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sem título #7: Rara

08/10/21 às 16:13 Atualizado em 10/02/22 as 15:15
sem título #7: Rara

Uma ciência da memória

1.

Poucas obras no cinema contemporâneo refletem com tanta angústia e liberdade a questão do luto quanto a série de filmes sem título, dirigida pelo cineasta Carlos Adriano. Em seus curtas-metragens, imagens antigas e modernas da história do cinema se entrecosturam para cerzir solenemente um novo fio de memória, em que tudo gradativamente se renova e remonta através do corte. São todos filmes de montagem, que se fazem entre a divisória do real e do imaginário, numa alteração constante que se dá entre significantes e significados. Mas mais do que tudo, gosto de pensar que os filmes de Carlos Adriano representam, em conjunto, o resultado de um processo de alquimia. Isto é, cinema como ciência: uma pequena e meticulosa equação de forjar imagens da película, reconfigurá-las, somá-las a outras e produzir finalmente um sentido particular, similar ao formato do palimpsesto. O anterior e o posterior se decodificando, em busca de um novo olhar. Enfim, um experimento, no qual 1 + 1 jamais é 2, senão o próprio 1, já distinto de si e dos demais.

Havia uma imagem anterior, como as cenas de Era Uma Vez em Tóquio (1953), Pai e Filha (1949) e Fim do Verão (1961), todos eles filmes de Yasujiro Ozu, e depois teremos as imagens de sem título #7 – Rara, que ao mesmo tempo que fazem referência ao que significavam anteriormente (frames da atriz assinatura de Ozu, Setsuko Hara), já se tornaram outra coisa, um lastro pela memória e pela perda, um gesto inigualável de solidão. Um experimento síntese das ciências do cinema.

2.  

Neste sétimo capítulo da série sem título, Carlos Adriano impulsiona ainda um elemento mais interessante na sua livre associação de imagens, que é algo relacionado à escrita da memória. Isto já estava presente em sem título #1 – Dance of Leitfossil, em que os frames da dança entre Fred Astaire e Ginger Rogers eram impossibilitados de serem completos, representando assim uma tolhida ao mais lindo dos gestos da vida. Em meio a estes mesmos gestos, o cineasta acoplava imagens de seu ex-companheiro Bernardo Voborov, falecido algum tempo antes, como uma forma de representar a finitude das mais belas formas do mundo. Pois em sem título #1 é não somente a dança que acaba, mas é o gesto perfeito, milimétrico, ritmado, que termina por se mortificar, por se autodestruir à medida que não se completa.

Se sem título #1 é sobre esta dança cruel, sobre uma memória que jamais será refeita, sem título #7: Rara é sobre as formas de modulação desta memória, desta escrita do luto. O britânico John Berger, em seu livro Modos de Ver, nos conta que mesmo anos após ter perdido sua esposa, Pablo Picasso continuava a replicá-la inconscientemente em seus desenhos. No caso de Adriano, mesmo que o tempo prescreva uma guinada temática para outras frentes através de sua série de filmes, este fantasma de sem título #1 há sempre de retornar, de ser reescrito da forma mais sublime possível.

3. 

Em Rara, o cineasta refaz e costura frames de Setsuko Hara atuando nos filmes de Yasujiro Ozu, coisa que sem contexto pareceria unicamente uma homenagem. A questão é que Hara ficou reconhecida não só por ser o rosto do Japão familiar e melancólico do grande mestre, mas sobretudo por, após a morte de Ozu, em 1963, isolar-se na pequena cidade de Kamakura, no interior do Japão. O filme de Adriano, então, recolhe o significado inicial da lembrança, da atividade mecânica e banal desta personagem feminina, para reescrever em cima dela esta memória do luto. Não à toa, chama-se raro algo que é dificilmente encontrado, assim como a imagem de Hara (daí também esse fonema como brincadeira no título), atriz dos tempos áureos do cinema no Japão.

É a um só tempo um reencontro não só com a lembrança da mulher que sumiu, mas também com estes gestos que jamais foram repetidos, e que Adriano faz questão de duplicar incessantemente para que, como uma epifania, permaneçam na memória, com outras cores, outros lados e outras dimensões. Iremos à praia com Setsuko Hara, veremos mais uma vez a lembrança de seus olhos calmos, estaremos na presença de seu sorriso, e a partir destes experimentos chegaremos à lembrança final, àquele rastro de memória que foi embora para não mais voltar, que é resultado de uma alquimia que escreve sempre à base das lembranças, dos haikais, da poesia dos poetas antigos e dos poetas do cinema, como Ozu e como Carlos Adriano.

Pois o que justamente demarca a assinatura de seus filmes é o nascer de um novo poema, de uma nova colagem. Justamente aquela que se apropria da poesia de Ozu e das palavras não-ditas de Hara para, enfim, somá-los e gerar algo que não é nem um e nem outro, mas que é unicamente seu, constituinte de sua tristeza solitária e singular. Conforme apontam os créditos: as obras de arte são de todos, são do mundo, são dos outros. Já os filmes, os filmes são sempre de Carlos Adriano.

*Este texto integra a cobertura da 15ª Cine BH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte

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