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Só faz sentido trabalhar com gênero se eu bagunçá-lo um pouco, diz Aly Muritiba

09/11/15 às 16:26 Atualizado em 13/10/19 as 23:18
Só faz sentido trabalhar com gênero se eu bagunçá-lo um pouco, diz Aly Muritiba

Depois de firmar seu nome em festivais nacionais e internacionais com a Trilogia do Cárcere, formada pelos curtas A Fábrica e Pátio e pelo longa A Gente, o diretor Aly Muritiba deixou sua experiência como agente penitenciário em segundo plano e demonstrou uma nova faceta em Para Minha Amada Morta, seu primeiro longa-metragem de ficção.

Vencedor de sete prêmios no último Festival de Brasília (incluindo melhor direção) e exibido durante a 39ª Mostra de São Paulo, o thriller acompanha a trajetória de Fernando (Fernando Alves Pinto), um viúvo que vê a imagem que construiu sobre a sua falecida mulher se esfacelar quando descobre uma fita VHS em que ela documentou as suas traições.

“Para o meu tipo de produção – filmes pequenos, baratos e independentes – só faz sentido trabalhar com gênero se eu puder subvertê-lo, bagunçá-lo um pouco, e acho que consegui fazer isso neste filme”, opina o diretor.

Aly Muritiba conversou com o Cine Festivais durante a sua passagem por São Paulo, onde esteve para exibir o filme na Mostra. Para Minha Amada Morta será distribuído pela Vitrine Filmes e tem previsão de estreia para o primeiro semestre de 2016.

 

Cine Festivais: Uma coisa que me marcou no filme é o modo como você faz com que nós, espectadores, sintamos a presença de uma personagem morta. Talvez a cena mais exemplar desse aspecto seja aquela em que Fernando está com uma pá e conversa com o amante da esposa sobre ela. Ao mesmo tempo, havia um recurso muito mais fácil para levantar essa questão da memória, que é o uso de gravações em VHS, mas você utiliza isso com parcimônia, sem que pareça algo fetichista…

Aly Muritiba: Muito bem observada essa questão. Uma das conversas que eu tive durante um tempo com nossa agente de vendas, que era alemã, foi sobre o nome do filme: ela queria saber por que escolher Para Minha Amada Morta, já que a personagem aparecia tão pouco no filme, e fiquei tentando fazê-la entender que a amada morta aparece o tempo todo no filme, que há essa presença pela ausência.

Principalmente na primeira parte, nós temos informações fragmentárias dessa personagem que surgem sempre através da aparência. Eu convido o espectador a montar uma espécie de quebra-cabeça para tentar entender quem era essa mulher, primeiro em um campo mais superficial, a partir das coisas que ela usava enquanto viva, como roupas, sapatos, joias.

Segundo, pelo sentimento que as pessoas nutrem por ela. A gente vê o quanto aquele homem é devoto dessa mulher e infere que ele a amou profundamente, e que ela deve ter construído algo muito bonito com ele. Ao mesmo tempo, o filho tem uma relação de muito carinho pela mãe morta: não é um luto em que o garoto está chorando o tempo todo, é uma coisa carinhosa, portanto a gente infere que ela provavelmente tenha sido uma boa mãe. Até mesmo o amante retrata essa mulher como alguém pela qual ele se perdeu completamente; não foi um caso sexual, foi um caso amoroso, profundo.

O único momento em que vemos a mulher no filme diz respeito justamente à construção da imagem, quando ela está filmando a si mesma, fazendo imagens de seu próprio corpo desnudo. E temos contato com isso através do reflexo de um espelho, que é a projeção dessa imagem que volta para os outros.

 

CF: Eu achei que o filme se preocupa pouco em situar o tempo em que a história se passa…

AM: Sim, não há uma marcação temporal forte, até porque as questões que envolvem amor, posse, ciúme, raiva, que são os sentimentos mais latentes nesse filme, se dão em qualquer época, e acho que isso não mudará no futuro. Existe o aparelho celular, que eventualmente dá a entender que é um filme contemporâneo, existem os carros, mas essa não é uma questão muito presente mesmo.

 

CF: Se o filme quisesse ter essa marcação temporal forte ligada aos dias de hoje, provavelmente as imagens gravadas viriam dos celulares e seriam compartilhadas pelo Whatsapp. Por que optou pelas gravações em VHS?

