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Transitar e pertencer: uma conversa sobre Um Dia com Jerusa

24/03/20 às 16:29 Atualizado em 24/09/20 as 17:28
Transitar e pertencer: uma conversa sobre Um Dia com Jerusa

Foi só a partir de reações e sugestões do público após sessões do curta O Dia de Jerusa (2014) que a cineasta Viviane Ferreira entendeu que a personagem interpretada por Léa Garcia – uma senhora moradora do bairro paulistano do Bixiga que conhece no dia de seu aniversário uma jovem pesquisadora de mercado – também poderia protagonizar um longa-metragem. Foram seis anos entre a ideia inicial para o filme e a estreia de Um Dia com Jerusa na 23ª Mostra de Tiradentes, no último mês de janeiro, dentro da mostra temática A Imaginação como Potência.

À época do lançamento do curta começavam a chegar às telas uma safra de filmes realizados pelas primeiras gerações de estudantes negros que acessaram as universidades brasileiras por meio das políticas de ações afirmativas. “A sensação que eu tinha era que antes disso a gente estava fazendo [cinema] de um lugar muito isolado, dentro de uma bolha, como se não existissem outras bolhas. Em 2014 essa bolha é rompida, a gente se enxerga e se conecta, e a partir daí eu sei que foi um marco temporal, que é o que cada um desses filmes representa para a cinematografia nacional”, recorda Viviane.

Em 2020, ano em que Um Dia com Jerusa deve se tornar o segundo longa-metragem de ficção com direção solo de uma mulher negra a chegar ao circuito comercial [após Amor Maldito (1984), de Adélia Sampaio], a cineasta demonstra menos certeza com relação ao lugar que seu novo filme irá ocupar dentro da história da representação de pessoas negras no cinema brasileiro. Em conversa com o Cine Festivais durante a 23ª Mostra de Tiradentes, Viviane falou sobre diversos temas que atravessam a realização de seu novo trabalho.

Vamos começar falando do seu curta-metragem O Dia de Jerusa (2014), que deu origem ao longa Um Dia com Jerusa (2020). Como foi a carreira do curta, o retorno do público? O que te levou a transformar ele em longa e como foi este processo? Se puder destacar a alteração na fotografia dos filmes, que são bem diferentes…

O curta teve uma carreira bem interessante nas mostras e um acolhimento do público, ainda que não tenha sido um filme acolhido pelo circuito competitivo de festivais. Mas foi um filme acolhido nas mostras, tanto nacionais quanto internacionais, num circuito não competitivo. Isso abriu uma chave pra gente de como muitas vezes o público, a audiência, e as curadorias competitivas estão desconectados. E como para o nosso processo do fazer pulsa mais, chama mais, tentar se manter com os ouvidos abertos para o que o público, pelo menos para o público que a gente se dedica a fazer, tá a fim de ver. O processo de transformar o curta num longa tem muito mais a ver com um pedido das pessoas que viram o curta do que necessariamente com um desejo ou uma identificação minha de potência. No curta eu tinha conseguido dizer tudo que eu queria dizer. Lembro que quando a gente foi lá pra Short Film Corner, em Cannes, um cineasta nigeriano que eu gosto muito, que é referência pra mim, o Newton Aduaka, me chamou e falou assim: “Vivi, este curta dá um longa, você precisa pensar sobre isso.”, e me levou a uma reunião com o presidente de uma fundação que falou que Newton tinha razão, porque havia potência para narrar essa história em um mundo.

Quando retornei ao Brasil, voltei com essa ideia de tentar reescrever o roteiro. Lembro de dizerem: “Nossa, fiquei com vontade de ver mais sobre a vida de Jerusa, conhecer mais a Silvia.”. E o público em geral nos debates dizia: “Eu tenho vontade de permanecer mais tempo com Jerusa, quando o filme acaba eu me sinto órfão de Jerusa, porque eu queria ficar mais tempo com ela.”. Quando abre a possibilidade do Longa Afirmativo [edital de fomento do Governo Federal] eu consigo me dedicar ao processo de escrita do roteiro para disputar o edital, mas internamente o meu fluxo reflexivo já era outro. No curta eu tava tentando discutir, refletir e compreender o universo da solidão da mulher negra e como isso se aplicava ao universo da mulher negra idosa. Que a gente conseguisse refletir melhor, entre todos nós, e entendermos que reduzir os impactos da solidão na vida de outra pessoa é uma realidade compartilhada e não é uma responsabilidade só das relações matrimoniais ou das relações familiares. É uma responsabilidade de cada um de nós que cruzamos os caminhos uns dos outros, independentemente do laço de proximidade.

