Filme-monstro, como foi chamado pelos seus próprios realizadores em debate na 23ª Mostra de Tiradentes, de onde saiu com o Troféu Barroco de melhor filme da Mostra Aurora, Canto dos Ossos é um conjunto disforme de referências e experiências com a imagem e a narrativa que traz para a tela uma vibração geracional genuína ao retratar seus atores/personagens flanando noite adentro pelas cidades de Búzios e Canindé.
Soma-se a isso um desejo do filme e dos diretores de ser algo não reconhecível, monstruoso. Um tanto Nouvelle Vague, pelas suas deambulações; um tanto David Lynch, pela liberdade imagética; um tanto Nan Goldin, pelo retrato underground, o filme de Jorge Polo e Petrus de Bairros desafia pela sua inconstância e heterogeneidade. Leia a seguir nossa entrevista com os diretores.
Vocês são diretores jovens, mas já têm um certo percurso com curtas-metragens, experimentais e de gênero. Petrus co-dirigiu Buraco Negro (2017), um longa-metragem, com Helena Lessa. Podem falar um pouco da formação e da produção anterior de vocês?
Petrus de Bairros: Eu realizei esse longa-metragem, Buraco Negro, com a Helena, quando eu tava na faculdade (eu sou de Fortaleza, mas acabei cursando cinema na UFF), e é um longa que teve uma circulação e tal. A gente às vezes também não parte dizendo que o filme é isso ou aquilo, mas as pessoas vão colocando nos lugares, e esse é um filme que circulou num festival de cinema experimental no MAM, o Ecrã, na Mostra do Filme Livre, mais como filme experimental, e no qual as pessoas também reconhecem elementos de gênero de terror. Então eu acho que trouxe um pouco disso pro Canto dos Ossos, um pouco dessa experimentação… não sei se experimentação, mas de riscos, de apostas…
Então vocês encaram o Canto dos Ossos como uma continuidade?
Jorge Polo: É, os curtas que eu fazia era muito com amigos que não tinham uma pesquisa de teatro, de encenação, de atuação. Eu acho que sempre teve uma coisa de um fantástico estranho ali, mas uma coisa que o Canto dos Ossos trouxe pra gente, enquanto uma experiência coletiva, foi a possibilidade de contar com atores e atrizes que já têm uma pesquisa nesse sentido, que trouxeram outras possibilidades de experimentação. A gente tentou misturar isso com amigas e amigos, pessoas mais ou menos conhecidas. Geralmente eram pessoas que a gente já tinha trabalhado ou tinha alguma proximidade. Acho que teve um pouco disso e também de tentar outras coisas, de ir um pouco pra outro lugar…
O filme passa a impressão de ser uma produção bastante colaborativa, sobretudo com os atores. Como isso se verificou na prática?
Petrus: Eu acho que a própria criação do filme, pelo menos da nossa parte, veio das pessoas que a gente chamava pra estar nele, principalmente as que estariam atuando. Foi um processo bem de conversa e de abertura pra mudanças, pra criar juntos alguma coisa… de diferentes maneiras, em alguns casos mais, em outros menos. Foi um processo bem colaborativo, Não só com os atores. A gente pode estender o mesmo pra equipe de foto, pra equipe de arte, de som, enfim… Porque era sempre uma restrição… quer dizer, não que necessariamente se a gente tivesse dinheiro não precisaria ser assim, mas até por questão de limitação de produção, as coisas eram muito criadas ali, com repertório que a gente já tinha construído anteriormente, sabe? Estávamos muito abertos ao que era possível, ao que as pessoas tinham interesse de fazer.
