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Café com Canela, de Ary Rosa e Glenda Nicácio

21/01/18 às 00:35 Atualizado em 08/10/19 as 20:24
Café com Canela, de Ary Rosa e Glenda Nicácio

Café só para os íntimos

 

Para compreender Café com Canela é preciso caminhar por outras considerações que por fim nos levarão de volta ao filme baiano. Porque o filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa inverte uma tradição indireta inserida no campo do cinema brasileiro (mas que a bem da verdade se espalha para outras áreas da produção de imagens). E faz isso com tanta naturalidade que por vezes parece nem sem se dar conta.

Desde a tradição etnográfica, passando por documentários-realidade e chegando a produções sobre o período escravocrata, por exemplo, o cinema assimila o gesto de mostrar a imagem negra (a subjetividade negra, o corpo negro, a experiência negra em todas as suas variantes, portanto) como uma manifestação sem presença sobre si, construindo assim duas premissas:

1. A imagem negra não tem domínio sobre si, cabendo a esta imagem existir pela conduta e vontade de terceiros (do enquadramento que registra personagens negros/as como molduras, dos roteiros que abandonam estas personagens).

2. A imagem negra não tem permanência, dura o quanto durar um plano, some da existência assim que some da tela sem sequer deixar rastros.

Essas duas premissas formarão, pelo tempo, uma terceira. Aqui entramos na questão mais íntima do texto.

Sendo essas imagens de domínio público, sua natureza torna-se então desprovida do elemento que sintetiza as discussões sobre ausências na representação: intimidade. A imagem negra, a subjetividade negra, a experiência negra, são todas manifestações de uma intimidade na maioria das vezes surrupiada pelo olhar hegemônico (que vê e que faz cinema). Uma vez entendida tal intimidade muitas vezes como elaboração de enfrentamento do mundo e de suas estruturas, alcançamos a porta de entrada deste Café com Canela.

A sequência inicial tem por centro as filmagens em arquivo de um aniversário em família. Estamos no coração do filme, e a partir daí irradiaremos pelos efeitos desse episódio central.

Ivan (Babu Santana) fala sobre sua mudança para a capital ocorrida anos antes. “Pense uma putaria, era eu”, diz. O sujeito desenvolve aos poucos sua memória, e é bonito ver as sutilezas que Babu cria em pequenos gestos, a fazer de seu corpo um conflito de expectativas. O relato passa a ser sobre seu primeiro e único amor. A câmera altera a posição, sai do lado esquerdo e vem para o direito; assim que o movimento se encerra, o personagem passa a falar como se sussurrasse. Finda-se a história e a fala de outra personagem nos devolve ao convívio comum. Ivan nos atravessa por sua intimidade e conta exatamente aquilo que quer contar.

Mesmo quando guarda certa de distância de suas protagonistas o filme elabora um senso íntimo palpável através dos vínculos. Nesse sentido, outra seqüência específica vale a lembrança.

Três portas surgem enquadradas num plano estático. Parecem ser do mesmo local. Por uma porta vemos Violeta saindo para vender coxinhas. Pela segunda porta vemos a vizinha que lava a calçada. Pela terceira porta Adolfo sai para passear com seu cão. As imagens então se atravessam, as três personagens ocupam umas as portas (os enquadramentos) das outras. Um último enquadramento mostra então as três personagens no mesmo plano, revelando ainda que as três portas na verdade são de casas distintas. Há nessas sequências o pensar íntimo de um cinema que, se não necessariamente inédito, revela o olhar próprio de uma nova geração de cineastas brasileiros, jovens e negros/as, que cada vez mais tornam-se incontornáveis por construírem referências próprias com códigos próprios (há uma noção de comunidade bastante específica em Café com Canela)  e por referenciarem algumas outras construções. Há uma forte aproximação entre Café… e filmes africanos como Bamako, de 2006, na construção do embate entre imagens públicas e imagens íntimas, ao mesmo tempo em que dialoga com filmes como Quintal, curta-metragem de André Novais Oliveira, sob a perspectiva de um aprofundamento no íntimo por meio de um surrealismo específico, do povo, da rua.

Há sim, vale dizer, irregularidades formais em Café com Canela.  Desajustes de tempos e de alguns diálogos (a fala sobre cinema soa muito longa), alguma desorganização visual fruto de uma decupagem aparentemente bastante espontânea (planos que, se dispensados, não prejudicariam), certa insegurança no fazer rir que sabota alguns bons momentos, todos estes sinais que parecem ainda fruto de uma maturação em curso numa promissora dupla de cineastas. Mas há também certa coragem em conduzir uma narrativa a princípio simples e sutil, que ganha corpo e tom ao abrigar-se na mais íntima de suas personagens: Margarida.

É com Margarida (Valdinéia Soriano) que Café… aprofunda seus laços de intimidade. O luto, dos maiores gestos de elaboração íntima, é muitas vezes tão contrariamente vociferante às estruturas quanto qualquer posicionamento mais enfático ou mesmo violento. A sequência em que as paredes se comprimem e a outra em que escorre sangue são vivas porque vivemos ali um pouco do que aquela mulher em luto atravessa todos os dias, e que de tanto viver aquilo nem mais se espanta.

Outro fator que dá força aos movimentos mais surreais está no extra-plano. Cachoeira é uma cidade de ancestralidade e cultura enraizadas; há ali uma leitura de mundo bastante afro-brasileira, com códigos específicos. A água que se joga de costas para a rua na volta do velório (minha avó faz esse gesto até hoje), as contas que se retiram, o colo que se pede, a orixá que se achega.

Café com Canela é um filme de imagens raras porque íntimas. E é nessa intimidade que residem novas forças, novos cheiros, novos gestos, outras saudades, por imagens que, mesmo vacilantes, permanecem nos olhares. Aos menos pros mais íntimos, que cá sabem chegar pra tomar um café.

 

*Filme visto na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes

 

Leia também:

>>> Entrevista com o diretor Ary Rosa

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