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“Eu sinto muito que o Paulo José nunca tenha feito um filme do Cinema Marginal”

25/01/18 às 16:06 Atualizado em 11/10/19 as 11:39
“Eu sinto muito que o Paulo José nunca tenha feito um filme do Cinema Marginal”

A paixão do cineasta Rodrigo de Oliveira pelo trabalho do ator Paulo José é antiga, construída através do contato com filmes importantes da cinematografia brasileira, como O Padre e a Moça e A Vida Provisória. Em 2004, durante uma mostra em homenagem ao artista realizada no Rio de Janeiro, Rodrigo, que naquele momento exercia o ofício de crítico de cinema, conheceu Paulo pela primeira vez e pôde refletir mais detidamente sobre o trabalho do ator. 12 anos depois veio o convite da produtora Vânia Catani para que ele dirigisse, junto com Gustavo Ribeiro, o documentário Todos os Paulos do Mundo, que está circulando por festivais desde setembro e vai ganhar as salas do circuito comercial em breve.

“Alguns dos filmes que mais me inspiram nos meus trabalhos pessoais são filmes que o Paulo fez. O prazer de se deparar com a obra inteira de um ator desse tipo é reconhecer ali coisas que a gente nem racionaliza quando está fazendo nossos próprios filmes”, afirma Rodrigo, autor dos longas-metragens As Horas Vulgares (codirigido por Vitor Graize) e Teobaldo Morto, Romeu Exilado e de curtas-metragens como Eclipse Solar.

Durante a última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo o Cine Festivais conversou longamente com Rodrigo de Oliveira a respeito do processo criativo de Todos os Paulos do Mundo e das reflexões trazidas pelo mergulho na arte de Paulo José.

 

Cine Festivais: Em uma entrevista sobre o curta-metragem Eclipse Solar fiz uma pergunta sobre atuação e na sua resposta você escreveu isto: “o real é sempre construção e a natureza será sempre renovável – cada filme refunda o mito da criação original do mundo e estabelece suas regras próprias.” Aqui você estava fazendo referência a uma narrativa bíblica, algo que reaparece em Todos os Paulos do Mundo a partir do uso da narrativa da Torre de Babel, logo no princípio. Queria saber primeiro se quando você escreveu isso já estava um pouco impregnado pelo filme do Paulo, e também como foi concebida essa sua ideia a respeito do que é atuar.

Rodrigo de Oliveira: Na verdade o processo do Todos os Paulos do Mundo começou muito depois dessa entrevista. Em outubro (de 2017) fez um ano que a gente foi pedir a benção do Paulo para fazer esse filme e que ele topou. O processo foi muito rápido. Então quando eu disse isso sobre a atuação em Eclipse Solar eu nem sabia que o filme sobre o Paulo iria existir, mas eu acho que tem sim uma ligação muito íntima entre as duas coisas.

O filme começa com o Paulo falando o texto bíblico da Babel, que é uma cena que está no 500 Almas, do Joel Pizzini. A ideia sempre foi a de fazer um filme sobre o Paulo José ator e usar a ficção dos filmes dele para iluminar um pouco o que significava a realidade do Paulo da infância até hoje. A gente confiava que havia ali nas coisas que ele fez ao longo da vida um trajeto de refundação da origem mesmo. Que mostra o que significa ser um homem brasileiro em cada uma dessas épocas, e também como o Paulo foi múltiplo. E aí eu acho que tem muito dessa minha admiração pelo artifício, que já vem dos meus outros filmes.

Alguns dos filmes que mais me inspiram nos meus trabalhos pessoais são filmes que o Paulo fez. O prazer de se deparar com a obra inteira de um ator desse tipo é reconhecer ali coisas que a gente nem racionaliza quando está fazendo nossos próprios filmes. Quando lembro do que pedi para um ator X fazer em um curta que eu fiz, de repente, fazendo Todos os Paulos do Mundo, eu entendo que aquilo ali veio da impressão que O Padre e a Moça me deixou em algum momento. Ou percebo que é uma influência de A Vida Provisória, filme do Mauricio Gomes Leite, que é uma inspiração fundamental para tudo que eu fiz. Reencontrar esse filme no contexto de poder usar aqueles planos para contar uma outra coisa é algo que me leva a sentir que esse deslocamento entre o naturalismo e o artifício se confirma.

O Paulo é um ator muito consciente do estar atuando. No filme a única frase que ele diz no presente é “eu me sinto sendo filmado”. A experiência da vida comum do Paulo é a de estar sendo filmado. Ele é a própria encarnação dessa fronteira entre o que é natural e o que é artifício. Ali ele só estava sentado fumando um charuto esperando que a gente arrumasse o equipamento. É a vida dele, e ao mesmo tempo é o artifício; é a consciência de estar sendo filmado o tempo inteiro. Para mim encontrar com o Paulo é de alguma forma renovar um tanto das crenças que eu tenho no cinema. E sobre algumas delas eu falei para você naquela outra entrevista.

 

Para a crítica de cinema, talvez seja mais difícil definir o que há de especial no ator do que definir o que há de especial em um diretor, por exemplo. Por mais que sempre haja uma intangibilidade nesta análise, com os diretores é possível verificar os procedimentos técnicos que eles utilizam; já o ator tem como instrumento de trabalho o próprio corpo e a sua voz. Como era a sua relação quando critico de cinema com a atuação. O quanto isso era um desafio para você no sentido de entender uma coisa que não é tão palpável, e aí pensando no Paulo também.

Para quem pensa e escreve do ponto de vista da crítica, essa medida é sempre estranha, porque o que a gente tenta identificar nos filmes é o olhar, que é, digamos, o direito inalienável do diretor. E, no entanto, há alguns casos de exceção, e aí eu acho que isso serve não só para os grandes atores e atrizes, mas também para alguns técnicos. Tem uma fala do Paulo no filme que é dita pela Helena Ignez de que “o ator precisa estar habitado por dentro”, porque quando o espectador olhar para o olho do ator ele precisa ter certeza de que tem alguém morando ali dentro. Aí, por exemplo, a Kika Lopes, que é a mulher do Paulo, nos falou depois da sessão do filme no Festival do Rio: “me impressiona muito como esse é um filme sobre o rosto do Paulo.” E aí eu fico pensando muito nisso, nesses atores e atrizes. Isso vem lá da Maria Falconetti em A Paixão de Joana d’Arc até hoje. No momento em que você se coloca diante de um rosto desses importa menos a maneira como aquilo está sendo filmado, importa menos o olhar do diretor, e mais o olhar que está dentro da cena.

Quando comecei a estudar a obra do Paulo, que foi em 2004, numa retrospectiva que teve dele no Rio na qual eu assisti todos os times dele – foi a primeira vez que eu o conheci – percebi que há coisas que são do domínio do que está atrás da câmera. E eu sinto muito que o Paulo nunca tenha feito um filme da geração do Cinema Marginal, porque os cineastas do Cinema Marginal e o Paulo pensam muito parecido nesse sentido. Essa negociação entre o olhar que está atrás da câmera e esse olhar que está no centro da ficção tem uma certa independência. Então quando comecei a perceber que existiam atores que estavam sentindo e vivendo coisas às vezes à revelia do olhar do diretor – e o Paulo faz muito isso – eu comecei a entender o que era ser ator na verdade. Porque é isso: tem algo que é do domínio do que mora dentro do personagem, que diretor nenhum consegue acessar.

Quando eu dirijo atores, esse é o meu limite. O máximo que eu posso fazer é sugerir caminhos para habitar aquilo ali, mas quem decide o lugar, a casa que vai se fundar ali dentro do olhar, é o ator. E nem me interessa muito saber como é que eles chegam lá. Eu acho que pensar o trabalho de atores é muito respeitar o mistério do caminho que eles fazem para chegar até lá. E o Paulo no filme fala muito sobre isso. Para ele tem uma relação muito direta com a vida, não tem tanto de pesquisa, não tem tanto de trabalho técnico de caracterização. É um troço de se deixar influenciar pelo personagem ao ponto de que não haja diferença entre ele e você.

Pensando na relação da cinefilia com a crítica, eu acho que a primeira ligação está sempre ali com os atores. É a coisa que a gente primeiro percebe num filme quando a gente está começando. Você aprende que os filmes não são do Marlon Brando, do Paulo José, da Marília Pera, da Ana Magnani, mas que há diretores por trás. E aí a gente entra nessa onda de autoria por muito tempo, esse é o trajeto de todo cinéfilo e crítico, e em algum momento você de alguma forma retorna ao início e começa a voltar a prestar atenção nisso que está dentro da cena.

O meu lugar hoje é um pouco esse do limite do olhar entre o que está na frente e o que está atrás da câmera. Para mim isso é um troço muito sagrado, e cada filme negocia uma distância diferente. Tem filmes que estão muito dentro da cena, e por isso que eu acho que o Paulo se daria muito bem no Cinema Marginal, que é um cinema em que não há diferença de natureza entre o olhar da câmera e o que está acontecendo na cena. Eu adoraria que o Paulo tivesse feito um filme do Tonacci, por exemplo… Mas é isso, cada filme negocia de modo diferente essa fronteira. E eu gosto cada vez mais de entender que há um limite do quanto que a gente consegue acessar mesmo.

Todos os Paulos do Mundo é um filme exaustivo sobre a figura daquele ator, sobre o trabalho dele, e ainda assim quando o filme acaba tudo resta ainda a ser dito. É um filme que apesar de ser exaustivo na tentativa de apreendê-lo, em algum momento o Paulo escapa, porque isso é da natureza dos atores. E é isso que eu acho que os diretores e os críticos que gostam de pensar sobre os atores eventualmente aprendem. O melhor lugar para um ator estar é longe da tua mão, longe do seu olhar. É se permitir observar, mas também negar o seu acesso.

Algumas das coisas que eu mais gosto que o Paulo faz são momentos em que ele está de costas, ou fora de quadro, e eu acho que a mágica está um pouco nisso. O ator também decide isso. Mais importante do que decidir o que mostrar é também decidir o que não mostrar, e é por isso que eu acho que o ator tem tanta autoria quanto um diretor, ou um fotógrafo. Aí o jogo fica mais franco.

 

No filme há algumas frases do Paulo sobre o trabalho de atuação. Como você enxerga esse modo de o Paulo olhar para o próprio trabalho?

Para além de ver todos os filmes que o Paulo fez, todas as novelas, o máximo que a gente conseguiu de acervo de teatro, a gente também pesquisou todas as entrevistas que o Paulo havia dado ao longo da carreira, seja na TV ou no impresso. E aí a gente começou a entender que existia um discurso-Paulo que em algum momento da vida… Eu acho que isso acontece com muitos artistas, de chegar num certo lugar no qual você começa de fato a sistematizar tudo aquilo que experimentou. Tem histórias que a gente decorou porque ele contava em três ou quatro lugares diferentes. O melhor desse discurso é que ele é muito contraditório internamente. Ao mesmo tempo que o Paulo acredita, por exemplo, que ele não faz pesquisa porque é sempre ele mesmo, ele também diz que o importante é viver o personagem inteiramente. Então, assim, ele não é ele mesmo, ele é o personagem, porque ele vive o personagem, ele assume a identidade. Mas então se ele não é ele mesmo, e se ele não é o personagem, o que ele é? E aí a gente começou a entender que o filme era também um pouco sobre como mesmo para um ator como o Paulo José o discurso totalizante sobre o que é a arte do ator pode ser múltiplo e complexo. São várias pequenas lições de como ser ator, e que eventualmente se contradizem. A gente começou a se divertir e a brincar muito com isso.

No filme a gente insere algumas dessas declarações dele em um contexto em que elas talvez não devessem estar, que um filme tradicional não colocaria. Logo depois que ele fala “eu nunca faço pesquisa, eu sempre faço eu mesmo”, a gente corta pra ele travestido dançando uma música da Brigitte Bardot no Como Vai, Vai Bem?, que é uma comédia dos anos 60 que ele fez. E por que isso? Uma vez conversando com o irmão do Paulo perguntei pra ele qual filme do Paulo que você vê e fala “ah, esse é o Paulo que eu conheci na infância”, e ele falou justamente do Como Vai, Vai Bem?.

Para o Paulo José “ser eu mesmo” é ser um tanto de coisas diferentes e contraditórias. Foi muito prazeroso perceber como o Paulo, hoje já sentado nos seus 80 anos de vida e de experiência, ainda se permite não saber, ainda se permite duvidar, ainda se permite descobrir. Ele estava descobrindo coisas com a gente até o fim do processo. O Paulo ajudou muito a gente no processo de montagem, então foi um processo de errância dele também. É um cara que está no auge da forma e ainda assim está começando. Essa é a beleza toda da relação que o filme tem com a fala dele. Tudo está dito ali, e ainda sim tudo resta a se dizer. Se a gente começasse a fazer o filme hoje pra lançar no ano que vem eu tenho certeza que ele falaria outras coisas, porque o pensamento dele continua em processo.

 

Gostaria que você falasse a respeito do processo de montagem, que privilegia sequências em sua integridade, em vez de tentar relacionar fragmentos muito curtos entre si, como faz, por exemplo, um filme recente como o Histórias que o Nosso Cinema (Não) Contava.

Eu e o Gustavo (Ribeiro, codiretor) ficamos sozinhos com esse filme por muito tempo. Como eu sou de Vitória e ele é de São Paulo, a gente ficava 15 dias em cada cidade. Eram oito, dez horas por dia revendo todos os filmes com o Paulo. Teve uma pesquisa imensa que também rendeu novos materiais para a gente. Nos primeiros três meses do processo a gente estava basicamente revendo as coisas, separando o que a gente gostava e discutindo o filme, até chegar nesse roteiro que a gente escreveu. Ali ficaram claras muitas dessas questões que o filme carrega até hoje. Desde o começo tinha essa ideia de o filme ser sobre a figura do ator, sobre o corpo. A gente sabia desde o começo que a gente não queria entrevistar o Paulo, que por causa do Parkinson tem uma voz muito tímida hoje em dia. E uma coisa que estava desde o começo do projeto era a ideia de lidar com essa dificuldade de o nosso personagem principal não conseguir dar entrevistas para a gente do jeito que o documentário tradicional faria. A gente pegou isso que era nossa maior dificuldade e transformou na própria razão de existir do filme. Por que não acreditar que tudo que ele fez fala por si?

Um filme sobre um ator precisa respeitar o tempo da atuação, para observar esse olhar, pra gente conseguir ver que tem alguém morando ali dentro, e não só do Paulo, como dos parceiros de cena dele. Em qualquer filme de montagem a gente sempre tem que tirar as cenas de contexto, então a gente já está corrompendo a natureza delas em alguma medida, mas o desafio era como fazer isso e ainda assim manter a sensação de que aquela é uma cena viva.

 

Como lidar com imagens do passado como a da agressão da personagem do Paulo José à personagem da Marília Pêra em O Rei da Noite, em um momento em que questões sobre representação estão muito em voga? Como as discussões atuais sobre o assunto apareceram na montagem?

A gente estava muito contaminado por aquilo que está acontecendo no cinema brasileiro hoje e pelo nível de discussão sobre as falhas históricas, as ausências e as lacunas históricas no cinema brasileiro e a relação que essas imagens evocam sobre a ideia do feminino, sobre a representação da mulher, e tal. Eu e Gustavo, cineastas de hoje, estávamos lidando com essas imagens e de alguma forma nos projetando um pouco nelas. Nessa cena específica, por exemplo, de O Rei da Noite, o personagem do Paulo José agride friamente a personagem da Marília Pêra. É feio e é estranho, porque mesmo na carreira dele é algo que ele não tinha feito. É talvez o personagem mais desprezível que ele fez, um acovardado, um idiota que ama muito, né. Quando a gente viu essa cena e separou ela, imediatamente vem um medo um pouco preventivo, de “não podemos colocar essa cena fora do contexto”. O Paulo e a Marília atuaram em dois filmes juntos, O Rei da Noite e Dias Melhores Virão, do Cacá Diegues. Aí a gente usava cenas do Dias Melhores… para equilibrar um pouco essa relação de alguma forma.

A gente estava muito preocupado se isso ia transparecer, o que era um erro porque não estávamos olhando pra cena e sim pensando a imagem da cena. E quando você olha pra cena de verdade, tem algo de muito bonito no que o Babenco faz quando decide dar a cena pra Marília, e não pro Paulo. O Paulo tá de costas o tempo inteiro, com os ombros completamente travados e contorcidos, é a figura do sujeito humilhado, pobre de espírito, diante de uma mulher que é muito melhor e mais interessante que ele e numa situação de violência – o filme é de 1978, mas a história do filme se passa nos anos 50, então já está falando de outra época, mas mesmo ali, numa situação de violência, uma mulher que é prostituta de alguma forma consegue tomar o controle, e era muito bonita a maneira como o filme fazia isso.