Jorge: É, a gente tava morando com a Maricota e a Paula [Paula Haesny Cuodor]… e quem mais…? A Jupyra Carvalho. A gente tava morando com a Maricota e ela disse: “Vamos fazer um filme no Canindé.”. Ela tava com uma ideia de um filme de terror. Aí a gente ficou uns cinco ou seis dias lá, todo mundo nessa mesma casa, da família dela, que é na zona rural de Canindé. Eram pessoas que a gente já conhecia há alguns anos. Por outro lado, a gente convidou a Jupyra porque a gente viu uma peça dela em Fortaleza, Con TraNatura, que a gente achou muito incrível… tinha alguma coisa que pulsava ali que a gente queria de algum jeito trazer pro filme, ou que a gente criasse uma terceira coisa. E a Helô [Heloise Sá] também, a gente tinha trabalhado num filme que ela tinha trabalhado… ela é amiga da Bárbara [Bárbara Cabeça], que foi assistente de direção e fez produção também, dessa parte de Canindé e de umas partes de Búzios. Então foi muito dessas redes que foram se criando, e eu acho que as redes têm muito a ver com esses lugares por onde a gente passou, seja a UFC (Universidade Federal do Ceará), a Federal Fluminense (UFF), a Vila das Artes…
Canto dos Ossos foi filmado em várias localidades, e esta heterogeneidade, que é muito interessante, aparece nas imagens, na linguagem e na narrativa. Filmar com equipes diferentes em lugares diferentes foi uma escolha mais ligada à produção ou vocês queriam que estas diferenças estivessem impregnadas nas imagens, na narrativa?
Jorge: Eu acho que partiu um pouco dessa questão da produção. A produção mexia com o roteiro, a atuação mexia com a produção, e tudo se imbricou muito. Nesse sentido, lá no Canindé a gente tinha esse lugar em que a gente podia ficar durante a semana e em Búzios eu morei lá dos sete anos até fazer faculdade, então tinha espaço pra gente ficar também. Então partiu muito dessa facilidade de poder receber as pessoas nesses dois lugares.
Nós filmamos Canto dos Ossos em quatro etapas. Teve uma temporada que foi de 30 dias, e ninguém podia ficar 30 dias trabalhando em um filme sem receber adequadamente -a gente não tinha apoio nenhum de financiamento -, então a gente ia alternando as equipes e cada equipe chegava e a gente sentava pra conversar e pensar como essa pessoa poderia potencializar aquelas imagens, os sons. Acho que teve muito a ver com isso.
Petrus: Acho que teve dois movimentos. Por um lado tem isso que o Jorge falou, mas acho que também teve uma coisa de a gente começar em Canindé e a gente sentir que ainda não era assim, que ainda podiam se desdobrar mais coisas. É por isso que a gente acabou criando essa parte em Búzios. Foi mais ou menos assim?
Jorge: É, e tinha a Rosalina [Rosalina Tamiza, atriz], né?
Petrus: Sim, sendo que a gente pensou isso lá em Canindé, de fazer uma cena que pudesse se conectar com ela.
Jorge: É, a gente colocou algumas deixas no roteiro e na filmagem pra poder criar conexões depois, porque a gente filmava e voltava a ver e a pensar o filme junto com a equipe antes de continuar a história.. Por exemplo, aquele momento em que a Maricota vai pra Búzios, o Diego vai pra Búzios, encontra o personagem do fotógrafo, o Gabriel, e depois com a Naiana… Tinha uma coisa naquela cena que elas se beijam na praia, e o Gabriel está tentando relembrar o que aconteceu quando ele teve a cicatriz… Era uma ideia de uma cena que a gente ia fazer só que acabou caindo e se transformando em uma outra coisa, e a gente tentou abraçar isso, essa confusão do personagem, e criamos uma outra cena… teve muita coisa que a gente teve que lidar no sentido de costurar depois.
Eu falei um pouco no debate dessa relação entre o documentário e o cinema de gênero que eu acho que o filme de vocês tem. Documentário talvez seja uma palavra ruim, em desuso, mas algo como o registro de uma realidade, de um tempo. E talvez todo filme de gênero de baixo orçamento seja uma espécie de documentário nesse sentido, porque é um gênero de espírito adolescente, então acaba sendo um retrato mesmo de uma geração. Vocês enxerga isso no filme?
Petrus: Eu não vejo que tenha isso. A não ser no sentido… eu acho que todo filme é um documentário, se for pensar por esse lado. Mas lembrando o [cineasta japonês Yasujiro] Ozu, ele falava que nunca tinha inventado um personagem, que o personagem, mesmo que não fosse aquela pessoa, era alguém que tinha aquela característica ou falava algo que outra pessoa que você conhece fala, mas é da vida, né? Então assim, acho que não tem nada especificamente documental no filme. Nesse sentido mais clássico, vamos dizer… não mais que os outros filmes de ficção. Acho que tem talvez uma relação com o tempo que faça pensar nisso, mas eu acho que são apostas de encenação, não é uma relação com documentário…
Jorge: É, eu vejo mais uma relação com dança e com teatro, por exemplo, performance… mais no sentido de que existem os jogos de cena, e eles abrem caminho para outras coisas, acidentes… E pela agilidade da imagem, no sentido de passar uma pessoa atrás no quadro, ou os passarinhos… não sei. Mas acho que não são coisas que possam ser controladas…
Certo. E sobre a narração em off, que flerta com romance gótico, queria entender um pouco mais essa escolha.
Jorge: Tinha essa ideia de trazer uma variação de épocas, de períodos do filme, como se tivesse um momento em 1958, mas como se elas pudessem ter vivido mais tempo que isso… Era uma vontade de criar uma indeterminação. E aí eu acho que a narração vem um pouco nesse sentido. Principalmente pelo tipo de texto, de tentar flertar com uma coisa que poderia ser de outro tempo, mas também cai no agora porque a personagem está viva até hoje. Também de não só descrever ou explicar exatamente o que está acontecendo, mas criar um devaneio outro de sentimentos e sensações. Eu acho que foi meio por aí. E aí a gente foi atrás de uns livros e também deu essa vontade de imbricar literatura, várias camadas, e essa literatura que é desde uma literatura clássica brasileira (Cruz e Souza, Aluisio Azevedo, Maria Firmina dos Reis) até, sei lá, uma coisa mais pop, Clive Barker, que também é diretor…
Essa narração era uma ideia desde o início?
Petrus: Não, ela surgiu na montagem; inicialmente não tinha. A gente gravou até metade do ano passado, alguma coisinha aqui e outra ali, mas antes disso a gente já tava montando o grosso, vamos dizer, do filme, que já tinha sido feito em 2017 e 2018. A gente tinha montado já um corte, mostramos pra pessoas lá de casa, pessoas amigas e tal, e a Isa [Isabela Vitório] assistiu e ficou de entrar na montagem; foi nesse momento em que a gente tava reformulando tudo que surgiu essa ideia de uma narração. A gente reformulou o filme todo pra deixar ele um pouco mais… redondo, mais compreensível, apesar de que realmente ninguém entende (risos). Mas mesmo que não tenha ajudado a entender completamente, eu acho que ajudou a sentir o filme de um jeito mais interessante. E aí a narração entrou como mais um elemento desses, que ajudasse a sentir melhor o filme, a ter coisas que não estão ali nas imagens, que não necessariamente estão explicando, mas que estão ajudando a construir essa experiência de sensação, de sentimento.
Para fechar, você poderiam falar sobre suas referências cinematográficas. Canto dos Ossos flerta com muitos tipos de horror, desde o horror contemporâneo até um horror mais clássico… O que vocês acham que aparece no filme de vocês?
Jorge: Acho que tem muita coisa dos anos 1930, anos 1940…
Petrus: É, umas coisas da Universal…
Jorge: A Sétima Vítima [1943, dirigido por Mark Robson]… Tinha essa ideia do veneno também… São filmes feitos assim…
RKO…?
Petrus: Isso, RKO, essa vibe aí… Uns filmes menores ou até lado B, até num sentido de cenário de Hollywood. Tem outros também. O Massacre da Serra Elétrica [The Texas Chain Saw Massacre, 1974 de Tobe Hooper]… Suspiria [1977 de Dario Argento] deve ter sido o que a gente viu mais vezes… A gente ficou com vontade do delírio, da não racionalidade, de uma história que a princípio é uma fantasia. Mas é isso, as inspirações vêm de vários lugares, não só de filmes de terror… Por exemplo, tem um filme, um curta, em que a Paula Haesny atua, que pra mim é uma referência forte, chama Santa Porque Avalanche [2016, dirigido por Paulo Victor Soares], que não é um filme de terror mas que também tem uma coisa de sensação que você pode aproximar. São várias coisas…