Já no longa, obviamente o entorno nos afeta. A gente tá vivendo um período em que a morte de jovens negros têm crescido cada vez mais no Brasil, e a morte pela mão do Estado. São mortes violentas, e cada vez em uma quantidade maior de corpos tombando ao mesmo tempo, e uma quantidade maior de tiros. Dá uma sensação de sufocamento porque às vezes eu tenho medo de a gente não conseguir parar isso, sabe? É desesperadora a forma como têm nos matado, como tem sido ameaçada a nossa possibilidade de envelhecer. A juventude negra tá sendo impedida de envelhecer e parece que ninguém tá vendo, parece que tá tudo bem. O monstro que é o Estado e a parte do seu braço armado tá matando a gente, tá ameaçando a gente, e parece que ninguém enxerga. No longa eu também me permito fazer uma releitura daquilo que eu tinha proposto. Então o longa é um outro filme. A gente muda o título porque de fato é um outro filme. Ele mexe em outros lugares. Tem a coluna vertebral que une essas duas mulheres, que é o fato de elas partirem e se encontrarem em seus lugares de solidão no mundo, mas no longa a gente vai tentar ativar outras camadas.

O filme abre de fato com essa perseguição do Estado a um corpo jovem, com essa ideia de “o que o Estado tá fazendo lá?”. É pra provocar mesmo, é pra deixar a pergunta em aberto. Um corpo que pedala, pedala, que tenta ir e nunca sai do lugar. Porque historicamente a gente tá correndo dessa morte pelo Estado e parece que a gente continua tentando correr no mesmo lugar. Então a morte, a reflexão sobre a morte ou sobre as formas de morrer, ganha um espaço grande no longa. E não é que a população negra esteja reivindicando um direito de tornar-se semente da humanidade (risos). Não é que a gente não queira lidar com esse fato certeiro e humano que é a morte na vida de qualquer indivíduo. Mas a gente quer poder morrer sem pressa, sabe? A gente quer morrer sem pressa, a gente quer poder morrer em paz, de maneira tranquila. A gente quer poder morrer de uma maneira que a gente não precise sofrer por não ter um acúmulo de memórias suficientes pra celebrar a vida daquele ente que partiu. A gente tem sofrido e tem interrompido vidas, as que partem e as que ficam, porque a gente tem intensificado o buraco e a dor: “Ele poderia…”, “Ele era um menino tão promissor… era um menino que poderia produzir tantas memórias…”. A gente tem sido alijado disso, e esse é um debate que a gente quer fazer. E mais do que fazer o debate, o filme assume um ritmo que é do: “Já imaginou como seria se as pessoas pudessem morrer sem pressa, no tempo delas?”. Que delícia cada pessoa ter o seu tempo de vida, a sua possibilidade de viver aquilo que quiser, como quiser.

Nesse processo a gente enfrenta também as mudanças do que temos refletido, sobre as nossas formas de fazer cinema. Tenho refletido demais sobre o poder de invenção. Quem é que pode inventar no nosso país? Quem é que pode imaginar, se a gente tá o tempo inteiro fugindo da ameaça constante de morrer? Qual é o tempo, qual é o fôlego que a gente tem de imaginar? Então a composição da equipe busca uma generosidade e uma solidariedade entre a gente. Eu tava indo pra direção do meu primeiro longa de ficção, e a gente sabe como é escasso o acesso a recursos para colocar um projeto de ficção de pé. sendo conhecedora e contemporânea de várias outras mulheres negras que estavam fazendo coisas maravilhosas, curtas-metragens, mas sem possibilidade de avançar, sem possibilidade de assumir chefias de equipe de projetos maiores. Ao mesmo tempo a gente tendo que lidar com esse conflito esquizofrênico que é: “Não tem, eu procurei mulheres negras mas não tem.”. Mas todas nós estamos aqui, sabe, estamos vivas. “Eu procurei diretora de fotografia [negra] e não tem, elas não têm experiência.”. Então o filme também se propõe a quebrar essa barreira.

Nesse diálogo a gente muda de fotógrafo. Quem fotografou o curta [O Dia de Jerusa] foi o Thiago Quadrado e o Túlio Ferreira, dois meninos que tinham estudado comigo na escola de cinema, e quem fotografa o longa é a Lílis Soares [Lílis ganhou o prêmio Helena Ignez na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes pelo seu trabalho em três filmes exibidos no festival]. O processo de construir o conceito fotográfico do longa foi muito maior, a gente trabalhou por muito mais tempo. Começamos a dialogar em fevereiro para um set que iríamos abrir em novembro. Então conseguimos garantir o storyboard de todo o filme, conseguimos discutir muito o conceito, qual era a cor que a gente queria pra esse filme, como que essa câmera se movimentava, qual era a câmera do corpo de Jerusa, qual era a câmera do corpo de Sílvia. Quando a gente introduz uma terceira câmera, que é uma [câmera] subjetiva da energia, a gente batiza de eguntim [termo criado pela equipe que mistura Egun, espírito de pessoa falecida, e “teen”, adolescente em inglês), é uma energia do campo extrafísico. O campo extrafísico tá presente no filme todo tempo, e aquela história está sendo embalada por esse campo extrafísico, porque os nossos desencarnados estão por aí, eles estão convivendo com a gente todo o tempo, e a gente coloca o olhar deles em perspectiva ao longo da narrativa.

O filme vai construindo uma linha de autoconhecimento e reconhecimento da personagem por meio de algumas metáforas de linhagem e de pertencimento, como o rio, a menstruação (esse elo de sangue que liga as mulheres), a saia branca, entre outras referências. Você cita bastante em entrevistas a cidade de onde veio, a sua comunidade, o seu lugar no mundo. Como essa questão de pertencimento perpassa o filme e também a sua trajetória como cineasta?

A gente tem uma realidade econômica no país em que a concentração de recursos está no eixo Rio-São Paulo. Ela tá no Sudeste, e quando expande um pouquinho vai pro Sul. E essa concentração de acesso a recursos provoca no país uma dicotomia gigante. A gente vê, porque eu não faço parte desse grupo (risos), mas se constrói uma ideia de Brasil, de que o Brasil é restrito àquilo que acontece no Rio e em São Paulo. Se não aconteceu no Rio e em São Paulo o mundo não sabe. E aí as narrativas, as experiências humanas, as diversas formas de existência, acabam sendo suprimidas. Uma mulher negra que nasce no Rio Grande do Norte se movimenta de uma forma diferente, o corpo dela caminha de uma forma diferente, as referências simbólicas dela caminham por outro lugar, é um outro repertório. Então eu acho que é honesto a gente informar de que lugar a gente tá olhando pro mundo. É uma questão de honestidade porque você consegue contribuir com que a outra pessoa compreenda o que você tá querendo comunicar, com aquilo que você coloca na tela.

Eu acho que é generoso. Mais do que ser um ato de reconhecimento e de orgulho do lugar de onde vim, do lugar que sou – e tenho mesmo muito orgulho – tem um traço de generosidade que é dizer: “Olha, eu sei que o que eu apresento causa estranheza, e causa estranheza porque tudo que é desconhecido é estranho”. Tudo que não é sabido é estranho. Quando se trata dos outros brasis, esse Brasil que concentra o poderio econômico, ele não dedica pra gente nem o tempo da curiosidade. Nem o tempo do: “Poxa, é diferente… me causa estranheza, mas deixa eu ver o que é isso, deixa eu perguntar o que é, deixa eu dizer que eu não sei, pra entender o que é”. Depois que eu entendo, aí eu vou definir se eu gosto, se eu não gosto, se eu compreendo, se eu não compreendo, sabe? O exercício da curiosidade do que são as nossas experiências em outros lugares, em outros territórios.

Quando a gente olha pra quem concentra o poder de narrar, pra quem concentra o poder de inventar nesse país, nem sempre a gente tem direito. E quando a gente tem a possibilidade de acessar algumas frestas de fazer não dá pra se colocar no mundo como um corpo solitário. Não dá pra se colocar no mundo como se toda e qualquer estranheza que eu apresento, todo e qualquer desconhecido que a gente possa narrar nas nossas obras, tenham sido fruto do divino espírito santo em uma noite de lua cheia, iluminada. A maneira como narro, a maneira como enxergo as narrativas audiovisuais em camadas e proponho narrativas em camadas, é muito do que é no Coqueiro Grande [na periferia de Salvador], é muito daquele lugar, é muito da forma como as pessoas se relacionam naquele lugar, como aquele espaço é organizado. E aquelas pessoas precisam saber que quando eu transito em outros espaços eu transito olhando, afetando e sendo afetada a partir daquilo que aquele espaço e aquelas pessoas contribuíram para minha constituição.

Essa dinâmica toda é defender o direito de pertencimento. Porque a maneira como o audiovisual impõe pra gente uma forma de fazer é como se a gente tivesse que se destituir de tudo que é de fato nosso, porque existe uma fórmula, existe uma forma que você vai colocar na tela. E aí a curadoria vai adorar, a crítica vai aplaudir, os jornais vão falar, os júris vão ficar desesperados tentando definir, descobrir, quem foi que melhor untou aquela fôrma. Porque tudo o que eles querem saber é da fôrma, pouca importa o conteúdo. Pouco importa se naquela fôrma você tem um bolo de chocolate, um bolo de cenoura. Eu acho que é o máximo que se consegue sair da dinâmica das coisas: ora você tem um bolo de chocolate, ora você tem um bolo de cenoura, e então: “Ah, o bolo de cenoura desse ano, veio carregado de chocolate, com muito leite, etc…”. São muitos lugares no mundo, são muitos corpos, são muitas individualidades, são muitas coletividades, e lembrar sempre Coqueiro Grande, lembrar sempre a Bahia, é por conta de tudo isso, sabe? É dizer que circular pelo mundo é importante, é importante pra todo mundo o processo de deslocamento, mas o direito de circular, o direito de transitar, ele não pode vir acompanhado da obrigatoriedade de você abandonar o seu direito de pertencimento.

Um Dia com Jerusa, entre outros temas, faz um exercício de reescrita do papel do negro na história, que faz parte desta busca pela ancestralidade, por afirmar um lugar no mundo, sobretudo em relação à fundação do bairro do Bixiga, onde ele é filmado. O filme reivindica a construção, a fundação deste bairro. Porque a escolha deste bairro, como foi esta pesquisa, como ela entra no filme?

O Bixiga já faz parte da história desde o curta-metragem, muito do que tá no roteiro hoje é material da pesquisa anterior, da vida pregressa de Jerusa. Eu adoro o processo de pesquisa, é interessantíssimo. Muitas vezes o que fica de fora sobre as personagens e os lugares que elas ocupam e transitam no mundo acaba sendo mais interessante do que aquilo que a gente consegue pinçar e colocar dentro da história. Eu morei no Bixiga, e ele é recheado de marcos da presença negra que antecede a presença italiana naquele bairro. O Bixiga é recheado de sobrados. E você chega lá e tem muitas senhoras. Eu fui gravar uma festa chamada Festa da Mãe Negra, na igreja de Nossa Senhora do Rosário. A Festa da Mãe Negra é pra vender o feijão e arrecadar grana pra Festa de São Benedito, é lá perto da [Paróquia da] Achiropita mesmo, uma das três festas calendarizadas.

Eu fui registrar a Festa da Mãe Negra e conheci uma senhora preta que morava sozinha em um sobrado no Bixiga. Era um momento em que estava rolando uma pujança da especulação imobiliária, e eu entrevistei ela pra outro filme. A gente estava trocando ideia e ela falando da importância de não sair daquele lugar porque a família dela tinha chegado ali há muito tempo, e que eles ficavam aproveitando o fato de a família não ter poder econômico para garantir a manutenção de um sobrado daquele tamanho, naquele lugar, pra desvalorizar o valor do imóvel, e que enquanto ela estivesse viva ela ia ficar lá – o sobrado todo poderia cair aos pedaços mas ela ia ficar lá. Aquilo me tocou muito porque eu fiquei pensando: “Caralho, a gente historicamente tá disputando os territórios e a gente vive – digo ‘a gente’ a comunidade negra – como nômade, né?”

Primeiro que o bairro era uma grande fazenda, em um período em que o centro de São Paulo era cortado por rios navegáveis. Até hoje eu ando pelo centro de São Paulo e fico pensando: “Velho, que brisa foi essa? Que brisa errada foi essa…?”. Eram rios navegáveis no centro da cidade, entende? Não consigo entender. A população negra que foi escravizada no interior de São Paulo, quando fugia, fugia pra aquele lugar, fugia para aquela região, porque conseguia prover-se a partir do rio. Fugia para aquela região porque ali no Anhangabaú tinha uma grande feira em que se vendia de tudo, de gado a gente. Foi um espaço que foi sendo ocupado pela população negra. No processo da imigração italiana que todo mundo conhece, [foi] em condições desumanas? [foi] Em condições desumanas. Mas tinha do Estado aquele quinhãozinho, aquele pedacinho de terra. Mas o dinheiro que o estado de São Paulo pagava para que os imigrantes italianos permanecessem na cidade não permitia que eles disputassem economicamente os territórios ocupados pelas pessoas brancas, então eles iam disputar os territórios ocupados pelas pessoas negras. Muitos deles recebiam o direito de aquisição na Justiça. As pessoas se recusavam e eles recebiam o direito. Essa é uma história com a qual São Paulo lida de uma maneira muito perversa, como se não existisse. E você tem o Bixiga, Bela Vista, todo ano na televisão com a sua festa do macarrão, e com várias cantinas italianas e não sei o quê.

E você tem a Vai Vai [escola de samba]. Quando tem um rio dentro da casa de Jerusa é uma alusão à defesa que a escola de samba faz à nascente do rio Saracura. Por que a Vai Vai não sai daquele lugar? A Vai Vai fica ali e se obriga a manter viva a memória do Saracura. A Vai Vai está na cabeceira do Saracura. E essas histórias todas são referências históricas que vêm pro filme. Fazem você olhar pra relação com a escola de samba, por exemplo, e encontrar essas informações, dialogar com as pessoas pretas que vivem no Bixiga e que trazem essas narrativas pra gente. Porque é importante a gente tensionar esses questionamentos históricos, e no final das contas a gente tá disputando narrativa, né? Uma mentira contada diversas vezes vira verdade. É o caso da história do Bixiga contada como um bairro essencialmente italiano dentro da cidade São Paulo, assim como a Liberdade em relação aos japoneses. Se você chega no bairro da Liberdade você não tem uma referência da presença negra naquele lugar. É difícil você dizer a um menino de dez anos que a Liberdade foi um bairro negro, entende? É difícil você dizer que aquele território foi ocupado por outras pessoas e que a maneira como aquelas pessoas foram expulsas do seu território é desumana, é desleal. E realmente é graças à Vai Vai e às pessoas pretas que permanecem, porque o Bixiga tem algumas famílias pretas que ficam ali de pirraça, que o Bixiga preto sobrevive. Sobrevive na energia da pirraça. E a energia da pirraça é a energia das águas, é a energia do rio. Você pode tentar acabar com todos os rios, mas você não consegue resolver o problema das enchentes. E eu acho que a história do Bixiga parte desse lugar. E da indignação. Essa é uma reivindicação que o samba em São Paulo faz há muito tempo, a reivindicação da construção da cidade.

O seu filme foi feito com uma equipe composta por 95% de mulheres negras, o que é extraordinário. Ainda na questão do pertencimento, você cita em entrevistas também alguns exemplos de associações e coletivos com os quais está envolvida, como a APAN – Associação dos profissionais do Audiovisual Negro e o Centro Afro Carioca de Cinema Zózimo Bulbul. Você busca alguma filiação estética com o cinema negro brasileiro e mundial? Em que momento e de que formas você teve contato com essas referências fora dos cânones europeus-hollywoodianos-brancos?

Primeiro me encantam muito as experiências coletivas de resistência da população negra. Me encanta muito a experiência da Irmandade da Boa Morte, a experiência da Sociedade Protetora dos Desvalidos. Me manter próxima às questões contemporâneas ligadas ao audiovisual para tentar garantir uma presença de realizadores negros, de produções negras mais circulantes, como o Centro Afro Carioca de Cinema e a APAN, vem desse lugar. Eu acredito na nossa potência coletiva. E não é de um lugar romântico, é uma potência coletiva inclusive porque há uma consciência gigante de como somos distintos. Como dentro de um terreiro, cada um tem um orixá, cada orixá é uma energia. Se eu tô precisando que alguém carregue um caixão, eu não vou chamar o irmão de Xangô, porque o caixão vai ficar lá, eu vou me irritar com ele e a gente vai brigar. Se eu precisar moldar o ferro, eu não vou chamar alguém de Omulu, porque não é a energia do cara; se fosse barro, beleza, mas não com ferro. Eu vou ter que saber quem eu chamo. É essa capacidade de aglutinar uma potência diversa sob um mesmo guarda-chuva que as organizações negras têm historicamente, que os terreiros fazem, que as escolas de samba fazem. Você chega dentro da escola de samba e a passista vai ser passista. Ela vai ser chamada para aquilo. Se você precisar que ela vá bater o tambor ou outras coisas ela vai revoltada, porque ela tá dedicada ao estudo do corpo, para dar conta daquele espaço. A relação com essa organização vem da crença de que é possível a gente reproduzir esse modelo, ou se inspirar nesse modelo, para garantir avanços também no campo do audiovisual.

Do ponto de vista estético tem dois caras pelos quais eu me oriento muito na dinâmica do fazer. Um é Zózimo Bulbul. Zózimo é muito presente nas minhas reflexões cinematográficas e nos resultados daquilo que faço. No longa você percebe inclusive uma relação mais próxima do Alma no Olho (1973) do que você vai encontrar no curta. Você vai enxergar Alma no Olho ali. Você vai enxergar Abolição (1988). A Vivi Pistache [Viviane Pistache], do Geledés [Instituto da Mulher Negra], falou assim: “Caralho, o filme é lento mas eu fico com a sensação de estar correndo atrás de Jerusa o tempo inteiro e eu acho que não vou dar conta…”. O Abolição te dá essa mesma sensação. Abolição é um filme de duas horas e tanto, você precisa de disposição para assistir um documentário de praticamente duas horas e meia, duas horas e quarenta, e ele te bombardeia com tanta informação do ponto de vista histórico, ele disseca a história nacional por tantas perspectivas ao mesmo tempo, revisita, dá um passo na história de antes de 1988. Quer dizer, Abolição se propõe a partir de 1500 e chegar a 1988 em duas horas e meia. O Zózimo constrói várias camadas. Tem horas que você tá dentro de Abolição e você fala: “Zumbi foi foda, Zumbi foi massa”. De repente você tá num lugar em que você fala: “Porra, mas ainda existe o neto e o bisneto de princesa Isabel feliz porque ele tem a posse da pena com que ela assinou a Lei Áurea.” E tem a Benedita da Silva, jovenzinha, no morro do Rio de Janeiro, dizendo: “Olha, essa Lei Áurea foi ineficaz.”. Então você conseguir sair de Isabel, passar por Zumbi, chegar em Benedita e no final de Abolição falar assim: “Tudo isso tá ok, mas e daqui pra frente?”. É um filme que te aponta a olhar pra frente. Um filme que foi realizado no momento em que o Brasil disputava a Constituição de 1988.

Durante a Assembleia Constituinte a gente tinha a presença ativa de Lélia Gonzalez [antropóloga e política brasileira], a gente tinha a presença ativa de Benedita [Benedita da Silva, política brasileira], a gente tinha a presença ativa de Abdias [Abdias Nascimento, professor e ativista brasileiro], a gente tinha uma presença pujante de corpos negros costurando a Assembleia Constituinte, e ao mesmo tempo tinha um olhar preto cobrindo tudo e dizendo porque aqueles corpos estavam se movimentando daquela forma. Porque eram tão importantes todas essas conquistas garantidas na Constituição. E Jerusa [Um Dia com Jerusa] bebe dessa pretensão do Abolição como linguagem, no sentido de construir diversas camadas narrativas. A gente consegue ler o filme de diversas formas. Um filme que, assim como Abolição, você diz: “Ok, vi a primeira vez e refleti isso, vou ver a segunda e vou refletir aquilo, vou ver a terceira e vou refletir aquilo outro.”. É um risco consciente.

Olhar para o que o Zó [Zózimo Bulbul] fez em Abolição é olhar para a oralidade. A oralidade é cinematográfica. A nossa existência coletiva está fincada na oralidade como elemento. Não existe uma foto de Luísa Mahin [personagem histórico brasileiro da luta negra]. Não existe uma imagem de Luísa Mahin na face da terra. Mas a oralidade não nos deixou esquecer que Luís Gama [escritor e Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil] teve uma mãe. A história oficial tentou nos ensinar que Luísa Mahin não existia, era um delírio da cabeça dos falastrões. E a gente não tem dúvidas de que Luísa Mahin foi uma mulher preta que existiu, que articulou, a gente sabe a história dela. Quando as pessoas mais velhas falam sobre os trajetos de Luísa Mahin, da Bahia pro Maranhão – agora é bem mais fácil porque Um Defeito de Cor [livro de Ana Maria Gonçalves] virou best-seller – a gente consegue entender quem foi essa figura, de quem a gente tá falando. Mas quando Ana Maria Gonçalves consegue trazer, materializar no livro a Luísa Mahin, e isso é reconhecido, foi a força da oralidade. Quando escutamos, conseguimos visualizar aquele mundo, aquele tempo que a gente não viveu. A gente consegue visualizar aquele mundo que historicamente tem sido imaginado por nós coletivamente, e o único recurso que a gente tem assegurado é a nossa capacidade de falar sobre. A gente precisa falar sobre a gente. A gente precisa falar o tempo inteiro porque a gente não sabe em que momento vai chegar alguém com chicote na mão tentando silenciar nosso corpo. Então o filme dialoga com esse lugar, com essa sensação que a gente partilha coletivamente. Se a tua experiência de vida não te exigiu entender ou vivenciar esse lugar da oralidade, vai ser difícil mesmo alcançar. Não digo que é impossível, mas vai ser difícil porque você vai precisar conversar mais com alguém que parta desse lugar, sabe?

Ontem eu conversava com Maíra [Maíra Azevedo, atriz] depois de Até o Fim (filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2020) e ela estava falando de como as nossas relações com o cuidado são atropeladas por rompantes de grosserias. “Menino porra! Não vai pra lá! Eu não disse pra você não ir pra lá?!” Porque você não tem tempo de dizer: “Oh, menino você não pode ir pra praça à noite porque você é um menino preto, os caras vão confundir o seu guarda-chuva com uma arma e vão atirar em você”. Então o menino tá indo na inocência, você tem que interromper, e interrompe no susto. Ele volta puto porque ele só queria jogar bola. Então você vai acarinhar de outra forma… é um tempo muito curto pra você conseguir dar conta de todas essas coisas, e o seu único recurso é a oralidade.

Eu tenho tentado acreditar e investigar a potência da oralidade como linguagem. Olhar pro cinema de Ousmane Sembène [cineasta senegalês] e entender como ele não se afasta da figura do griot [indivíduo que na África Ocidental tem por vocação preservar e transmitir as histórias, conhecimentos, canções e mitos do seu povo]. Ele utiliza a figura do griot de diversas formas, e essa é a minha cachaça. Na nossa realidade, na nossa perspectiva, como conseguir trabalhar com o griot de diversos modos, de diversas formas. É olhar pro cinema do Sissako [Abderrahmane Sissako, cineasta mauritano] e ver aquele tempo, sabe? O tempo de ir em busca da felicidade, é lindo. É você ter planos que dão tempo do corpo decidir ir, decidir vir… dar tempo desse corpo dançar na tela, só o corpo, sem pirotecnias com a câmera, mas o corpo que te convida ou que te provoca, que não tá parado. Eu tô falando desses três porque foram as referências sobre as quais eu refleti muito. Fui olhar muito a fotografia do Sissako pra pensar a fotografia do longa. Olhava muito para o que ele faz e para o que ele propõe com essa fotografia como tempo, como espaço pro corpo. Fui olhar muito pra forma como Sembène localizava o griot. Fui olhar pra epifania de informações de Abolição, para encaixar todas essas referências históricas.

Também fui olhar para quadros renascentistas para entender a diferença da pintura, da tonalidade renascentista italiana, espanhola e francesa. Me diverti. Fui olhar pra aqueles tableaus renascentistas. A gente conseguiu construir um tableau que abre o filme, e há ali uma disposição para o diálogo com outras formas de expressão, o diálogo com outras estéticas para além das estéticas negras. Há ali uma curiosidade artística de misturar as coisas e ver o que sai, ver o que dá quando colocado desde a nossa perspectiva. Fazer isso foi massa porque no meu encontro com Lilis [Lílis Soares, fotógrafa de Um Dia com Jerusa] uma das coisas que conectou a gente foi a paixão pela luz renascentista. Ela tinha estudado na França e eu sou apaixonada pelo Louvre. Foi muito louco porque a gente tava no processo de um outro filme quando a gente se conheceu. Eu estava fazendo a produção executiva, ela ia fazer fotografia. A gente fez uma reunião, eu estava em Paris, e ela falou: “Nossa, você tá em Paris, eu já morei aí…!”. Quando acabou a reunião a gente conversou e eu disse: “Cara, eu to aqui e eu adoro… a luz renascentista, é foda…”, e ela falou: “Cara, eu também adoro! Que foda, que massa.”, porque é difícil a gente encontrar outras pessoas pretas que tenham vivido essa experiência, que a gente possa trocar. Então eu falei: “Mano, quer fotografar o meu filme?”. Foi desse jeito, e teve referência de todos esses lugares.

A sua protagonista é a Léa Garcia, que estrelou Ganga Zumba (1964), de Cacá Diegues, e participou ativamente do cinema brasileiro desde então. Mas você recoloca ela em uma nova situação de agente histórico, em uma situação de construção de memória coletiva, como você citou no debate, em um contexto de revisão histórica. Como você localiza Um Dia com Jerusa na história do cinema brasileiro em relação à representação do negro na tela?

Talvez eu não saiba te responder esta pergunta. E é bem difícil eu falar que eu não sei responder porque eu sou bem pretensiosa e tento responder tudo que me perguntam (risos). Porque eu quero também respeitar o meu tempo. Estou vivendo um tempo em que tem sido mais orientador e urgente fazer do que entender e me dedicar a entender onde as coisas que eu tô fazendo estão localizadas na linha do tempo, comparadas ao que não foi ou ao que já foi feito. Acho que essa é uma coisa que se faz com o tempo e com ajuda de outros debates. Eu realmente não saberia te responder isso porque eu tô vivendo em um tempo histórico tão massa, em que está acontecendo tanta coisa, que tem tanta gente preta filmando em vários lugares, que eu não sei. Eu realmente não sei.

Talvez eu consiga dizer do marco histórico do curta, porque a partir de 2014 realmente a paisagem cinematográfica no Brasil mudou. A partir de 2014 você tem as primeiras gerações de estudantes negros que acessaram as universidades por meio das políticas de ações afirmativas, colocando seus filmes no mundo. Então a gente se encontra, e se reconhece, e vê outras coisas. A sensação que eu tinha era que antes disso a gente estava fazendo [cinema] de um lugar muito isolado, dentro de uma bolha, como se não existissem outras bolhas. Em 2014 essa bolha é rompida, a gente se enxerga e se conecta, e a partir daí eu sei que foi um marco temporal, que é o que cada um desses filmes representa para a cinematografia nacional. Eu sei que pro cinema negro cada um desses filmes representa um tijolinho, representa a potência, a inspiração e a respiração de que a gente está encontrando um caminho, de que a gente está buscando formas, buscando alternativas, e de uma maneira cada vez mais coletiva. E quando eu digo de uma maneira cada vez mais coletiva não é que está todo mundo se juntando pra cada um fazer o filme um do outro, não é isso. Cada um está ralando no seu canto. Mas saber que você não é a única pessoa preta pensando cinema no Brasil é fabuloso, é fantástico. Primeiro porque você se afasta de uma ideia de loucura, né? Seríamos todos loucos demais. Talvez sejamos. Mas você se alimenta de alguma forma.

Talvez também seja a relação que o cinema negro tem estabelecido com essa história do cinema nacional que é a de “tô nem aí”. Estamos narrando pra uma galera que historicamente não recebeu coisas pensadas pra ela. Pra essa galera é quase uma outra coisa. Porque a gente está fazendo com recursos ínfimos, em condições outras, e sem preocupação de resolver as lacunas do cinema nacional. Não tô preocupada com a crise narrativa dos brancos, sabe? Eu não quero que eles aprendam a narrar pra gente, não. Mas não conte isso pra ninguém… (risos).

Tá certo, já tem muito mundo narrado por branco mesmo. E sobre os próximos projetos, já tem algum em vista?

Eu sou polivalente. Sou pisciana com ascendente em peixes, então a capacidade de imaginar aqui é grande (risos). Tenho muitos projetos sendo desenvolvidos em paralelo, mas dois em especial estão na ordem de prioridade. Eu falei dois e eu pensei: “Não, são três, eita porra, são quatro!” (risos). Mas pensando em prioridades, tem uma série que a gente está trabalhando que é sobre a vida de duas advogadas sexagenárias pretas que disputam no meio corporativo, duas irmãs gêmeas. Outro é a cinebiografia da Lélia Gonzalez, que eu estou trabalhando há quatro anos, e chegando nesse momento de distribuição do Um Dia com Jerusa esse é o projeto que assume o lugar de prioridade dentro da casa. Depois disso tem a história de Pizzolato [personagem citado em Um Dia com Jerusa], tem… tem mais uns três projetos de longa sendo gestados.

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