Um cinema brasileiro no meio do caminho
I
Nunca me interessou muito pensar os filmes de maneira independente, como se existissem à parte do mundo ou de seus contextos. Também nunca me interessou muito a ideia de que os filmes devem algo ao seu tempo, isto é, que haja neles uma obrigação contundente de esmiuçar cenários e contextos políticos nos quais estamos inseridos. Isso não quer dizer, é claro, que quaisquer comentários nesse sentido não sejam bem-vindos. Mas antes de tudo é preciso se atentar aos filmes, ao modo como eles articulam suas ideias, como a forma rege o texto, e assim por diante. O que quero dizer é que nenhuma obra de arte sobrevive apenas pelo seu impacto imediato: é preciso um pouco de cuidado, de entrega, de reflexão sobre o dispositivo em que ela se sedimenta. Um mínimo de devoção àquilo que se condiciona chamar de cinema para que as ideias enfim ganhem vida e tomem forma.
Não falo isso como uma crítica a Carro Rei (Renata Pinheiro, 2021), pois acho que ele não se estanca nesta fórmula simplista entre uma verdade ou outra. Diria, aliás, que é um pouco dos dois: há o comentário latente sobre o bolsonarismo e as transformações das lutas de classes, bem evidente na construção dramática do filme, mas há também um cinema – ou, pelo menos, uma tentativa mais rebuscada em buscá-lo.
II
Também me parece complicado não tecer comparações mais diretas entre Carro Rei e outras obras ao seu redor, visto que boa parte dos filmes brasileiros feitos desde o golpe constitucional de 2016 até aqui tateiam um discurso político bastante engajado. Seja pela sátira, pela documentação histórica ou pela ação mais direta – o pegar em armas de Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) e Sol Alegria (Tavinho e Mariah Teixeira, 2018), por exemplo -, nosso cinema busca ferrenhamente descortinar essa conjuntura política danosa e complexa, bem mais próxima da distopia que de um mundo dito “normal”. Nesse contexto, os exemplos são variados, mas a órbita de filmes realizados a partir deste estigma podem ir desde as obras-primas de Adirley Queirós – filmes como Branco Sai Preto Fica (2014) e Era Uma Vez Brasília (2017) – até analogias mais baratas e mambembes – como o recente Casa de Antiguidades (João Paulo Miranda, 2020). Seja por bem ou por mal, o movimento mais comum a estas realizações está justamente na tentativa do esgarçamento da realidade para que se consiga conjecturar soluções ou proposições mais factíveis sobre o agora, sobre o tal do desgoverno. Como se unicamente pela distopia e pela distorção do real é que se tornasse possível alcançá-lo minimamente.
Carro Rei é um pouco isso, mais um filme que se alinha ao conglomerado de tantos outros feitos no Brasil recente. Afinal de contas, não é possível fazer um filme no Brasil sem pensar sobre o Brasil. Mesmo pela lógica da alegoria ou pelo viés humano, tudo à nossa volta nos retumba. Estamos todos no mesmo calabouço, e qualquer atitude de pegar em uma câmera que se aninhe por estas bandas acabará dizendo uma coisa ou outra sobre o estado das coisas ou, pelo menos, sobre como se enxerga e se modulam estas condições inerentes.
Em 2019, Juliana Costa escreveu um texto belíssimo em seu blog, chamado O Cinema Brasileiro Pós-Golpe. Nele, a crítica comenta sobre uma condição intrínseca à forma dos filmes feitos durante este período, especialmente aqueles que partem para uma entrega mais “jornalística”. Dizia ela:
Estes filmes de registros históricos – e ai também temos Excelentíssimos (2018), de Douglas Duarte, entre outros – são documentos importantes para o futuro e mesmo para o presente – sobretudo para exportação, para denunciar à comunidade internacional todo absurdo contemporâneo da realidade brasileira – mas não acredito que expressem o sentimento da nossa época. Tudo é claro, jornalístico, carregam em si o verniz da credibilidade, o mesmo verniz utilizado pelos golpistas. São, de certa forma, filmes otimistas. Que acreditam que o teatro do absurdo possa ser desmascarado, desvelado. Como se tudo já não estivesse exposto, deflagrado.