AM: Tem uma escolha que é um pouco fetichista, que diz respeito à minha criação. A galera que hoje tem entre 30 e 40 anos tomou contato com a produção de primeiras imagens com o VHS. O VHS está para minha geração como o Super-8 esta para a geração anterior. Quando mais jovem, eu filmava, brincava com câmeras VHS, e de alguma maneira isso me atraiu nessa escolha.

Há também um fator técnico importante, pois as imagens captadas pelo suporte VHS, quando deterioradas pelo tempo, ganham um aspecto fantasmagórico que o vídeo do celular não tem. Essas imagens que produzimos e consumimos hoje em dia têm uma nitidez que acho que tiraria essa intenção de acentuar o lado fantasmagórico, que tentamos realçar ao utilizar fitas VHS que já haviam sido gravadas dezenas de vezes, para dar aquela textura propositalmente ruim.

E tem a questão da materialidade. Essas câmeras digitais de hoje não têm um suporte físico. A fita, assim como o filme, tem uma fisicalidade, você pode tocar na imagem, pode pegar aquela imagem, e pode, portanto destruir fisicamente aquela imagem. O Fernando tem aquela fita consigo, possui a possibilidade de destruí-la fisicamente, mas resolve guardá-la para, de alguma maneira, superar aquilo depois.

 

CF: O gênero thriller pede muito por um controle do tempo das cenas. Como você lidou com essa necessidade ao longo do processo de pré-produção, durante as filmagens e na hora da montagem?

AM: Os planos do filme são compostos de maneiras mais abertas; não há os tradicionais planos e contraplanos, nem uma montagem super picotada. Essa escolha surgiu principalmente a partir dos ensaios com os atores, quando comecei a perceber que o texto e os corpos dos atores não eram tensos (ou intensos) o bastante, e que eu precisava, de alguma maneira, esticar melhor essa corda.

Eu tinha uma corda que precisava ser tensionada e afrouxada algumas vezes para que o espectador ficasse sempre nessa situação de espera, muitas vezes até de desejo, de vontade de que a corda arrebentasse, e aí nesse processo de construção com os atores eu percebi que tinha que manejar isso de uma outra forma.

Conversando com o Baião (Pablo, diretor de fotografia) e fazendo alguns ensaios com a câmera eu percebi que o plano-sequência e a decupagem não pelo corte, mas pela movimentação dos atores em relação à câmera, traria essa tensão que eu precisava. Comecei a entender que muitas vezes um plano fixo muito aberto pode ser tão carregado de tensão, ou até mais, do que aquela coisa artificial do corte rápido.

 

CF: O plano aberto, com grande profundidade de campo, também dá ao espectador a possibilidade de enxergar várias informações no mesmo quadro, para o que a direção de arte é fundamental…

AM: Exato. Depois da sessão do filme aqui na Mostra (de São Paulo) eu estava jantando e um amigo me perguntou do que a personagem do filme havia morrido. Aí uma moça que estava no mesmo grupo, muito perspicaz, disse: “não interessa do que ela morreu, mas com certeza aconteceu em casa e ficou doente por um tempo”. Meu amigo perguntou como a moça sabia disso, e ela citou a cama de hospital que estava no quarto dele. Fiquei feliz de ver que há espectadores que sacam essas coisas.

Nas conversas que tive com a Mônica Palazzo (diretora de arte do filme) decidimos colocar os elementos em quadro, mas não em evidência. A duração grande dos planos dá ao espectador tempo para perceber as coisas, e aí cabe a ele a perspicácia e a capacidade de fazer a leitura dos elementos e de entender o que eles significam. No fim das contas, essa composição de quadro grande, com muitos elementos em cena, é um convite ao espectador, do tipo “as coisas estão aqui, e eu quero que você perceba”.

 

O diretor Aly Muritiba

 

CF: É praxe entre os estudiosos do cinema brasileiro dizer que o trabalho com gênero nunca foi o nosso forte, mas a geração mais recente vem mudando isso, com trabalhos que dialogam de diferentes maneiras com o thriller, o horror e outros gêneros. Como você avalia esse momento? Para você, só vale a pena trabalhar com gênero se for para subvertê-lo de alguma maneira?

AM: Para o meu tipo de produção – filmes pequenos, baratos e independentes – só faz sentido trabalhar com gênero se eu puder subvertê-lo, bagunçá-lo um pouco, e acho que no Para Minha Amada Morta eu consigo fazer isso.

Acho que as gerações anteriores não trabalhavam com gênero porque era um outro momento histórico, com outros interesses. Havia um desejo naquela época de se constituir um modo brasileiro de se fazer filmes; essa pauta já foi superada por essa geração, que está interessada em uma série de outras coisas.

É legal podermos ver desde um filme ultra experimental do Júlio Bressane até um filme narrativo, mais interessado em contar uma história do que em experimentar linguagem. O cinema brasileiro hoje em dia possibilita ao espectador vários estilos cinematográficos, e isso é bom.

 

CF: Em um cenário em que a maioria dos diretores brasileiros ainda tem uma origem ligada à classe média das grandes metrópoles, a sua trajetória é diferente e se assemelha um pouco á do Adirley Queirós nesse aspecto. O que essa diferença trouxe para a sua visão de cinema?

AM: A periferia hoje está produzindo as suas próprias imagens, só que elas estão chegando pouco aos cinemas. Eu acho que a revolução audiovisual virá das periferias do mundo, então é muito legal quando você vê um cara de Ceilândia, como o Adirley, fazendo filmes. Você vê A Cidade é Uma Só? e Branco Sai Preto Fica e fala: “velho, um cara que foi criado pela avó em um prédio no Alto de Pinheiros não faria um filme desses nunca, para o bem e para o mal”.

Essa urgência que vem da periferia obviamente resulta em coisas doidas, que podem ser taxadas de mau gosto, mas há ali uma potência que é muito difícil de controlar. Acho que o cinema que eu faço tem isso de alguma maneira.

Essa formação cinematográfica muito tardia, já depois de ser pai de dois filhos, trouxe para mim um senso de urgência muito grande. Não é o caso necessariamente de Para Minha Amada Morta, mas nos meus outros filmes com certeza havia essa intenção de falar com as periferias, e não das periferias.

Em momento algum eu me coloco como alguém falando deles, sou sempre eu falando de nós; filmo os caras das periferias porque eu vivo nas periferias; filmo os caras das cadeias porque eu vivi nas cadeias. Eu acho que o Adirley faz a mesma coisa.

As inconsistências que eventualmente aparecem em nossos filmes por essa falta de formação são também potências; muitas vezes, por a gente não saber muito bem como é a forma “correta” de fazer, a gente faz do nosso jeito e sai essas coisas malucas como as que o Adirley faz.

Fico muito feliz quando alguém associa um pouco da minha trajetória com a trajetória dele, porque, além de admirar o cinema dele, eu admiro a postura dele no mundo.

 

CF: O que o trabalho como diretor do Festival Olhar de Cinema, em Curitiba, vem agregando à sua bagagem cinematográfica?  

AM: Minha escola de cinema tem sido o Olhar de Cinema. Os 18 anos que eu passei sem ver filmes no cinema eu recuperei em quatro no festival. Acho que assisti a mais de seis mil filmes, das mais diferentes origens, nesse período. É algo incrível, porque você começa a entender não apenas os filmes que estão no mundo, mas também passa a se perguntar qual é o lugar do seu filme no mundo.

Tem sido uma experiência super bacana, porque resolve boa parte do meu problema de formação e, ao mesmo tempo, me coloca em uma posição privilegiada por ter acesso a coisas que outras pessoas não têm. Eu consigo me embeber dessas influências que jamais chegariam a mim se não fosse através do Olhar de Cinema.

 

CF: Como foi o seu processo de trabalho com os atores de Para Minha Amada Morta? Você disse no debate após a sessão que é aberto aos métodos de atuação de cada um…

AM: Eu respeito o estilo de composição de cada ator, mas eles têm que atuar do jeito que eu quero. Se para isso o cara vai passar fome ou a moça vai se internar na igreja, beleza, vai lá e faz o que você quiser; eu só quero que o resultado seja o que eu quero.

Assim como todos os departamentos tem uma pré-produção, acho muito importante que o elenco também tenha. Ela significa juntar todo mundo em um lugar durante um longo tempo para entender qual é o personagem, qual é o filme que estamos fazendo.

Não boto fé nesses atores que estão gravando novela da Globo e chegam dois dias antes para gravar o filme. Pode até ser que funcione com outros diretores, mas comigo não. Prefiro pegar um ator lá de Curitiba e ralar com o cara para compor o personagem, porque se não eu vou perder um dos maiores prazeres do fazer cinematográfico, que é o de se lançar no escuro, na insegurança, e descobrir no corpo do outro como é que o personagem ganha vida e forma.