Algo que entendemos é que para que isso existisse dentro do nosso filme, precisava estar inteiro, e acreditamos que o filme fala por conta própria. O que estamos fazendo é dizer: “olha, agora vocês vão ver aqui três minutos de algo que o Paulo, a Marília e o Babenco fizeram há 40 anos e que me parece ainda muito forte e poderoso.” E aí o que fizemos logo depois foi, em vez de ficar preventivamente se preparando pra justificar isso, fomos muito fundo. Num momento em que o Paulo e a Marília se beijam, a Marília pede pra ser beijada pelo Paulo depois de tomar tapas na cara e pedir pra tomar esses tapas. Ela fala “me beija” e a gente corta para O Padre e a Moça se beijando também. Aí a gente começa a entender que o filme está falando de outras coisas… Que o contexto que a gente daria pra essas cenas que estavam isoladas estava na própria história do cinema brasileiro. O cinema brasileiro vai responder a essas questões. E a trajetória do Paulo é muito essa.

Tem uma cena muito famosa do Paulo que a gente não colocou no filme de propósito, que é uma cena do Todas as Mulheres do Mundo, em que a Leila está querendo ficar numa festa, ele quer ir embora, daí ele levanta o braço e parece que ele vai bater na Leila, daí ele fala “par ou ímpar”. É uma cena que todo mundo já viu e se lembra, e não colocamos porque a relação que o Paulo tem com as mulheres está tão evidente nas outras coisas todas que isso vai ser um dado. O Paulo quando atuava com essas mulheres todas tinha com elas uma relação de equilíbrio. Nem acho que é só o respeito, nem nada disso, é equilíbrio mesmo, é entender muito cedo, lá nos anos 60, coisas que a gente ainda está discutindo até hoje sobre a representação do feminino, como as mulheres devem participar da construção desses personagens. É um cinema extremamente masculino naquela altura, burguês como é o nosso, masculino como é o nosso, e eles de alguma forma lidavam com isso melhor do que o cinema brasileiro lida hoje em dia. Então entrou tudo e a gente acredita muito que os filmes respondem por si mesmos.  O Paulo fala através dos filmes.

 

Você falou disso da impossibilidade de fazer um filme de entrevista pela doença do Paulo, pela voz fraca que ele possui hoje, mas ao mesmo tempo, a voz e o corpo são os dois principais instrumentos de um artista, e o Paulo, por exemplo, tem filmes em que fez apenas a narração em off, como o Ilha das Flores, e são filmes muito marcantes e não seriam tão marcantes sem essa voz. Vocês chegaram a pesquisar filmes em que ele só faz esse tipo de narração? Eles estão lá? Às vezes não é possível pegar todas as referências.

Sim, sim. Até nem entrou um filme em que ele faça só narração, mas quando a gente entendeu que o filme, que Todos os Paulos do Mundo não iria estar só nas imagens, mas também na maneira como a gente ia ecoar a palavra dele nas vozes de outros atores, aí a coisa ficou muito mais clara, foi quando o filme realmente se fechou. O filme começa e termina com tela escura e aquela voz poderosa do Paulo em off, e você é obrigado a lidar só com aquilo, só com o que aquelas palavras evocam, com as imagens que elas provocam, mesmo que você não esteja vendo nada. Então desde o começo, a ideia de que o filme seria narrado por ele, ainda que não necessariamente na voz dele, fazia muito sentido porque é esse cara que conseguiu em algum momento pensar sobre a vida, sobre a própria vida e dizer essas coisas com certa generosidade e alguma humildade mesmo. E aí a humildade entra menos como qualidade e mais como um dado mesmo, do real dele, o que significa que ele se dispõe ao corpo e à voz dos outros, e aí entram as filhas, o filho, a mulher, a Kika, e entram os parceiros de cena… Todos que a gente queria a gente conseguiu, isso foi muito bonito.

Porque o Paulo também é isso, é uma pessoa… Esse filme ser sobre o Paulo ajudou muito a gente em termos de produção porque todo mundo ama esse cara. A gente conseguia liberação fácil dos filmes, dos trechos de áudio, desses atores que vieram gravar com a gente. E esse poder da palavra dele hoje em dia já deslocado para outro lugar, que não é da palavra no presente, mas que ainda existe e que é, como disse antes, muito eloquente. Então é isso: o filme é narrado por ele porque a gente usa – isso é uma das coisas que eu mais gosto no filme – muito os offs , as falas de um filme sobre as imagens de outro. Quando o filme vai introduzir a relação do Paulo com a Dina Sfat, a gente monta uma série de planos da Dina no Coração de Ouro. Ela faz uma apariçãozinha de nada naquele filme, linda, e depois usa umas cenas do A Vida Provisória, mas a gente está usando na verdade um off do As Amorosas, do Khouri, de uma cena em que o Paulo está falando sobre a irmã dele.

E é isso, a possibilidade de a gente usar um off de outro filme pra contar uma parte muito específica da vida dele só foi possível porque esse cara falou muito a vida inteira. Tem algo de bonito nessa consciência sobre o Parkinson, nesse momento em que ele cede um pouco a palavra, em que ele de alguma forma entende que falou bastante e que agora, apesar da impossibilidade da voz, vai continuar a falar de outras formas, e o que a gente faz muito no filme é isso, é usar a palavra mesmo.

A gente tinha essa brincadeira interna de, no momento em que fizemos o roteiro, que tinha todas as falas, os offs, as declarações e também todas as falas dos filmes, a gente falou que tinha que fazer um roteiro que se entregasse pro Paulo como roteiro original e perguntasse se ele topava atuar, e ele toparia. A gente faz muito isso, o filme é todo contado através da ficção mesmo. Se você presta atenção no que está sendo dito nas cenas ficcionalmente, você tem uma ideia da pessoa, e aí ficou muito legal fazer um documentário ficcional, completamente, que só usa coisas de ficção para falar da vida dele, dessa relação que falamos no início entre vida e arte, entre natural e artifício. Acho que é isso, esse é um filme narrado pelo Paulo José.

 

Tem um momento do filme que ele fala que o cinema define a identidade cultural de um povo. Logo no momento seguinte a montagem do filme leva pra relação dele com a TV. Se a gente for pensar nessa frase, talvez tenha havido esse deslocamento do cinema como arte popular para a teledramaturgia. Qual foi a relação de vocês com a TV, o pensamento do espaço que vocês dariam pra TV nesse filme?

O filme, apesar de tudo, até que é bastante cronológico na maneira como estruturamos a narrativa. Isso que o Paulo fala sobre o cinema ser uma questão de identidade e soberania nacional vem justamente da reflexão sobre o que significou o AI-5 pras artes em geral. A questão dessa geração não foi exatamente com a Ditadura, alguns dos maiores filmes da nossa história e certamente os filmes que fizeram o Paulo ser o Paulo José foram todos feitos entre 64 e 68, ou seja, depois do Golpe, mas antes do AI-5. O AI-5 é a ruptura radical, quando todos os grupos se esfacelam, o Paulo tem que ficar escondido, tem gente que é exilada e eles ficam um pouco meio à deriva mesmo, como o Paulo fala no filme, e a televisão vem muito daí.

A gente até usa a televisão em outras partes do filme, mas existe um bloco ali de televisão muito porque no começo dos anos 60 todos esses atores e diretores e músicos e poetas e escritores que estavam sem possibilidade de criar foram reunidos na televisão; eles fizeram coisas radicalíssimas ali. A gente usa um trechinho de um programa que o Domingos de Oliveira fez pra Globo, que se chama “Somos todos do jardim da infância”, que tem o Paulo, o Marcos Paulo, Antônio Pedro, Gilberto Martinho, todos eles àquela altura já tinham 30 e poucos anos, alguns até 40. Eles fazem estudantes de pré-vestibular. A Sonia Braga também está nesse programa especial. Esteticamente, é um troço revolucionário; se lançasse hoje como longa-metragem de ficção teria dificuldade de entrar na Mostra Aurora, de tão radical, e tava lá passando no horário nobre.

O Paulo começa a dirigir coisas na televisão e depois tem uma participação muito importante na formatação da televisão, nos modos de direção ali na Globo, que infelizmente se perderam. Porque a televisão sempre foi o meio do ator, né, você coloca cinco ou seis câmeras ali e deixa o pau quebrar, os atores que se virem, e fica naquele corta-recorta. Tem uma cena que a gente usa ali no meio do filme, fora do bloco de televisão, de Roda de Fogo, que é 88, ele e a Joana Fomm, que tem um traveling dramático que é um troço que… Pensar que aquela era a nossa televisão é uma loucura, sabe. Então a gente gostaria de ter mais, é difícil ter acesso aos arquivos da TV, o CEDOC da Globo fez o que podia por nós, mas tem muita coisa que se perdeu mesmo, então acho que a televisão tem espaço menor no filme também porque tivemos dificuldade de acesso a certos materiais. Assistimos a todas as novelas mais recentes, mas as coisas mais antigas são mais difíceis de achar. Mesmo Shazan, Xerife e Cia tem um momento no filme em que aparece, gostaria que aparecesse mais, mas tivemos restrições de acervo.

Mas acho muito louco que essa geração tenha feito tudo isso na televisão, e acho uma pena que o cinema da Retomada logo depois não tenha percebido que o caminho era esse, porque quando a Retomada vai tentar fazer o cinema de comunicação popular que existiu em algum momento, começa a fazer televisão ruim. Que não existia ainda naquele momento na televisão. Se a Retomada começa lá em 1994, Roda de Fogo é de 1988. A televisão já era melhor que aquilo que a Retomada fez. Aí acho que ficamos um pouco órfãos mesmo de narrativas populares esteticamente interessantes. E a geração do Paulo, com Daniel Filho, Flávio Migliaccio, essa turma toda que foi pra televisão, Domingos de Oliveira… Domingos fez coisa pra caramba na televisão no começo dos anos 70. Tem um hiato ali na filmografia dele que ninguém nunca entende, e é porque ele estava na televisão, no teatro… A galera foi se refugiar em outros lugares. Isso é muito poderoso, e adoraria que existisse a mesma relação que temos hoje com restauro de cinema com alguns casos no restauro de televisão.

Paulo fez uma série que ele idealizou e dirigiu na TV chamada Aplauso em que ele pegava contos e peças tradicionais e as recriava. É uma pena que a gente não tenha como mostrar tudo isso hoje. Se a gente acha triste a história do cinema se perder – e ela tem se perdido ainda -, a perda da história da televisão é algo que vamos lamentar muito mais porque coisas incríveis aconteceram ali que a gente nem sabe hoje. Assistir a um episódio do Shazan – tem alguns no YouTube, os poucos que existem – é impressionante, é um episódio de 52 minutos onde acontecem duas coisas. Hoje em dia qualquer bloco de novela com cinco minutos acontecem 15 coisas. Não tem coisa mais contemporânea que um episódio de Shazan, onde nada acontece e a câmera fica passeando pelo espaço com as pessoas ali vivendo.

 

Outra pergunta é sobre isso que você antecipou sobre o que é hoje cultura popular e atuação, ator popular. Lembrei agora de um texto que o Cléber Eduardo escreveu, acho que pra Cinética, sobre o Estômago. Ele achava que aquele filme, caso tivéssemos um circuito exibidor minimamente razoável, seria um exemplar de bom cinema popular, ou de um cinema popular palpável, mas hoje ele é classificado como filme de arte, filme independente, pra passar no Reserva Cultural. Então hoje quem são os atores populares como foi o Paulo José e o que é cinema popular?

O que acho louco é que esse é um problema nosso, não da geração do Paulo – e o Paulo fala isso no filme, que a vocação da geração dele era mudar o mundo. Do mesmo jeito, com essa relação de transformar o mundo, existem outras, como por exemplo a relação com o popular. Não existia muito essa consciência de que algo era um filme de nicho e que passaria no Reserva Cultural dos anos 60, ou que tal filme é só pro Cine Paisandu, não pro Palácio nem pro Odeon. Não existia muito isso. Fazia-se filmes absolutamente crente com a possibilidade desses filmes existirem no mundo. A decepção que o Paulo tem é que ele começa a produzir filmes. Ele produz A Culpa, do Domingos de Oliveira, de 72, e Os Deuses e os Mortos, do Ruy Guerra, dois filmes que fracassam retumbantemente. A Culpa ele conta que ficou uma semana em cartaz, foi um filme que ninguém viu. O que penso é que em algum momento se perdeu a ilusão ou a inocência, o Paulo fala muito em inocência quando fala da geração dele, se perdeu a inocência de que se estava falando para todo mundo. Acho que isso parte um pouco daí.

Sobre o que significa ser popular hoje, acho que é a tentativa de falar com todo mundo ou com o máximo de gente possível sem negociar estética ou politicamente com as próprias ideias. Essa crença bonita que estava no Joaquim Pedro (de Andrade) e no Glauber (Rocha), mas também no Domingos (de Oliveira) quando fazia suas comédias… Assistir ao Edu, Coração de Ouro hoje em dia é ver um filme sobre depressão que é incrível. É isso, é um filme que se tomou como uma coisa boba por uma geração mais sisuda na época, mas que é um filme impressionante, sobre o estado de espírito da deriva. Acreditava-se muito nisso, e acho que hoje deixamos de acreditar que é possível falar com muita gente sem precisar negociar o que é preciso dizer sobre o mundo.

E acontece também que o mundo começou a mostrar suas garras. Filmar O Homem Nu hoje em dia talvez fosse impossível, com toda essa ameaça de censura que tem rondado a gente. Esse talvez seja o caso mais exemplar: O Homem Nu devia ser uma comédia de costumes carioca, feita por um cineasta paulista, com um grande ícone do cinema da época, conhecido pelas comédias… Se você assiste ao filme hoje, feito em 68, ele é um filme sobre tortura. É sobre tortura na Ditadura, travestido de comédia leve com um cara pelado. Essa negociação é que acho que de alguma forma nossa geração talvez não acredite mais, e quem está nas cabeças do cinema brasileiro de hoje já decidiu que isso não importa. Aí você vê um monte de comédias populares da Globo, por exemplo, que poderiam… Não da Globo, né, isso hoje em dia tem tantos agentes, né, mas todas essas últimas comédias populares grandes que começam, como fez a novela recentemente, a falar da classe C e D, que podiam ser grandes filmes políticos na relação de disputa de classe. Mas perde-se a chance, né, porque já se abriu mão de partida de qualquer intervenção política e de qualquer visão de mundo daqueles filmes ali. Faz-se só para ser popular.

Da mesma forma que do lado de cá, desse cinema mais pobre que faço, a impressão que tenho é que se nega a ideia do popular, quase como se estivéssemos nos prevenindo ou nos protegendo do fracasso inevitável. “Esses filmes que faço naturalmente ninguém verá, então faço consciente de que ninguém verá mesmo e isso é o que importa.” Isso é um equívoco profundo. Já sofri disso várias vezes e sei de amigos que têm esse problema. Então acho que a resposta do cinema popular tem algo disso… Essa galera da geração do Paulo se perguntou essas mesmas coisas e respondeu essas mesmas coisas, talvez devêssemos ouvi-los mais.

Adoraria ver um filme como O Homem Nu vindo dessa geração do novíssimo (cinema brasileiro), por exemplo. O bom é que tem gente que está fazendo isso, tem o Bruno Safadi que tenta, tem o Adirley que tenta fazer isso, e acho que mesmo o Estômago… Quer dizer, existem exemplos de gente que está tentando dialogar com o popular, e aí a gente entra em outra questão, que é como o circuito vai absorver. Mas acho que há gente procurando esse equilíbrio, e adoraria que mais gente tentasse. Eu mesmo, e esse filme do Paulo pra mim, pessoalmente, é muito isso, já é uma tentativa de falar com mais gente. O filme tem um monte de obsessões pessoais, que reconheço ali nos outros filmes que fiz, e acho o filme pesado, melancólico em algum momento. Me reconheço muito no filme, mas adoraria tanto que ele fizesse [público], e acho que ele vai fazer, por causa de tudo que o Paulo é e tudo que faz ali no filme, de tudo que o filme pode despertar de interesse por outros filmes do Paulo. Acho que é uma primeira tentativa de falar pra mais gente mesmo.

Eu e o Gustavo conversamos o tempo todo sobre essa negociação, sobre o que queremos e o que precisamos que o filme seja pra que a gente se comunique mais. De alguma forma a gente conseguiu uma resposta ali num filme de exceção, um filme de montagem; eu talvez nunca mais faça um filme de montagem desses. Adoraria levar isso que o Todos os Paulos do Mundo me ensinou para os meus próximos filmes.

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