III
No entanto, não me interesso pela firula, e por isso mesmo pretendo chegar mais diretamente ao ponto: em Carro Rei temos dois tipos de filme. Um primeiro que articula uma estética narrativa mais contundente, objetiva, que com seus méritos e deméritos constrói uma metáfora da condição dos trabalhadores e do sucateamento de um dos seus bens de consumo mais valiosos: o automóvel. O filme se passa na cidade de Caruaru, onde o prefeito interpretado por Tavinho Teixeira acaba de aprovar uma lei que proíbe todos os veículos com mais de 15 anos de existência de circularem. Uninho, um estudante de agroecologia, órfão de mãe e filho de um pai proletário e inconscientemente patriota, recorre ao seu tio Zé Macaco (Matheus Nachtergaele) para que, com suas habilidades de mecânico, o mesmo possa iniciar uma revitalização das latas-velhas, na tentativa de devolver o poder aos automóveis populares, isto é, ao trabalhador comum e abundante. Até aí, Carro Rei é bastante tenaz. Tem seus traquejos estéticos, seus tiques de atuação, sua reprodução arthouse, mas sobrevive bem especialmente pela capacidade sobre-humana que Nachtergaele demonstra para carregar nas costas um personagem divertido e arejado, que faz parte de um crescendo dramático minimamente coerente. Nada demais, mas também nada de pedestre. Interessante.
Aí então entramos para o segundo filme, que é onde a coisa descamba. Do meio pra frente, tudo toma uma forma politicamente objetiva, de articulações e decisões bastante óbvias, com direito a Zé Macaco gritando em praça pública um: King’s Car (marca inicialmente proletária e posteriormente anarcocapitalista) acima de todos!, em referência direta aos discursos do demônio. A segunda parte de Carro Rei é justamente esta que faz alusão às linhas de Juliana Costa que citei anteriormente. É como se o teatro do absurdo de Renata Pinheiro recaísse mais diretamente na ideia de que tudo pode ser facilmente descortinado, de que é possível que se leia uma guinada complexa e subterrânea do “popular” para o empresariado em poucos minutos. Ao fim de tudo, quando não se encontram mais soluções plausíveis, o que sobra mesmo é a catarse. E a quantidade de filmes brasileiros do pós-golpe que encontram essa dificuldade em se resolver é também imensa.
Comumente encontramos personagens que encaram o nada, o vazio, que permanecem mortificados ou deslumbrados com o mundo. Quando não se passa por isso, achamos por bem que tudo termine mesmo com gritos e alegorias das mais diretas (como a roupa estampada em azul, verde e amarelo dos soldados do Carro Rei, o primeiro automóvel da companhia de táxis do pai de Uninho). No fim das contas, o longa de Renata Pinheiro é um conglomerado destes artifícios vorazes que estão no mundo das respostas prontas ou das soluções mais fáceis. O que pega mesmo é uma espécie de incoerência: se vamos à alegoria, então que se faça isto indo às tripas. Se a distopia é mesmo uma distopia – afinal, há quem defenda que o Brasil de hoje é tão surreal que está mais perto da fantasia que da realidade -, é sempre possível sacar do bolso filmes que se relacionam com a tradição do imaginário de invenção do cinema brasileiro, como Canto dos Ossos (Jorge Polo e Petrus de Bairros, 2020), Sol Alegria (Tavinho Teixeira, 2018) ou boa parte das obras feitas por coletivos como Alumbramento e Surto & Deslumbramento. O que não vale mesmo é tentar vender essa imagem do Brasil achando que chegaremos às respostas sem nem ter entendido muito bem as perguntas. Se for por isso, Carro Rei até sobrevive como projeto de cinema, mas quanto mais tenta se articular, mais avacalha com aquilo que foi construído anteriormente. Passa bem longe de ser um desastre, mas também não penso que seja capaz de dizer qualquer coisa mais contundente sobre o agora.
*Este texto integra a cobertura da 15ª Cine BH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte