Quando filmou Mãe Só Há Uma, no final de 2014, a diretora Anna Muylaert ainda não havia lançado Que Horas Ela Volta?, que viria a se tornar um sucesso de público e crítica. Não existia, então, qualquer pressão por repetir uma fórmula exitosa de produção, e Anna resolveu arriscar.
Seu novo filme, que chega aos cinemas nesta quinta (21), tem um orçamento menor, não traz atores protagonistas conhecidos do grande público e possui uma estrutura narrativa lacunar que foge de respostas fáceis.
“A estrutura dramática é bem diferente, e do meu ponto de vista como realizadora eu encaro como uma tentativa de sair do conforto; é um filme adolescente, que arrisca. É quase como um recomeço para mim”, contou a diretora ao Cine Festivais.
Mãe Só Há Uma é resultado de um projeto que já estava sendo desenvolvido por Anna há sete anos. Baseado na história do garoto Pedrinho – que foi roubado de uma maternidade de Brasília nos anos 80, acabou criado por sua sequestradora e foi localizado pelos pais biológicos 16 anos depois –, o roteiro ganhou elementos que deram complexidade à sua discussão sobre identidade.
Depois de voltar a frequentar a noite paulistana com mais regularidade, Anna percebeu uma liberdade sexual inovadora entre os jovens. Veio daí a ideia de transformar o personagem principal do filme em um jovem que, além de ter de lidar com a revelação de que a sua vida familiar havia sido construída em cima de uma farsa, também passa por uma fase de descobrimento quanto à sua sexualidade, transitando entre gêneros sem a necessidade de se definir como uma coisa só.
Na entrevista a seguir, Anna Muylaert fala sobre as principais questões levantadas por Mãe Só Há Uma.
Cine Festivais: A cena que eu mais gostei em Mãe Só Há Uma é aquela em que o irmão biológico do protagonista conversa ao telefone com um amigo antes do primeiro jantar entre o Pierre e os pais biológicos. Fazendo isso você tira completamente o foco da espera ansiosa dos pais por aquele encontro e deixa claro o que importa para você naquela trama. Queria que você falasse sobre essa opção, que transparece um ponto de vista muito particular.
Anna Muylaert: É bom você falar disso, porque essa é uma cena que eu amo. A partir dela o Mãe Só Há Uma vira quase que um outro filme, muda totalmente o ponto de vista. Justamente no auge do drama existe esse ponto de virada, havia mesmo essa intenção.
O personagem do irmão, o Joca (Daniel Botelho), entra ali aparentemente como coadjuvante, mas tem uma importância muito grande no final.
Acho que o filme fala sobre algumas autoridades verticais (o pai, a mãe, a professora), e a ideia do irmão é de alguém que pode ter um diálogo em um nível horizontal. O filme vai trazendo esse personagem pelas bordas até levá-lo para o final, que aponta para a possibilidade de relações horizontais, que talvez sejam mais sinceras.
CF: No filme é forte uma ideia de que, entre os mais velhos, o afeto passa quase sempre por uma noção consumista. Isso aparece em cenas como as da adoção da irmã do Pierre e das discussões do Matheus (Matheus Nachtergaele) com o filho biológico. Hoje em dia há diversos textos indicando as novas aspirações da juventude, em contraposição ao ideal do carro e da casa própria em um condomínio fechado propagado durante anos como algo fundamental. Como você pensou esse tema no roteiro e na direção de Mãe Só Há Uma?
AM: Acho que o filme está dizendo que pra esses jovens a liberdade é mais importante do que o dinheiro, é realmente isso que você falou. Outro dia meu filho de 16 anos me disse: “eu não quero ser importante, quero ter uma vida boa”. É uma coisa que na minha geração não existia, e que eu considero um avanço.
O filme é muito sobre isso, a respeito de como a individuação é mais importante do que o sucesso para agradar ao outro. Vejo o Mãe Só Há Uma também como uma crítica a essa educação da recompensa.
CF: Cenas semelhantes em Que Horas Ela Volta? e Mãe Só Há Uma trazem personagens querendo sair de condomínios fechados, mas têm desfechos diferentes. Como você compara a Jéssica com o Pierre/Felipe, que têm como semelhança uma tentativa de ruptura com certas amarras sociais?
AM: No caso da Jéssica é uma coisa espacial mesmo, quando sai daquela casa ela está simbolicamente se libertando daquelas regras. No caso do Pierre até pensamos que ele poderia pular aquele portão, mas ele iria para onde? Por ele ser menor de idade e não poder ir embora, acho que a maneira de ele sair é sair do armário, que é o que faz logo em seguida.
Que Horas Ela Volta? falava de mobilidade social, já este filme fala mais de psicologia. Acho que o Pierre é um personagem menos brasileiro e mais universal (que a Jéssica).
CF: Além da questão psicológica, o filme traz questões de classe. Ao se mudar de uma família da periferia para outra em um condomínio fechado de classe alta, as relações sociais do Pierre são afetadas. Uma cena como a dele fritando um ovo com a irmã nunca aconteceria na casa rica, na qual ele tem a empregada e a própria mãe a seu dispor…
AM: De uma certa maneira o filme diz que na classe mais alta existe mais conservadorismo, né? Acho que o ambiente da periferia é muito mais livre para o Pierre. Quando ele chega na outra casa, parece que os pais biológicos têm muito mais vontade de controlar ele do que a outra mãe tinha.
Uma coisa que acho interessante é que o Pierre escondia da primeira mãe a sua sexualidade e o desejo de se vestir como mulher, enquanto que com a mãe biológica, com a qual se sentia desconfortável, ele quebrou a casca e se mostrou.
CF: No Que Horas Ela Volta? a estrutura narrativa é mais tradicional, trilha um caminho que fecha um ciclo e depois abre novas perspectivas no final. Gostaria que você falasse sobre como esse aspecto é diferente em Mãe Só Há Uma, no qual temática e estética estão ligadas em uma narrativa mais lacunar e não há nem mesmo um ciclo que se fecha ao seu final.
AM: Esse é um dos aspectos que eu chamo de experimental. O Que Horas Ela Volta? era um filme que, embora crítico, colocava o espectador no colo em certos momentos, trazia uma esperança no final.
O Mãe Só Há Uma é uma história de um menino caindo no buraco cada vez mais, e não vai ser tão cedo que ele vai curar esses machucados, talvez nunca. É um filme muito mais pesado, que tira, mais do que bota, o espectador no colo.
Acho que é um filme mais jovem do ponto de vista do formato e da câmera na mão. Faltam cenas essenciais para a narrativa, você não vê o Pierre descobrindo que não é filho da Araci (Dani Nefussi), por exemplo. A estrutura dramática é bem diferente, e do meu ponto de vista como realizadora eu encaro como uma tentativa de sair do conforto; é um filme adolescente, que arrisca. É quase como um recomeço para mim.
CF: Mãe Só Há Uma foi filmado em 2014, antes do sucesso de público e crítica alcançado pelo Que Horas Ela Volta? no começo do ano passado. Como você acha que essa exposição do último trabalho, e as melhoras nas condições de financiamento associadas a esse feito, pode afetar o modo de produção dos seus próximos filmes?
AM: Cada filme pede um tipo de orçamento. Acho que eu vou continuar trabalhando dentro de orçamentos médios. Quando você passa a ter um elenco maior, com gente famosa, acaba encarecendo o projeto, demandando um monte de coisa…
No sentido da produção, acredito que o meu próximo filme será mais na linha do Que Horas Ela Volta?. Estou começando a escrever a história, que é sobre machismo. Já tenho mais ou menos a ideia para ele, mas só devo sentar para escrevê-lo depois da divulgação do Mãe Só Há Uma.
CF: Na época de lançamento comercial do Praia do Futuro, filme do Karim Aïnouz que também teve a estreia no Festival de Berlim, houve diversos atos de homofobia tanto virtualmente quanto pelo abandono em algumas sessões. Você acha que algo semelhante pode acontecer com o Mãe Só Há Uma?
AM: Ainda não sei dizer, porque aqui no Brasil por enquanto só fui a pré-estreias, que têm um público diferente. No caso do Praia do Futuro acho que era um filme realmente gay, com cenas de sexo. O meu filme é mais sobre liberdade de identidade.
Tem uma cena de sexo que abre o filme, mas ela não é longa. A gente não se debruça tanto sobre isso, tratamos mais sobre a liberdade do personagem. O Pierre faz tudo e no fim você não sabe muito bem o que ele é, há uma quebra de rótulos. Isso talvez seja até mais difícil do que ser um filme gay.