando que é possível fazer cinema e através dele transformar vidas.
2- O Duplo, de Juliana Rojas (2012). Nem é o filme mais incensado da diretora, mas ele condensa uma série de qualidades de seu cinema. Usa o fantástico para explorar a mente humana nos confins mais sombrios da psiquê, e nos faz lembrar de vários duplos do cinema e da literatura. Ou seja, eleva o curta-metragem a uma condição que raramente alcança.
3 – Vaga carne, de Grace Passô e Ricardo Alves Júnior (2019). Em menos de 60 minutos a personagem vivida por Grace Passô vai de um lado a outro do planeta, atravessando séculos de história, sem sair do corpo de uma mulher. O “Corpo” é um personagem e a “Voz” é outro, embora às vezes se encontrem. Passô é uma das melhores atrizes atuais. Ela tem um magnetismo poderosos que nos faz olhar para ela em cena, não importa o que aconteça no quadro. Uma atriz do quilate de uma Fernanda Montenegro. O Brasil vai ainda ouvir falar muito dela.
João Paulo Campos, crítico, pesquisador e curador de cinema
Mestre e doutorando em Antropologia Social na FFLCH-USP. Pesquisador associado ao Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (NAPEDRA-USP). Co-editor da Zagaia em Revista e programador do cinecubo IAB-SP.
Fantasmas (André Novais de Oliveira, 2010)
Fantasmas dialogam na noite escura – conversa e observação obsessiva.
O que há em ti (Carlos Adriano. 2020)
Arqueologia de um gesto disruptivo.
Sete anos em maio (Affonso Uchôa, 2019)
Plano e contra-plano instaura uma comunidade entre a história de Rafael e seu interlocutor sob as chamas crepitantes da fogueira na noite do Brasil contemporâneo. A violência do Estado policial encontra um jovem que se recusa a morrer.
Jocimar Dias Jr., crítico (Moventes), pesquisador e doutorando do PPGCine-UFF
1. Alguém fez uma postagem no Facebook recomendando assistir um curta fofo de temática gay que tinha acabado de ser disponibilizado no Youtube. Eu cliquei no link imediatamente. Minha experiência espectatorial com Eu não quero voltar sozinho (Daniel Ribeiro, 2010) foi pela tela do computador, já em 2011, e não durante sua bem-sucedida carreira pelos festivais nacionais desde o ano anterior. Já existiam personagens LGBT+ em idade escolar em séries estadunidenses como Glee, mas numa obra audiovisual brasileira era novidade para mim. Eu me apaixonei completamente pela doçura daquele primeiro amor entre um rapaz cego e seu novo melhor amigo de escola. Em 2014, Ribeiro dirige o mesmo elenco no longa derivado do curta, Hoje eu quero voltar sozinho, que seria o grande vencedor do Prêmio Teddy no Festival de Berlim, um dos prêmios mais importantes para filmes de temática LGBT+ no mundo. Para além de uma relação afetiva com o curta, Eu não quero voltar sozinho me parece um desses filmes incontornáveis, mesmo que dentro de certos parâmetros do clássico narrativo: um cinema queer que, independente da possível alcunha de “assimilacionista”, desempenhou papel fundamental na sedimentação da presença de personagens LGBT+no panorama mais geral do audiovisual nacional.
2. Festival de Brasília, 2015. De um lado, o público que aplaude de pé o discurso de apresentação de Rodrigo Carneiro denunciando a homo-lesbo-transfobia da sociedade antes da exibição de seu curta, Copyleft. De outro, parte da crítica que, acostumada com os LGBTs dóceis de Eu não quero voltar sozinho e afins, buscou desqualificar o próprio status do filme enquanto filme (o monossilábico “Não, né?” de Cid Nader no seu site, Cinequanon) ou taxá-lo como “política do grito” que pretendia “vencer o debate falando mais alto que seu interlocutor” (nas palavras de Bruno Carmelo no AdoroCinema). Não surpreende que o filme-manifesto-contrassexual de Carneiro, embedido com as palavras do Testo Junkie de Preciado, tenha causado esse tipo de reação. Assistir Copyleft ainda hoje é uma experiência estranha. Sua abertura com corpos cisgêneros e transgêneros nus como se fossem manequins de plástico. A personagem utilizando desesperadamente um gel de testosterona na busca por uma masculinidade inalcançável. A “vagina dentada” com múltiplos membros e falos, em computação gráfica, que surge do nada para palestrar contra a ecologia política de reprodução binária colonial. A derradeira visita ao túmulo de Herculine e a canção da “entidade queer” Elke Maravilha conclamando pelo desnudamento e não-conformação da protagonista aos padrões de gênero. Copyleft, com todas as suas limitações e academicismos, seria incontornável não só por ter escancarado certa inabilidade da crítica em lidar com um filme queer não dócil que ela estava predisposta a rechaçar, mas também como ensaio para a radicalidade que Carneiro continuaria explorando posteriormente – não é possível pensar a centralidade do cu no longa A Rosa Azul de Novalis (2019), que dirigiu em parceira com Gustavo Vinagre, sem rememorar Copyleft.
3. Preciso Dizer Que Te Amo (2018) já seria incontornável se fosse apenas um manifesto contra o suicídio e pela vida dos homens trans, pautando também a autoralidade e empregabilidade de pessoas trans no audiovisual. Mas o primeiro curta de Ariel Nobre é muito mais que isso. Ele é o avesso da sequência da igreja alienada ao som de “The Sound of Silence” de Simon & Garfunkel em Brasil S/A (Marcelo Pedroso, 2014), algo de que precisávamos desesperadamente. Através da ressurreição de Cristo no seu próprio corpo, Ariel Nobre nos dá pistas, tal qual um verdadeiro profeta, de como reativar o caráter revolucionário do Novo Testamento em corpos dissidentes e rechaçados pelos vendilhões do templo. Preciso Dizer Que Te Amo é teologia trans/queer na prática, em formato de filme experimental e ensaístico. Para além de sua preocupação social mais imediata, o curta se lança ainda a uma outra tarefa: via um transcristianismo ecumênico, antirracista e de diálogo interreligioso, des-sequestrar Cristo dos fundamentalistas religiosos que hoje governam o Brasil. Não é pouca coisa. Em outras palavras, incontornável.
Juliana Costa, crítica e pesquisadora (Cineclube Academia das Musas, Oásis e Cine Festivais)
Contagem (2010), de Gabriel Martins e Maurílio Martins
Kbela (2015), de Yasmin Thayná
República (2020), de Grace Passô
A década de 2010 do cinema brasileiro é sem dúvida a década do cinema negro. Reluto em usar o termo que já parece anacrônico pela generalização com que trata a diversidade de filmes produzidos por uma diversidade de sujeitos de experiências e contextos singulares, mas a utilizo por sua relevância política. Sem pensar muito, ao listarmos os melhores filmes produzidos nos últimos dez anos, quase todos são realizados por cineastas negros, e os que não são, dialogam estéticamente e em modos de produção com estes. Apesar da obviedade, precisamos ainda enfatizar aos desavisados ou mal intencionados: a vanguarda do curta-metragem brasileiro hoje é negra.
Os três filmes incontornáveis que escolhi apontam para a diversidade estética deste cinema e, de forma não intencional, foram lançados exatamente no início, na metade e no final da década: Contagem (2010), de Gabriel Martins e Maurílio Martins, Kbela (2015), de Yasmin Thayná e República (2020), de Grace Passô. Contagem antecipa a vibração do cinema que a produtora Filmes de Plástico vai produzir ao longo da década. Um cinema jovem, fresco, agitado, bem humorado, sem medo da emoção, que reinventa a periferia por meio de um olhar lúdico e cinéfilo. Já Kbela, é o cinema experimental performático tão caro ao cinema político dos anos 1960 e 1970, que retoma de alguma forma a linhagem de Alma no Olho (1974), de Zózimo Bulbul. A força e contundência das imagens, dos corpos e do som deste filme é um acontecimento na produção contemporânea de curtas-metragens e por sorte espalhou filhos por ai.
Os anos 2010 encerram com o Brasil enfrentando uma pandemia mundial sob o comando difuso e abstrato do pior da política e do empresariado nacional e estrangeiro, que alia mercado financeiro, latifundiários históricos, lideranças evangélicas mercenárias, milícia organizada, entre outras aberrações sociais. É Grace Passô que faz a melhor leitura da situação em República. “O seu Brasil acabou, o meu nunca começou”, diz o duplo da personagem que desperta dentro de um pesadelo. Entre metalinguagem e espiral onírica, Passô catalisa o horror político e o horror do isolamento social do fatídico ano que vai demorar para terminar.
Tão incontornável quanto estes três filmes, é terminar as listas com os filmes que não entraram nela. Impossível falar dos curtas-metragens da década sem mencionar Fabio Rodrigo, Nathália Tereza, Nara Normande, André Novais, Lincoln Péricles. Mas certamente eles estarão em outras listas e esperamos sobretudo encontrá-los nas listas de incontornáveis de 2021.
Juliano Gomes, crítico e pesquisador (Revista Cinética)
Fantasmas (André Novais Oliveira)
Pra mim, é o grande filme brasileiro da década em qualquer duração. Ele é uma obra do século XIX, plano único, em grande parte fixo, na tradição dos Lumiére. O que o faz próximo do trabalho de um Kiarostami – referência forte pro trabalho do André, cuja face mais visível é a impressão de realidade que esconde um trabalho de dramaturgia sofisticado. É intensa e obviamente ligado a seu território e , ao mesmo tempo, o que vemos é um não território, em termos de visibilidade: é noite, posto de gasolina, aquela geografia da urbanidade média brasileira. Ele trabalha no que chamaria de dramaturgia do registro ou estatuto: a narrativa ao invés de só produzir “viradas” de enredo, ela produz virada de estatuto, isto é, a ideia “do que você está vendo” vai mudando. É uma variação ontológica, na forma de ser, mais do que da história (ainda que haja curvas bem delineadas no nível do enredo). E essa variação gira entre o vídeo de flagra, a vista Lumiére, o cinema amador das redes, e a arte conceitual. É um dos filmes que consegue encruzilhar isso, é um dos poucos filmes “institucionalmente cinema” que “prevê” que o cinema popular de invenção desta década está na web. Fantasmas desde sempre já conversa com esse “cinema da rua” que explode posteriormente a ele. Por último, é notável a construção da oralidade abundante dos personagens ligada a sua ausência na imagem. Talvez o grande filme do que poderíamos chamar de cinema negro no Brasil não mostra corpos negros na imagem. Isso tem consequências lindamente radicais.
O redimunho ou É deus, mamãe
Também um filme de trabalho interno ao plano, feito por um só fluxo. Porém, dentro da torrente única de espaço-tempo, uma variedade de modos e tons se produz. O DNA do teatro de revista se casa com o imaginário do neopentecostalimo criando uma estranha gira que é bem mais do que um tesouro etnográfico do futuro, mas uma obra-prima da composição heterogênea. Uma estranha comédia metafísica cujas mudanças de rumo se mantém desconcertantes até o fim. Brasil do interior tornado mito contemporâneo, num filme de ninguém.
República (Grace Passô e Wilssa Esser)
Como os outros dois, é um filme onde a situação de quem faz a tomada, a mediação, age crucialmente no que o trabalho narra. O filme pandêmico de Grace Passô e Wilsa Esser é uma espécie de Fantasmas às avessas, dez anos depois. (poderíamos também chamá-lo de “É sonho, mamãe”). No sentido da aliança implosiva entre estrutura de enredo afiada (com abertura, transformação e desenlace) e variação de registro/universo do filme. História, procedimento e conceito se tornam um mesmo problema. O cinema de Novais e de Passô necessariamente caminha para indeterminação, ambos tem uma qualidade serenamente abismática. República metaendereça, evidentemente, o problema da coletividade: como ser dois? O que duas podem fazer? Como trabalhar diante da violência inerente da face irreconciliada – que teima em se reinscrever? O próprio filme responde a pergunta através de sua carne heterogênea, simétrica e aberrante. É um statement sobre a não-individualidade fundante (“fazer público novamente” como falou o Fábio): entre seres, entre gêneros, entre tipos de cinema, entre amador e profissional… Pois é importante a diferença entre a janela e a porta.
Karen Black, cineasta e curadora
Charizard, de Leonardo Mouramateus
Vi esse filme num festival universitário, na época concedíamos o prêmio Cachaça Cinema Clube aos curtas que gostávamos. Foi um ano muito de uma safra muito homogênea, nada empolgava muito, nada chamava atenção. Charizard acho que estava na última sessão. Fui imediatamente arrebatada. Não me lembrava de antes ter visto qualquer curta onde os corpos e a dança tivessem tanta força dramática, que a música e o movimento levasse a história adiante. Senti que ali tinha um caminho artístico e uma pesquisa muito sólida, o que foi confirmado depois com a trajetória dos filmes do Leo.
O duplo, de Juliana Rojas
Na época, me parece que os filmes eram mais curtos em geral, e os 26 minutos de duração a princípio me indicavam que não seria um filme fácil. Me enganei. Rigor estético, domínio da linguagem, direção de atores, arte, conceituação da fotografia, tudo perfeito. Um filme que me parece um clássico, um baluarte do cinema de curta metragem. Ou melhor, uma obra de uma cineasta plenamente consciente das possibilidades do cinema e que as usa sem uma arrogância, como explicar isso? A Juliana usa a sua competência de forma não vaidosa, mas pra construir e contar uma história.
Travessia, de Safira Moreira
Uma preciosidade, um dos filmes mais bonitos e simples e poderosos dos últimos tempos. Como é tão curto, 5 minutinhos tão bem usados, a potência dele é do tipo concentrada. Safira fala de ancestralidade, invisibilidade e representatividade, temas incontornáveis, pra usar o conceito que norteia essa pesquisa, de uma forma tão generosa, como uma partilha da sensibilidade dela com o espectador. Foi bonito ver o filme em tantos lugares do mundo, ele ainda será muito estudado e apreciado porque trabalho inaugural de uma cineasta muito talentosa.
Leonardo Bomfim, crítico, programador e curador (Cinemateca Capitólio)
Lúcida (Caroline Neves e Fabio Rodrigo)
Tive a sorte de ver esse filme, no susto, sem saber do que se tratava, numa noite de sábado no meio do Festival de Gramado. Não lembro o que veio depois naquela noite (poderia exagerar um pouquinho e dizer “não lembro o que veio depois naquele festival” e isso não seria de fato um exagero). Acredito que os filmes incontornáveis são capazes de mobilizar esse tipo de experiência numa sala de cinema. E ele segue incontornável, depois de muitas revisões, especialmente porque tem a grande cena e o trabalho de encenação mais singular da década: a conversa do casal diante do espelho.
Nada (Gabriel Martins)
A Filmes de Plástico é o acontecimento incontornável dos anos 2010.
Há outros filmes produzidos por eles que poderiam estar aqui (Fantasmas, Quintal, Contagem…), mas escolho Nada porque é uma obra que captura um instantâneo com muitas complexidades e contradições da década no Brasil, e que só poderia ter sido realizado nesse momento histórico.
Morador do Leblon hostiliza manifestante durante rolezinho (anônimo)
Leblon, Batman, PT, Copa do Mundo, FIFA, Dilma, direita, esquerda, fascismo, invasão comunista, rolezinho, “super tupã”, homofobia, repórter francês perdidaço, “cineasta que ganha bem pra caralho”… tudo ao mesmo tempo e em um único plano-sequência. Tudo nesse filme é incontornável.
Lincoln Péricles, cineasta
– Fantasmas
– Aluguel: O Filme
– Kbela
Desses filme pra frente não venham com essa história de cinema brasileiro feito por quem é do time dos que perpetua opressão, como algo “essencial” ou “necessário” pra entender a história desse país que chamam de Brasil.
Lorenna Rocha, crítica (Sessão Aberta)
1. Experimentando o vermelho em dilúvio – Musa Michelle Mattiuzzi
Acho que a discussão sobre violência e imagens de violência estão pulsando bastante. Acredito que o gesto de violência nesse curtametragem é menos de reiteração e mais de uma energia de violência que nos lembra algo fanoniano, uma redistribuição de violência. A ferida colonial aberta e exposta. Uma violência controlada no ambiente da performance. Isso tem me interessado.
2. Para todas as moças – Castiel Vitorino Brasileiro
É incontornável. Ponto.
3. República – Grace Passô
Acho que muitas pessoas vão falar desse filme e talvez todas as escolhas até aqui soem meio óbvias. Mas, esse filme é um daqueles que você assiste e reassiste e, descobrir mais coisas, você sabe menos dele. E ele marca esse período de 2020. Esse Brasil. Num gesto simples, mas que reencena e atualiza discussões que unem e desdobram uma série de temporalidades.
Luiz Joaquim, crítico (CinemaEscrito)
Fantasmas (2010), André Novais Oliveira
A compreensão, nesse filme, do quão impactante pode ser uma imagem banal coberta por um bom texto (ou vice-versa) acenava para aquilo que viria a ser o cinema de André Novais Oliveira com a sua turma no Filmes de Plástico. Um cinema no qual a transparência dos sentimentos de seus personagens se coloca acima de qualquer coisa. Um cinema que está interessado no amor e em como os amigos são parte integrante do amor. Fantasma é um thriller de um único plano de dez minutos em que o algoz da trama está construído apenas nossa cabeça, não numa imagem definida, mas por sugestões da voz em off dos protagonistas. Não é todo bom cinema que consegue nos seduzir tão facilmente e de maneira tão competente. Fantasmas é assustadoramente envolvente na sua simplicidade e honestidade. É cinema de primeira grandeza.
Vó Maria (2011), Tomás von der Osten
Uma combinação hipnótica de construção de identidade pela administração cuidadosa entre imagem e som. O que é o cinema senão essa descrição? O tocante caleidoscópio visual e afetivo a partir das lembranças (narradas em off) da neta, bisneta e tataraneta da tal Vó Maria do título foi um trunfo no início da carreira do jovem Tomas Von der Osten. O realizador aqui montou, aos poucos e pelos pedaços de uma única pintura do rosto de Maria, como teria sido a personalidade daquela pessoa que viveu no século 19. Por essas sutilezas, o curta sugestiona ao espectador a noção de hereditariedade e perpetuação, mas, principalmente, a de imortalidade. Afinal esta parece ser a real e mais autêntica forma de podermos dizer que continuamos vivos e ressuscitados: pela memória afetiva de nossos filhos.
Menino do Cinco (2012), Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira
Um belo roteiro que resultou num belo filme realizado. Se houvesse uma boa equivalência em curta-metragem para O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho (exibido no Brasil também em 2012) ela não seria Eletrodoméstica (2005), mas sim Menino do cinco. Com um fio de enredo simples, temos Ricardo, garoto de classe média que vive por trás das grades de suposta segurança de seu prédio residencial, em confronto com um garoto pobre, da rua – negro e sem nome (sem nome!) – com ambos desejando o carinho de um cachorrinho de estimação. Nessa disputa, Menino do cinco esgarça e resumo com elegância cinematográfica muitos traços cruéis da desigualdade na sociedade brasileira desta década.
Marcelo Ikeda, crítico e pesquisador (Cinecasulofilia)
Já visto jamais visto (2013), de Andrea Tonacci
O testamento e o testemunho de um grande artista em sua máxima expressão. A vida como um processo necessariamente incompleto, cheia de ranhuras e imperfeições. A memória como uma ilha de edição. Recordar como projeto de futuro. Preservar e libertar-se. Filmar é viver, viver e filmar: o cinema como um modo de ser. A vida é um motor ininterrupto de fluxos, sentimentos, imagens e sensações. Um filme sobre um pai que busca abraçar um filho que lhe escapa para viver sua própria vida. Um filme de Andrea Tonacci.
Pouco mais de um mês (2013), de André Novais Oliveira
O cinema afetivo e caseiro, em sua máxima expressão. A simbiose entre o real e o encenado. O maravilhoso efeito de câmara escura. Os abismos dessa enorme dificuldade de dizer o que se sente para o outro. A intimidade como meio ético de dar a ver outros modos de ser. Poucos filmes colocaram de forma tão delicada e precisa os desafios da “virada afetiva” dos anos 2010, na relação entre criação e vida.
Permanências (2010), de Ricardo Alves Jr.
O que pode um rosto? Uma aposta radical na ideia da duração. Um filme é não só aquilo que se revela mas sobretudo o que se esconde. Um filme materialista sobre o movimento intangível do espírito.
* Duro ter que escolher apenas três obras. Gostaria de destacar três menções honrosas:
E (2014), de Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti, Miguel Antunes Ramos
A onda, traz o vento leva (2012), de Gabriel Mascaro
Europa (2011), de Leonardo Mouramateus
Marco Antônio Pereira, cineasta
Command Action _ João Paulo Miranda Maria
Linguagem estranha, revelando um cineasta controverso e fora do eixo na Semana da Crítica. Esse filme vem do interior, cidade de Rio Claro. Apresentou um Diretor que decolou lá fora, mas que foi muito ignorado aqui no Brasil. E na medida que ela lançou outros filmes ele foi ficando mais conhecido fora e negado aqui. Até culminar em Casa de Antiguidades. Comand Action é um filme maravilhoso que eu gosto demais.
Anderson – Rodrigo Meirelles
Filme emocionante e simples, minimalista. Circulou e ganhou prêmios em festivais importantes fora do país, incluindo Telluride
Eu quero destacar essa obra.
A retirada para um coração bruto _ Marco Antonio Pereira
É feio denotar um filme meu né. mas… Não é pq eu fiz esse filme mas ele é muito legal. Um filme meio subestimado, preterido por vários outros em premiações e que se não fosse Tiradentes, esse filme nem seria notado.
Muitos filmes que ganharam premios em cima do Retirada nunca mais foram falados, enquanto esse, toda semana alguém fala alguma coisa. Já tem dois trabalhos de mestrados baseados nele.
Lançamos na internet e deu quase 12 mil visualizações em um dia. Tem alguma potência nesse filme tosco que talvez seja lembrado daqui um tempo.
Maria Clara Escobar, cineasta
República – Grace Passô (2020)
A Morte Branca do Feiticeiro Negro – Rodrigo Ribeiro (2020)
Santos Dumont: Pré-Cineasta – Carlos Adriano (2010)
Pensei na palavra incontornável em dois de seus sentidos: o de que não se pode dar volta atrás, e o que não é passível de contorno. Talvez por isso tenha escolhido, em três, dois filmes mais recentes. Pois, acredito, com o tempo, de uma forma ou de outra, encontramos forma de intimidade para circular os filmes. Para mim, todo o trabalho da artista Grace Passô é incontornável. Em República, nos leva a um abismo: como tratar do Brasil após esse filme?Carlos Adriano vem redefinindo os contornos e os não contornos, e nesse filme, os deixa mais claros do que nunca, e Rodrigo Ribeiro talvez seja o novo incontornável, aquele que redefine as linhas.
Mariana Souto, diretora de arte, pesquisadora e professora (UnB)
– Fantasmas (André Novais)
Um curta que demarca um novo paradigma, que reinventa a linguagem do curta-metragem, que mobiliza as possibilidades do vídeo e do digital (e da câmera de vigilância, de certa maneira) a partir de uma premissa simples, mas de reflexão complexa. Diversos elementos se destacam: há várias temporalidades nesse curta, há uma espécie de reviravolta mas que foge aos clichês do plot twist, há uma comunicação afetuosa entre os amigos, uma construção de diálogo prosaica e ao mesmo tempo divertida. Tudo se passa no fora de campo, sem que vejamos os personagens, mas ainda assim se constitui uma identificação com eles. Na sua curta duração e no seu único plano, trata da força da imagem no mundo contemporâneo e também da construção da memória e do esquecimento por meio da imagem.
– Nunca é noite no mapa (Ernesto de Carvalho)
Uma mobilização inventiva das imagens digitais, especialmente do Google, uma montagem ritmada, um texto poético e certeiro. Uma navegação por essas imagens de arquivo contemporâneas e ao mesmo tempo um discurso crítico sobre um estado de coisas. O filme de Ernesto de Carvalho comenta, por um lado, o universo do urbano, as desapropriações, as dinâmicas de exclusão da cidade, as cisões raciais e, por outro, o panorama da imagem no mundo atual, a onipresença das câmeras, a vigilância e a impessoalidade dos mapas que estão longe de serem neutros.
– Noirblue (Ana Pi)
Um ensaio fílmico com as cadências do afeto, ao mesmo tempo a escrita de si e de um país. A equipe de uma pessoa só, a partir de um olhar muito singular, alcança um tema amplo como a diáspora africana. Ana Pi documenta sua jornada transatlântica com observação inquieta e sensível, inserindo a dança e a performance em sua visita a uma nova (e antiga) paisagem.
Pedro Maia de Brito, cineasta
inicialmente pensei numa abordagem um algo “historiográfica” e que portanto contemplasse a década como um todo, assim mencionaria também os filmes acercadacana (felipe peres calheiros, 2010) e as aventuras de paulo bruscky (gabriel mascaro, 2010). No entanto, julgando-me um tanto trapaceiro, afinal a lista deve ser tríplice, resolvi ficar apenas com os mencionados abaixo:
o filme dos outros, lincoln péricles (2015)
bom dia carlos, gurcius gewdner (2015)
ilhas de calor, ulisses arthur (2019)
penso que o filme de lincoln, em alguma medida (e na marra!), propõe uma inversão de perspectiva – o olhar e o como olhar. sua riqueza plástica e gestual, creio, aponta caminhos que se confirmariam, inclusive de forma institucional, na estrutura do cinema feito no brasil.
o de gurcius, por sua vez, radicaliza em mise-en-scene (afinal ela ainda existe e pulsa) materializando em imagem e som um sentimento generalizado que toma as pessoas que ainda têm estômago e vivem o estar e ser no brasil dos últimos anos.
já o de ulisses, por fim, cristaliza a possibilidade de outros/novos olhares com um desejo vivo de fazer cinema, construindo a partir de uma herança do moderno uma experiência contemporânea.
menções honrosas:
élégie à rimbaud, de leo pyrata (2010)
seu madruga will go on, do mestre 3224 (2011)
Pedro Tavares, crítico (Multiplot!) e curador (Ecrã)
Pensei em filmes que saem um pouco da ideia da narrativa clássica e que teoricamente ficam mais esquecidos.
NUNCA É NOITE NO MAPA (Ernesto de Carvalho)
É desktop movie, filme de arquivo, filme denúncia, filme político. De uma força descomunal.
SOLON (Clarissa Campolina)
Corpo, experimentação, gêneros. Um filme completo em poucos minutos.
FUSÃO DA LUA (Gabriel Papaléo)
É curioso que entre os diversos filmes estruturais da década, poucos tenham pensado o dispositivo de forma tão simplista e efetiva como neste filme.
Rafael Carvalho, crítico (A Tarde e Moviola Digital)
Fantasmas – A fantasmagoria dos relacionamentos amorosos, com as cicatrizes que estes nos deixam, refletida e transfigurada num jogo de cena dos mais enxutos e coesos, em caráter minimalista, com resultados impressionantes em termos de impacto emocional (uma super aula sobre o quê e como narrar). O cinema e sua capacidade de revelar (pelo poder deflagrador da imagem e do som) aquilo que buscamos encontrar, mas não queríamos ver.
Kbela – Todo um emaranhado de séculos de opressão em cima da mulher negra, significado aqui pela (auto)rejeição do seu cabelo crespo, ressignificado e retomado num filme que não precisa verbalizar ou esmiuçar preconceitos para colocar em evidência as violências, mas também os gestos de reconfiguração de um estereótipo cruel e deflagrador de muitas (outras) dores. No começo, vencer a dominação sobre a cabeça para, no final, libertar o corpo inteiro.
Mamata – Triste retrato de um Brasil em estado de derrota. Um país inteiro alquebrado, deprê, despejado na sarjeta, tentando recolher e juntar os restos que vem sendo (cada vez mais, initerruptamente, até os dias de hoje) sendo espalhados pelo chão, aos cacos. Toda uma sensação de impotência (apenas aparentemente individual) é condensada aqui através de um punhado de retalhos cômicos e icônicos de uma nação, a servir como síntese política dos últimos anos. Rir das desgraças, mas nunca fugir delas.
Rafael Urban, cineasta, professor (EICTV) e mestrando no PPG-CINEAV (Unespar)
Caixa D’Água: qui-lombo é esse? (2012, 15′)
Everlane Moraes
Na voz do músico Irmão (Wellington Santos), tio da realizadora, vemos uma sequência de retratos de mulheres e homens que encaram a câmera: são moradores da comunidade remanescente do quilombo da Maloca, em Aracaju, segundo quilombo urbano reconhecido do país, que aceitaram ser filmados pela diretora – entre eles seu pai, o artista plástico José Everton Santos. Vi essa sequência pela primeira vez antes mesmo de assistir ao curta completo, uma vez que ela estava incluída como parte do material didático do Inventar com a diferença: cinema e direitos humanos (um projeto de formação para alunos e professores de escolas públicas e realizado em todos os estados brasileiros – que também destacava filmes como Corumbiara e Ensaio de Cinema). Alunas e alunos das escolas públicas que conheci nesse projeto reconheciam nas imagens feitas por Moraes no bairro em que ela morou a possibilidade de registrar as suas próprias comunidades. Natural de Cachoeira, cidade no Recôncavo Baiano, Moraes recebeu em 2014 do CachoeiraDoc (festival localizado na cidade periférica que se tornou essencial para pensar o documentário e a política da representação na realização e curadoria) o prêmio de melhor curta para Caixa D’Água: qui-lombo é esse? No cinema e energia de Everlane Moraes guarda-se uma parte daquilo de mais bonito e necessário da produção da última década.
Na Missão, com Kadu (2016, 28′)
Kadu Freitas, Pedro Maia de Brito, Aiano Bemfica
O crítico português João Bénard da Costa, ao escrever em 2000 sobre No Quarto da Vanda, de Pedro Costa, disse: “Do quarto da Vanda não se sai mais”, para, em seguida, reaproveitar as palavras do próprio realizador ditas em outro contexto: “jamais poderemos deixar de ver”. Quando vemos Kadu clamar por justiça com tamanha verve e intenção (em registro feito direto à sua câmera do celular e reproduzido em Na Missão, com Kadu), reconhecemos a força dos corpos em luta e somos lançados ao engajamento. Uma cartela final informa: “Ricardo Freitas, o Kadu, foi assassinado em uma emboscada no mês de novembro de 2015, 4 meses após essas filmagens”. Retomando as palavras de Pedro Costa para associá-las às imagens de Kadu: “Não há remédio: não podemos deixar de ver”.
Vó Maria (2011, 6′)
Tomás von der Osten
Em Vó Maria, três gerações de mulheres na família do diretor (a sua avó, Avenir Batista Correia, a mãe, Sandra Mancino, a irmã, Marcela), encaram a imagem de sua trisavó, Maria. Das lembranças vívidas da convivência nas palavras da avó (neta de Maria) à imagem enquadrada na parede que sempre assustou sua irmã, Marcela, o filme é exemplar para pensar como o resultado final de um trabalho pode ser de execução técnica ao mesmo tempo simples (o diretor trabalhou com registro de depoimentos em áudio e recortes de uma única fotografia) e potente, desde que entendidas suas intenções.
Roberto Cotta, professor (UFPel), crítico e cineasta
Se me perguntassem quais eram os três curtas mais influentes da última década, certamente diria Fantasmas (André Novais Oliveira, 2010), Kbela (Yasmin Thayná, 2015) e NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2017). Porque é notória a ascensão de cineastas negras e negros de várias regiões do Brasil, e esses filmes talvez tenham sido a mola propulsora pra que o movimento se consolidasse.
Caso a pergunta se detivesse aos três filmes mais radicais, diria de supetão Cuauhtémoc (Leo Pyrata, 2012), Mundo incrível REMIX (Gabriel Martins, 2014) e Filme dos outros (Lincoln Péricles, 2015). Nada define tão bem nossos tempos como a experimentação digital que chuta o balde e reinventa a órbita do planeta. Afinal, é nos filmes de curta duração que o legado de Jairo Ferreira se faz cada vez mais presente.
Se o tema dissesse respeito às obras preferidas, seria obrigado a mencionar Élégie a Rimbaud (Leo Pyrata, 2011), Dia branco (Thiago Ricarte, 2014) e Alma bandida (Marco Antônio Pereira, 2018). E não mencionaria de jeito nenhum Sem título #1 – dance of leitfossil (Carlos Adriano, 2012) e Na missão, com Kadu (Kadu Freitas, Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, 2016), porque ambos me devastam e só de falar deles desando a chorar, algo que certamente impediria o preenchimento desta lista.
Mas não, a pergunta do Adriano Garrett não é sobre nada disso. Ele quer saber quais são os três curtas/médias brasileiros incontornáveis do último decênio. Teria que recorrer ao dicionário. O Google diz que incontornável é “aquilo que não se pode contornar” (agora entendo o argumento do amigo Felipe André Silva, que segue essa linha). Tá bem, dessa forma fico até mais tranquilo, já que o significado se faz próximo de minha trajetória pelo cinema, sempre pelas beiradas, às vezes saindo de campo. Assim, escolho três filmes que são grandiosos porque simplesmente são, sem contornos ou desvios. O primeiro, pra muita gente, nem filme é, o segundo praticamente não foi exibido e o terceiro circulou deveras, mas ainda não foi visto como merece.
O Redemoinho (Autoria desconhecida, 2010) – Nem saberia contar pra vocês o tamanho do impacto sofrido a primeira vez que vi esse viral do YouTube circulando pelas redes sociais. Mas a covardia não me permitiu escrever sobre. Foi preciso que um tal Caetano discorresse acerca do vídeo para que a comunidade do cinema passasse a considerar, minimamente, sua qualidade artística. Tempos se passaram, o exibimos numa mostra do Zero4 Cineclube, depois foi lembrado em texto da Cinética, mas ninguém nunca se atreveu a descobrir quem é o exibicionista com pinta de Renato Gaúcho que filmou tudo que o mundo precisa ver e ouvir depois de um redemunho. Começa com imagens do céu atravessado por ciscos revoltos. É o final de um evento glorioso, o qual “não se conseguiu” registrar. Os gritos anunciam que isso é coisa divina, enquanto vemos a formosura de uma nova ventania agindo desordenada sobre a água. Não demoram a surgir o arco-íris, o cavalo branco e as preces maternas. O tornado vai embora e a família confraterniza quase desnuda à beira do rio, ao som de um precioso louvor. Como qualquer gol de Maradona, o sagrado e o profano se unem ao redor de pessoas devotas do pão de Cristo e da cachaça de Exu. Qual outro filme poderia traduzir a espontaneidade de um evento tão prosaico e tão sublime ao mesmo tempo? Talvez alguém dentre o seu milhão de espectadores saiba dizer.
As mulheres pensam (Talita Araújo, 2015) – É o curta mais frontal sobre o desejo de se matar feito nos últimos anos. Em foco, a extenuante rotina de uma mulher (Ruth Melchior) que trabalha 12 horas por dia numa empresa de segurança e ainda faz bicos como babá no final de semana. Em consonância, outras experiências femininas que partilham de condições semelhantes. Camus que me perdoe, mas não há seriedade que dê conta da dimensão desse desespero. A morte acontece todos os dias. Ela é o fenecimento do olhar, o encurtamento da conversa e o desaparecimento da imagem. Áudio e vídeo não têm sincronia porque a desorientação governa essa existência. Exceção feita à leitura das cartelas e o choro da criança. Leem-se as cartelas para escancarar a dor, enquanto a criança chora por falta de alento. O corpo, cansado, fracassa como um burro velho transportando o mundo. Ruth não morre, mas vive esmagada como o filme, que quase não passou em lugar algum e hoje habita um link não-listado do YouTube.
Sete anos em maio (Affonso Uchoa, 2019) – Falando em morte, temos aqui um sobrevivente. Rafael dos Santos Rocha chegava do trabalho quando a polícia, de maneira cruel, o impediu de entrar em casa. Sete anos depois o trauma é reencenado. Agora Rafael conta como é estar vivo, mesmo que aquele momento tenha deixado um lastro de morte. Seu relato é como o canto de um urutau, pássaro noturno que voa de galho em galho sem ser visto. A escuta também é importante. Ao redor do fogo, Wederson Neguinho o ouve sem interrupção. E quando é que um trabalhador não é interrompido durante a fala? Somente quando está diante de outro, claro. O poder decide quem vive e quem morre, mas fato é que o pobre a cada dia sucumbe um bocado. Estar vivo na nação dos maltratados é um troncho sinônimo de luxo. Affonso Uchoa, diretor do filme, consolidou-se como o mais talentoso de uma geração de cineastas brasileiros excepcionais desconhecidos do grande público. Seus filmes passam a torto e direito nos principais festivais do mundo, ganhando as louvações que merecem. No entanto, os links privados do Vimeo e os algoritmos invisíveis das plataformas VoD não dão conta da popularidade evocada por suas obras. Sete anos em maio devia mesmo é passar na Sessão da Tarde da Globo, porque o povo merece uma noite cálida para dialogar com a algidez de todos os nossos dias.
Rodrigo de Abreu Pinto, crítico (Revista Cinética)
Occidente, de Ana Vaz
Pelo olhar desacanhado e atentos às fissuras miúdas e não menos geopolíticas que excedem as relações sociais e supostamente ocidentais.
Noir Blue, de Ana Pi
Pela nudez do olhar que escancara as relações primordiais e jamais primitivas entre a narradora e a terra que a mesma des-re-cobre.
Nunca é noite no mapa, de Ernesto de Carvalho
Pela confiança absurda no mecanismo como meio autofágico de acesso a substância da violência.
Rubens Fabricio Anzolin, crítico (Matéria Prima) e curador (Zero4 Cineclube)
Em primeiro lugar, queria esclarecer o termo “incontornável”. Não há filme feito no Brasil nos últimos dez, vinte anos, que seja mais incontornável que Fantasmas (André Novais Oliveira, 2010). Os motivos são inúmeros e já devem constar, em partes, em diversas listas dos colegas neste levantamento. Portanto, me abstenho de defendê-lo com mais clareza, até porque, dez anos depois de ter sido feito, acredito que ainda não tenhamos descoberto nem perto da totalidade de sua potência. Outra informação, antes da lista, é que tomei para mim que não iria pensar em um universo macro – os filmes que tiveram mais contornos nesta década. Isto, qualquer sujeito poderá descobrir com uma pesquisa rápida e saberá que Travessia, Retrato N.1, Na Missão, com Kadu, NOIR Blue e tantos outros filmes atingem este patamar. Limitei-me, então, a selecionar três filmes que, creio, mereciam contornos maiores, e que talvez sejam as coisas mais inigualáveis desta década. Com isto, quero dizer que não encontro qualquer coisa parecida com o que é feito por seus realizadores. E acho que o establishment do cinema – festivais, mostras, curadorias – ainda não estão devidamente preparados para sacá-los devidamente. Abraçar seus contornos e desvios.
Ei-los.
1) Elégie a Rimbaud (Leo Pyrata, 2011)
Desconheço filme mais imaginativo. Honestamente. E desconheço cineasta que trabalha tamanha potência na performance de um cão, entre a poesia e a morte. Fazer do cotidiano um personagem é uma carta batida na nossa cinematografia, mas refazer toda uma autodeflagração do dispositivo, se colocar em tela, para desvirtuar um vídeo caseiro de um canino em versos de um poeta francês ainda é algo que fugiu da nossa compreensão. O cinema de Pyrata não é só destemido, mas é certamente uma cartografia da criatividade e dos modos de fazer filmes. E essa é a sua carta maior.
2) Qualquer filme de Lincoln Péricles, preferencialmente Filme dos Outros (2015) ou Enquadro (2016)
Muito se fala em representatividade nos contextos do cinema brasileiro contemporâneo. Ainda mais em relação aos curtas-metragens. Mas é curioso como Lincoln Péricles nunca foi devidamente reconhecido neste cenário. Acredito que isso se dê não só por ser talvez o cineasta mais inventivo que trafegou neste último período de realização, mas também por trabalhar através da chave da disjunção. Nada nos seus filmes se cruza exatamente, ao mesmo tempo em que todas as imagens, pouco a pouco, vão desvirtuando hierarquias e significados, para finalmente aproximar-se das ruas do Capão Redondo e de uma realidade abissal e praticamente incontornável. A maneira como o realizador prepara-nos sempre para um golpe, de riso ou de choro, é algo que vai além do que é feito hoje. Por que este é um cinema de rua, que deflagra a tão famosa diferença de classes, mas acima de tudo o faz retornando ao mito originário do cinema. Quer dizer, um homem e uma câmera, seus parceiros próximos e sua vida. Depois que isso passa pela maquinaria da montagem, nada pode ser igual. E ninguém pode passar ileso a este choque.
3) Redemoinho (Autoria desconhecida, 2010)
É o filme que refaz o Brasil inteiro em seis minutos. Do mito regional ao seio familiar. Da crença religiosa ao acontecimento catártico. O mundo se desdobra a nossa frente e, graças a “Deus”, ao arco-íris e ao cavalo branco sagrado, alguém estava ali para filmá-lo. Não há cartografia mais sintética de um país. Este filme é um acontecimento em si, a câmera que presencia o milagre absoluto. Um passeio de Guimarães Rosa até as origens do cinema de atrações. Um filme acidente. Radical. Sem autor. Com apenas um nome simbólico. E, mais do que tudo, impossível de ser refilmado. O que aconteceu está ali, e nunca mais poderemos flagrar novamente o que se passou.
Samuel Lobo, cineasta
Os três curtas que mais me marcaram nos últimos dez anos são Fantasmas (2010), do André Novais Oliveira, uma joia experimental que lança as bases inventivas com alto apelo popular do cinema realizado na periferia de Contagem pela turma da Filmes de Plástico, trazendo um novo sotaque com muitas ideias e uma perspectiva sagaz de mundo tendo a riqueza da vida às margens da sociedade no centro do seu universo dramático. O duplo, da Juliana Rojas, filme que atualiza a tradição de antiga lenda russa numa roupagem contemporânea de terror urbano com domínio absoluto de atmosfera e construção de suspense, abrindo-se destemidamente para o sobrenatural e consolidando Juliana Rojas como uma das mais interessantes cineastas do país. Por fim, Nada (2017), de Gabriel Martins, o despertar da consciência e o poder de escolha como possibilidade de mover mundos, uma pequena obra-prima sobre uma menina que ousa dizer “não” cujo gesto de afirmação consolida a Filmes de Plástico como o grande acontecimento estético do cinema brasileiro entre os anos 2010 e 2020.
Victor Guimarães, crítico (Revista Cinética) e programador (FENDA)
Incontornáveis. Na tentativa de lidar com essa proposição, de primeira penso nos filmes que, como um abismo que não se pode transpor nem circundar, me fizeram estacar subitamente, enfrentar o desconhecido e olhar de novo tudo ao redor. São filmes que golpeiam os músculos, induzem a uma parada repentina e, ato contínuo, obrigam a retraçar o campo, esquadrinhar o território uma vez mais, relançar o pensamento em direção ao passado, ao presente e ao futuro. Mas imagino também um outro sentido para a palavra e penso que incontornáveis são também aquelas coisas cuja silhueta é impossível de traçar. Aqueles acontecimentos que nos incitam imediatamente a perguntar: quando é que isso aqui começa e quando é que termina? Qual é o tamanho disso? Que forma tem? A que gênero pertence? É cinema? É um filme? São esses os que nos impelem a reimaginar tudo de novo.
Karioka (Takumã Kuikuro, 2014)
Um cartão-postal do Rio de Janeiro estilhaçado nos olhos múltiplos de uma família indígena do Xingu. Tudo é mutação, trânsito, vai e vem incessante de um filme que ainda não se tornou e já deixou de ser, no lance seguinte. Tomar banho no mar com sabonete ou filmar um abraço do ponto de vista do sovaco: imperativo da alteração permanente.
Nau/Now (Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, 2017)
No interior de uma instalação de chão inclinado e pedregoso, o afunilamento do espaço conduz a uma tela. Nela, uma visão nos apresenta um plano único e fixo de um telhado, de onde aos poucos vão brotando homens vestidos de vermelho que parecem preparar uma fuga ou uma rebelião, enquanto a fumaça preta sobe dos buracos deixados pela passagem dos corpos. O looping intensifica a ambiguidade fundante, que só se multiplica enquanto continuarmos ali: alegoria da ruína ou da revolta, primeiro cinema ou performance, arte conceitual ou matéria bruta, radiografia pós-golpe ou nau portuguesa às avessas – não se sabe ao certo. Mas na oscilação dessa now estática está entranhado um país.
Detido dá golpe em policial e consegue fugir com apoio de populares (Anônimo, 2019)
É um objeto de difícil delimitação. De certo, sabemos que são dois planos realizados com telefones celulares no Alto Vera Cruz, em Belo Horizonte, durante uma abordagem policial violenta a um jovem da comunidade. No primeiro deles, um homem-câmera se aproxima corajosamente do agente da lei que imobiliza o rapaz com um mata-leão, gritando incansavelmente o mesmo refrão revoltado enquanto braços e gritos de uma rua inteira – inclusive o da mãe de quem filma – vazam por todos os lados. Uma das mãos sustenta o plano, cada vez mais de perto, enquanto a outra salta do antecampo para o interior do quadro, chega a tocar o corpo do algoz, e só recua momentaneamente quando o spray de pimenta dispersa a pequena multidão, para retornar no segundo seguinte, a tempo de nos oferecer um breve lampejo do desenlace da cena: a fuga meteórica do rapaz, que se desvencilha dos braços do Estado e deserta do plano para sempre. É aí que, num corte, o filme continua num segundo plano igualmente impressionante: numa espécie de retake diferido, ouvimos ainda os gritos do primeiro homem-câmera, enquanto um outro ponto de vista começa a se forjar. O ângulo aqui é frontal e o disparo do spray nos atinge em cheio. Mas o recuo é igualmente momentâneo, e é desse ângulo que veremos – em todo o seu esplendor eufórico – o balão aplicado pelo rapaz (Gabriel Araújo deu a letra: “é física”), sua maneira de absorver o peso do corpo policial para si e devolvê-lo ao chão, estatelado, vencido, ao menos aqui, ao menos agora. Há tempo ainda para que a câmera se ponha em fuga, na tentativa de acompanhar a corrida – sem sucesso, pois o fujão abandonou também a imagem e só deixou atrás de si um rastro intangível. Não se sabe o nome de quem filmou, não se sabe quem montou juntos esses dois registros, nem quem decidiu a duração. Mas nossa tarefa não é a de traçar delimitações, e sim a de fazer vibrar o milagre. Sabemos apenas que, no YouTube, o filme foi por um certo Uchôa Federal, com a seguinte descrição: “Novamente fica evidente a dificuldade que os policiais tem ao efetuar prisões quando há interferência de populares. Dessa vez infelizmente o detido conseguiu fugir”. Mal sabia ele que estava legando a nós um dos mais decisivos vislumbres do que um cinema brasileiro do futuro pode ser.
Vitor Medeiros, cineasta e crítico (Moventes)
Numa década de corpos rebeldes, acompanhamos o transbordamento de imagens das margens para o centro dos holofotes. Já não cabem mais as dinâmicas de outrora, mas elas existem ainda, sustentadas por aqueles que ditam, programam, julgam, e disso tiram seu sustento. Aos que criam as tais imagens geniais e marginais, meus parabéns, boa sorte e até a próxima. Até quando tapetes vermelhos? Jantares chiques, hotéis e cerveja liberada (apenas para os selecionados)? Trago para esta área VIP três curtas fenômenos-sintomas do que vivemos dentro dos decadentes palacetes cinematográficos brasileiros nos últimos tempos.
Leona Assassina Vingativa 4 – Atrack em Paris (2017) não é a obra mais vista da carreira de sua estrela protagonista. Contudo, foi através dela que a artista mais poderosa de sua geração ultrapassou a internet e ocupou telas grandes de cinemas, dando seus closes – só que sem sua presença física nos eventos. De quem terá sido o desprezo? De Leona, por sequer se interessar em frequentar tais espaços? Ou dos festivais, por não considerarem sua presença relevante a ponto de custear suas passagens aéreas saindo de Belém? Co-realizado com sua parceira de longa data Paulo Colucci (a Aleijada Hipócrita) e com o coletivo Surto & Deslumbramento (composto por bichas acadêmicas e cineastas sediadas em Recife), o filme é um hino do deboche, viabilizado com recursos habilmente desviados da Ancine pelo projeto Cine Barato (idealizado pelo baiano Álvaro Andrade).
Kbela (2015), por sua vez, nasce de uma vaquinha online – 117 pessoas colaboraram para a arrecadação de R$ 5.000, um valor irrisório se comparado aos editais públicos – e só se concretiza graças à persistência de sua equipe, que precisou refilmar o conteúdo depois de perder os HDs em um assalto. Aproximando-se do que seria um cinema experimental, tido como hermético e de difícil comunicação com um público mais amplo, Kbela aquilombou o Cine Odeon (RJ) em sua estreia: os 550 lugares da sala foram vendidos em apenas cinco dias, e o filme ganhou novas exibições, tudo isso fora do circuito de festivais. E assim, contrariando os vetores até então vigentes nessas vitrines (que privilegiam ineditismo e uma lógica de maior > menor prestígio), o curta dirigido por Yasmin Thayná percorreu diversas outras salas do Brasil e do mundo em uma alongada trajetória que culminou, por exemplo, com sua “estreia” (como a equipe tem chamado nas redes sociais) no Festival de Roterdã em 2019, quatro anos depois da primeira exibição na Cinelândia carioca.
Quintal (2015) fez o caminho inverso. Começou na glamurosa Quinzena dos Realizadores e depois sobrevoou os festivais daqui. Todavia, a consolidação da Filmes de Plástico nesse panteão resulta do trabalho afetivo e cotidiano de muitos anos: antes de Cannes, o coletivo já estreava filmes no Festival Brasileiro de Cinema Universitário, e os “meninos” participaram de inúmeros debates e encontros na cena independente. Importante perceber que chegaram nesse lugar enquanto grupo, família, comunidade – e não como indivíduos ou prodígios. Em Quintal, André Novais Oliveira chama seus pais, Dona Zezé e Norberto, para mais uma brincadeira insólita e doméstica – com a qual todos parecem se divertir.
Os 3 filmes acima elencados foram lançados na segunda metade da década, mas todos eles são frutos de fissuras iniciadas até mesmo antes de 2010. Considero-os incontornáveis pela dificuldade de traçar uma linha destacando-os de uma época, de contextos, de processos múltiplos, com intercessões, tensões e multidões. E por representarem movimentos maiores, que escapam ao cinema, essa arte frívola que tanto amamos.
Filmes mencionados (por ordem alfabética)
A Casa Cinza e as Montanhas Verdes (Deborah Viegas, 2016)
A Morte Branca do Feiticeiro Negro (Rodrigo Ribeiro, 2020)
A Outra Margem (Nathália Tereza, 2015)
A Retirada para um Coração Bruto (Marco Antônio Pereira, 2017)
Alma Bandida (Marco Antônio Pereira, 2018)
Aluguel: O Filme (Lincoln Péricles, 2015)
Anderson (Rodrigo Meirelles, 2017)
As Mulheres Pensam (Talita Araújo, 2015)
Ava Marangatu (Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites e Joilson Brites, 2016)
Ava Yvy Vera – A Terra do Povo do Raio (Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonaton Gomes, Edina Ximenes, Dulcídio Gomes, Sarah Brites e Joilson Brites, 2016)
Bicicletas de Nhanderú (Ariel Ortega e Patricia Ferreira, 2011)
Bom Dia Carlos (Gurcius Gewdner, 2015)
Caixa D’Água: qui-lombo é esse? (Everlane Moraes, 2012)
Charizard (Leonardo Mouramateus, 2012)
Chico (Irmãos Carvalho, 2016)
Cinema Contemporâneo (Felipe André Silva, 2019)
Command Action (João Paulo Miranda Maria, 2015)
Como era gostoso meu cafuçu (Rodrigo Almeida, 2015)
Como são cruéis os pássaros da alvorada (João Toledo, 2015)
Contagem (Gabriel Martins e Maurílio Martins, 2010)
Copyleft (Rodrigo Carneiro, 2015)
Coração Migrante (Leonardo Amaral e Roberto Cotta, 2020)
Detido dá golpe em policial e consegue fugir com apoio de populares (Anônimo, 2019)
Deus (Vinicius Silva, 2017)
Dia Branco (Thiago Ricarte, 2014)
Eclipse solar (Rodrigo de Oliveira, 2016)
Elégie a Rimbaud (Leo Pyrata, 2011)
Enquadro (Lincoln Péricles, 2016)
Estado Itinerante (Ana Carolina Soares, 2016)
Eu não quero voltar sozinho (Daniel Ribeiro, 2010)
Experimentando o Vermelho em Dilúvio II (Musa Michelle Mattiuzzi, 2016)
Fantasmas (André Novais Oliveira, 2010)
Filme dos Outros (Lincoln Péricles, 2015)
Fusão da Lua (Gabriel Papaléo, 2016)
Guaxuma (Nara Normande, 2018)
Guida (Rosana Urbes, 2014)
Ilhas de Calor (Ulisses Arthur, 2019)
Já visto jamais visto (Andrea Tonacci, 2013)
Karioka (Takumã Kuikuro, 2014)
Kbela (Yasmin Thayná, 2015)
Latifúndio (Érica Samet, 2017)
Lembranças de Mayo (Flávio C. Von Sperling, 2015)
Leona Assassina Vingativa 4 – Atrack em Paris (André Antônio e Paulo Colucci, 2017)
Lúcida (Fabio Rodrigo e Caroline Neves, 2015)
Mamata (Marcus Curvelo, 2017)
Menino do Cinco (Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira, 2012)
Morador do Leblon hostiliza manifestante durante rolezinho (anônimo, 2013)
Motriz (Taís Amordivino, 2018)
Mulheres Sem Terra ocupam fazenda de João de “Deus” (Brigada Audiovisual Eduardo Coutinho, 2019)
Na Missão, com Kadu (Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito)
Nada (Gabriel Martins, 2017)
Nau/Now (Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, 2017)
NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018)
Nova Dubai (Gustavo Vinagre, 2014)
Nunca é Noite no Mapa (Ernesto de Carvalho, 2016)
O Duplo (Juliana Rojas, 2012)
O Mistério da Carne (Rafaela Camelo, 2018)
O que há em ti (Carlos Adriano, 2020)
O Redemoinho ou O Redimunho ou É Deus, Mamãe (Autoria desconhecida, 2010)
Occidente (Ana Vaz, 2014)
Para Todas as Moças (Castiel Vitorino Brasileiro, 2019)
Permanências (Ricardo Alves Jr., 2010)
Pouco mais de um mês (André Novais Oliveira, 2013)
Preciso Dizer Que Te Amo (Ariel Nobre, 2018)
Quebramar (Cris Lyra, 2019)
Quem Tem Medo de Cris Negão? (René Guerra, 2012)
Quintal (André Novais Oliveira, 2015)
República (Grace Passô, 2020)
Retrato n. 1 Povo acordado e suas 1000 bandeiras (Edu Ioschpe, 2013)
Santos Dumont: Pré-Cineasta (Carlos Adriano, 2010)
Sem Título #1: Dance of Leitfosil (Carlos Adriano, 2014)
Sete anos em maio (Affonso Uchôa, 2019)
Solon (Clarisa Campolina, 2016)
Travessia (Safira Moreira, 2017)
Tudo que é apertado rasga (Fabio Rodrigues Filho, 2019)
Vaga Carne (Grace Passô e Ricardo Alves Júnior, 2019)
Virgindade (Chico Lacerda, 2015)
Vó Maria (Tomás von der Osten, 2011)
Vós (Ana Pi, 2011)
Filmes mencionados (por número de citações)
17 menções
Fantasmas (André Novais Oliveira, 2010)
8 menções
NoirBLUE – deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018)
7 menções
Kbela (Yasmin Thayná, 2015)
República (Grace Passô, 2020)
4 menções
A Morte Branca do Feiticeiro Negro (Rodrigo Ribeiro, 2020)
Nunca é Noite no Mapa (Ernesto de Carvalho, 2016)
O Duplo (Juliana Rojas, 2012)
3 menções
A Outra Margem (Nathália Tereza, 2015)
O Redemoinho ou O Redimunho ou É Deus, Mamãe (Autoria desconhecida, 2010)
Sete Anos em Maio (Affonso Uchôa, 2019)
2 menções
Aluguel: O Filme (Lincoln Péricles, 2015)
Bicicletas de Nhanderú (Ariel Ortega e Patricia Ferreira, 2011)
Deus (Vinicius Silva, 2017)
Estado Itinerante (Ana Carolina Soares, 2016)
Filme dos Outros (Lincoln Péricles, 2015)
Guaxuma (Nara Normande, 2018)
Lúcida (Fabio Rodrigo e Caroline Neves, 2015)
Nada (Gabriel Martins, 2017)
Na Missão, com Kadu (Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito, 2016)
Nova Dubai (Gustavo Vinagre, 2014)
Para Todas as Moças (Castiel Vitorino Brasileiro, 2019)
Quintal (André Novais Oliveira, 2015)
Vó Maria (Tomás von der Osten, 2011)
1 menção
A Casa Cinza e as Montanhas Verdes (Deborah Viegas, 2016)
A Retirada para um Coração Bruto (Marco Antônio Pereira, 2017)
Alma Bandida (Marco Antônio Pereira, 2018)
Anderson (Rodrigo Meirelles, 2017)
As Mulheres Pensam (Talita Araújo, 2015)
Ava Marangatu (Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonatan Gomes, Edina Ximenez, Dulcídio Gomes, Sarah Brites e Joilson Brites, 2016)
Ava Yvy Vera – A Terra do Povo do Raio (Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Jhonn Nara Gomes, Jhonaton Gomes, Edina Ximenes, Dulcídio Gomes, Sarah Brites, Joilson Brites, 2016)
Bom Dia Carlos (Gurcius Gewdner, 2015)
Caixa D’Água: qui-lombo é esse? (Everlane Moraes, 2012)
Charizard (Leonardo Mouramateus, 2012)
Chico (Irmãos Carvalho, 2016)
Cinema Contemporâneo (Felipe André Silva, 2019)
Command Action (João Paulo Miranda Maria, 2015)
Como era gostoso meu cafuçu (Rodrigo Almeida, 2015)
Como são cruéis os pássaros da alvorada (João Toledo, 2015)
Contagem (Gabriel Martins e Maurílio Martins, 2010)
Copyleft (Rodrigo Carneiro, 2015)
Coração Migrante (Leonardo Amaral e Roberto Cotta, 2020)
Dia Branco (Thiago Ricarte, 2014)
Detido dá golpe em policial e consegue fugir com apoio de populares (Anônimo, 2019)
Eclipse solar (Rodrigo de Oliveira, 2016)
Elégie a Rimbaud (Leo Pyrata, 2011)
Enquadro (Lincoln Péricles, 2016)
Eu não quero voltar sozinho (Daniel Ribeiro, 2010)
Experimentando o Vermelho em Dilúvio II (Musa Michelle Mattiuzzi, 2016)
Fusão da Lua (Gabriel Papaléo, 2016)
Guida (Rosana Urbes, 2014)
Ilhas de Calor (Ulisses Arthur, 2019)
Já visto jamais visto (Andrea Tonacci, 2013)
Karioka (Takumã Kuikuro, 2014)
Latifúndio (Érica Samet, 2017)
Lembranças de Mayo (Flávio C. Von Sperling, 2015)
Leona Assassina Vingativa 4 – Atrack em Paris (André Antônio e Paulo Colucci, 2017)
Mamata (Marcus Curvelo, 2017)
Menino do Cinco (Marcelo Matos de Oliveira e Wallace Nogueira, 2012)
Morador do Leblon hostiliza manifestante durante rolezinho (anônimo, 2013)
Motriz (Taís Amordivino, 2018)
Mulheres Sem Terra ocupam fazenda de João de “Deus” (Brigada Audiovisual Eduardo Coutinho, 2019)
Nau/Now (Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado, 2017)
O Mistério da Carne (Rafaela Camelo, 2018)
O que há em ti (Carlos Adriano, 2020)
Occidente (Ana Vaz, 2014)
Permanências (Ricardo Alves Jr., 2010)
Pouco mais de um mês (André Novais Oliveira, 2013)
Preciso Dizer Que Te Amo (Ariel Nobre, 2018)
Quebramar (Cris Lyra, 2019)
Quem Tem Medo de Cris Negão? (René Guerra, 2012)
Retrato n. 1 Povo acordado e suas 1000 bandeiras (Edu Ioschpe, 2013)
Santos Dumont: Pré-Cineasta (Carlos Adriano, 2010)
Sem Título #1: Dance of Leitfosil (Carlos Adriano, 2014)
Solon (Clarisa Campolina, 2016)
Travessia (Safira Moreira, 2017)
Tudo que é apertado rasga (Fabio Rodrigues Filho, 2019)
Vaga Carne (Grace Passô e Ricardo Alves Júnior, 2019)
Virgindade (Chico Lacerda, 2015)
Vós (Ana Pi, 2011)