Paulina é um filme que planta um dilema ácido e incômodo, atual em sua formulação e urgente em seu conteúdo. Sustenta-o com o vigor de um argumento dilacerante e o transfere ao espectador. Se uma das funções da arte é abrir a poesia do mundo e dar polissemia à realidade, é potente o nível de perturbação e indecisão que deve tomar parte da plateia que assiste ao longa de Santiago Mitre.
Paulina é uma advogada bem sucedida, com notável desempenho acadêmico e um futuro promissor em Buenos Aires. Disposta a ter uma relação mais real e concreta com a transformação social, larga a carreira e vai dar aulas sobre Fundamentos da Democracia em sua terra natal – uma área desassistida, próxima à fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai. Seu pai, um juiz consagrado, resiste à ideia e tenta persuadi-la a ficar. Paulina decide ir e, logo nos primeiros dias, é estuprada por uma gangue de 5 garotos. O que se segue ao ataque envolverá uma gama de decisões não convencionais por parte de Paulina, o que implicará a incompreensão dos que estão à sua volta.
Santiago Mitre é um roteirista de talento, festejado por seu trabalho em filmes como Abutres (2010) e Elefante Branco (2012), ambos dirigidos por Pablo Trapero. Como diretor, tem em O Estudante (2011) um ótimo longa. Paulina não parece ter um conceito de câmera muito firme, assim como insiste em martelar um leitmotif (no caso, uma guitarra fazendo harmônicos) a cada momento reflexivo da protagonista, num recurso que beira o cafona e infantiliza a tensão tão bem construída pelo roteiro.
Mas Paulina é uma personagem fascinante. Sua determinação tem um brilho dardenniano, próprio a uma protagonista que se despedaça mas segue firme com a dignidade de suas escolhas frente a um impasse ético, quase existencial. Se fosse um filme francês, seria fácil imaginar Cécile de France ou Marion Cotillard no papel. Dolores Fonzi não faz por menos. O desafio está na condição paradoxal de Paulina: sua consciência passa o filme inteiro em xeque, atolada por dúvidas pesadas, mas ela nunca se mostra exatamente frágil.
O roteiro de Mitre desenha a situação de maneira inteligente. Em diversos momentos ouvimos o que seria uma narração em off, mas que logo depois se revela uma antecipação das muitas cenas em que Paulina está sendo interrogada por alguém: médicos, psicólogos ou policiais. O recurso funciona mesclando diálogos rudes de situações concretas (a cruel burocracia pós-estupro) com projeções de pensamento (todos a questionam de alguma maneira).
O conflito com o pai – cuja profissão (juiz) não é um fato à toa – rende três diálogos excepcionais onde se problematiza o duelo entre justiça (no aspecto social/convencional do termo) e autonomia, a grande ideia do filme. Paulina quer ser livre para fazer o que bem entender com seu corpo, com sua profissão e com decisões capitais a respeito do crime que sofreu. Santiago Mitre irá nos fazer questionar até que ponto este direito – fruto de suadas conquistas e ainda instável em sociedades conservadoras – é um valor maior e inatingível.
Nota: 9,0/ 10 (Excelente)
*Filme visto na 39ª Mostra de São Paulo