O deslocamento, em seus múltiplos significados, é um dos grandes temas do cinema hoje. A obra do francês Jacques Audiard se apropria da ideia a partir do conceito de adaptação. Em praticamente todos os seus filmes, os protagonistas se veem na necessidade de adaptar-se a um espaço, sistema ou condição. A busca, custosa e hesitante, tende a remodelar a identidade do personagem, erigindo o conflito “passado x presente/futuro”, disposto mais precisamente na analogia “quem eu era”/”quem eu serei agora”. Dheepan – O Refúgio, último ganhador da Palma de Ouro em Cannes, traz essas reflexões estruturantes aplicadas ao assunto da imigração, um tema urgente.
Fugindo da guerra civil na Sri Lanka, o guerrilheiro Dheepan (Jesuthasan Antonythasan) une-se a Yalini (Kalieaswari Srinivasan), uma mulher que acabara de conhecer, e à garota Illayaal (Claudine Vinasithamby), de apenas 9 anos, numa armação: fingirão ser uma família para obter asilo na França. O plano dá certo e eles acabam alojados numa cohab do subúrbio parisiense. Dheepan consegue trabalho como zelador do condomínio, Yalini atua como cuidadora/doméstica num apartamento que fica logo no bloco de prédios à frente e Illayaal, a que melhor fala francês, vai para a escola.
O convívio é uma potência fértil e a configuração familiar se impõe, com cada um exercendo a função social que lhe caberia numa família nuclear convencional: Illayaal fica insegura no 1º dia de aula e seu “pai” a conforta; Yalini, além de trabalhar, cuida dos afazeres domésticos, e há uma tensão sexual crescente entre ela e Dheepan. O registro dessas relações é curvilíneo, ora ganhando ar dócil – como nos momentos em que a menina ensina aos adultos algum vocábulo em francês ou quando Dheepan, ainda perturbado por seu passado, precisa de carinho e conforto -, ora explorando a estranheza da intimidade compulsória e o medo do desconhecido.
Audiard dirige bem os atores e uma parte significativa das cenas contém sutilezas no gestual e na dinâmica dos diálogos. Mas o círculo afetivo ainda é secundário diante da questão principal. Aclimatando-se à França num complexo choque de culturas, a família precisa lidar com a violência que assola a região onde moram. Os blocos vizinhos são habitat do tráfico de drogas local e palco para uma disputa sangrenta entre facções. O roteiro cuidadoso, porém, não desnuda o caos de uma vez. Antes, vai cercando o cotidiano de Dheepan com indícios e sensações. Ele passa a observar o movimento dos traficantes, percebe que é mais seguro trabalhar em uma certa faixa de horário, tenta demarcar seu território.
A atmosfera do filme é acumuladora de energia negativa, como se tudo ali indicasse que a situação não possui resposta simples e o clímax que os espera é o pior possível. Nesse aspecto, a jovem fotógrafa Éponine Momenceau faz um trabalho notável com a câmera no ombro, medindo a fluidez que nos permite contemplar o rosto expressivo do personagem e, logo depois, seu olhar, em meio a frestas e quinas, buscando entender o que se passa. Audiard mostra mais uma vez o quanto é um criador de cenas potentes, geralmente multifuncionais: empurram a narrativa pra frente, possuem força lírica, apelo estético e não comprometem o ritmo do longa até então.
O apelo maior de Dheepan talvez esteja na tour de force perpetrada pelo protagonista. Ao se defrontar mais uma vez com um ambiente violento, o passado que já o assombrava catalisa uma consciência controversa: fugir do confronto é sua vontade maior, ao mesmo tempo em que se questiona o quanto a guerra já o consumiu, de modo a persegui-lo e a lhe parecer uma vocação (é o que ele sabe fazer). A trilha infernal de Dheepan é eloquente em sua principal mensagem: aonde quer que você vá, haverá um “nós contra eles” potencialmente devastador, num mundo regido por fronteiras, guerras e demarcações.
Nota: 9,0/10 (Excelente)
* Vencedor do Festival de Cannes de 2015, Dheepan está na programação da 39ª Mostra de São Paulo
Sessões de Dheepan – O Refúgio na 39ª Mostra de São Paulo
– Dia 22/10 – 21h15 – ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – FREI CANECA 1
– Dia 24/10 – 17h30 – CINEARTE 1
– Dia 25/10 – 18h – CINE CAIXA BELAS ARTES – SALA SPCINE
– Dia 27/10 – 21h – SALA UMUARAMA – CPFL CULTURA
– Dia 28/10 – 21h40 – ESPAÇO ITAÚ DE CINEMA – AUGUSTA 1