Esse processo de tomar posse do outro, de encontrar na tua voz a voz do personagem, é tão intenso que chega uma hora que o ator não está atuando, está sendo. É tão bonito você ver isso começar a acontecer. Eu sou do tipo de cara que chora em ensaio. Você vê os atores na primeira semana e fica desesperado, pensando que escolheu o cara errado, e daí a duas ou três semanas eles estão fazendo uma cena e várias vezes eu olhava para a Amanda (Gabriel, preparadora de elenco) e nós dois estávamos chorando, víamos aquela magia acontecendo. Eu nunca vou abrir mão disso.

 

CF: O que a experiência com os curtas-metragens anteriores ajudou no Para Minha Amada Morta, tanto em termos cinematográficos quanto na inserção internacional em festivais?

AM: Ter os curtas-metragens circulando pelos festivais dá ao diretor a possibilidade de ir aos eventos para falar sobre seu filme e discuti-lo à luz dos filmes dos outros, então é um aprendizado incrível. Quando você está em um festival em um país distinto, tendo toda essa experiência, o cara só não apreende algo disso se for muito burro, porque é uma possibilidade maravilhosa de troca e aprendizado.

Rodei muito com alguns de meus curtas por festivais. Há um amadurecimento muito grande se você for comparar A Fábrica com Pátio. Há no primeiro um desejo narrativo muito forte, enquanto no segundo há uma experimentação estética muito acentuada. Isso não se dá de maneira gratuita, mas sim por conta da formação que A Fábrica me propiciou, do acesso que me deu a outros filmes e a outras formas de fazer cinema.

Quando você circula por festivais com os curtas, os curadores mais antenados começam a ficar interessados no seu próximo filme, querem saber se você tem um projeto de longa, e isso facilita o primeiro acesso. Por exemplo: por conta dos meus curtas, eu consigo botar uma versão em finalização de meu filme na mão de um cara da Semana da Crítica de Cannes, porque o conheci dois anos atrás. Se o filme for uma bosta ele vai me escrever de volta e falar “pô cara, valeu, foi boa a tentativa, mas dessa vez não rola”, mas pelo menos tenho um acesso menos intermediado propiciado pelos curtas.

 

CF: Fale sobre a experiência que teve no Festival de Brasília, no qual Para Minha Amada Morta conquistou sete prêmios, incluindo melhor direção.

AM: Foi melhor do que a encomenda. O filme só havia sido exibido no Festival de Montreal (Canadá) até então, por isso queria saber o que o público brasileiro iria achar; estava inseguro, morrendo de medo. No final da sessão várias pessoas que não tinham nada a ver com cinema vieram falar comigo, e eu sentia que a galera estava realmente feliz de ter visto o filme.

No debate do dia seguinte eu percebi que a crítica havia gostado, tinha acolhido muito bem o filme, percebido a maturação do meu trabalhado, e por isso me senti recompensado.

Eu nem estava em Brasília quando aconteceu a premiação, pois fui apresentar o filme no Festival de San Sebastián (Espanha), mas receber uma ligação dizendo que o filme tinha ganhado sete prêmios foi ótimo, não podia ter sido melhor… Quer dizer, podia, mas foi bom demais.

 

CF: Faltou o troféu de melhor filme?

AM: Eu não consegui ver todos os longas da competição porque fui viajar, então nem posso emitir juízo de valor. Mas muita gente veio me dizer depois: “pô velho, como é que o filme ganha fotografia, direção de arte, direção, ator e atriz coadjuvantes – ou seja, é bom em tudo – mas não leva melhor filme?”. Mas eu sei lá… É júri, né?

 

CF: Quais são os seus próximos projetos?

AM: Vou fazer uma minissérie agora para a TV pública na qual voltarei a falar sobre violência policial, e talvez disso decorra um longa também, vou tentar fazê-lo com a mesma grana da série.

Estou com outros projetos de longa: Barba Ensopada de Sangue é uma parceria minha com a produtora RT Features, uma adaptação do livro do Daniel Galera; também estou em processo de adaptação do livro Jesus Kid, do Lourenço Muratelli, e esse projeto deve ser filmado em 2016. Também tenho dois projetos originais meus que estão em fases distintas de roteiro.

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