Reestudar parte da cinematografia nacional à luz da presença e agência do ator e da atriz negra era um desejo impresso já na sinopse de Tudo que é apertado rasga (2019), documentário que constou na lista de 10 melhores curtas-metragens brasileiros do ano no Prêmio Abraccine 2020, e que foi fruto do trabalho de conclusão de curso de Fabio Rodrigues Filho na graduação em Jornalismo na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
A obra mais recente de Fabio, Não vim no mundo para ser pedra (2021), lançada na 25ª Mostra de Tiradentes, dá continuidade a um programa de pesquisa que concilia o fazer fílmico com a escrita acadêmica, ambos agora compondo sua recém-concluída pesquisa de Mestrado em Comunicação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Se no trabalho anterior o “tudo” denotava um desejo por catalogar e retrabalhar imagens e sons do maior número possível de atores e atrizes negras brasileiras, em Não vim no mundo… o foco da montagem ensaística está em Grande Otelo (1915-1993), particularmente em dois filmes nos quais o ator interpretou Macunaíma: um mais conhecido e canônico, Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969), e outro realizado tempos depois sem a mesma repercussão crítica, Exu-Piá, Coração de Macunaíma (Paulo Veríssimo, 1983).
A fagulha que permeia todo o filme partiu de uma entrevista de Grande Otelo ao programa Roda Viva, em 1987, na qual ele aventa a hipótese de que Mário de Andrade o tenha visto atuar na Companhia Negra de Revistas, ainda na década de 1920, e assim tenha tomado o ator como inspiração para a criação literária de Macunaíma. “O Otelo, quando diz aquilo, ele repropõe a ordem dos fatores. Então, algo veio como pergunta: recolocando a ordem dos fatores, o resultado se alteraria? Isso estava nominalmente em uma cartela do filme, caiu nos últimos cortes, mas a questão ficou e ela formou a coluna vertebral do filme”, pontua Fabio.
Em conversa com o Cine Festivais, o cineasta e pesquisador falou sobre o seu processo criativo, abordou a ideia de “rasgo na imagem” que permeia seus dois filmes, apontou os seus incômodos com o Macunaíma de Joaquim Pedro e explicou sua tentativa de lidar com as contradições e complexidades que atravessam e constroem a figura de Grande Otelo.
Lorenna Rocha: Não vim no mundo para ser pedra é um curta-metragem que você fez em conjunto com sua dissertação de Mestrado em Comunicação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e que dá continuidade à pesquisa iniciada na sua Graduação em Jornalismo na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde você desenvolveu seu primeiro filme, o Tudo que é apertado rasga (2019). Queria começar te ouvindo sobre esse seu processo de escrita acadêmica e de elaboração fílmica. Como essas duas coisas se atravessam, colidem e/ou se abraçam entre si? De qual maneira a elaboração dos dois filmes se aproximam e se afastam?
Fabio Rodrigues Filho: De alguma forma, o Não vim no mundo para ser pedra é enigmático para mim, então ainda estou processando tudo isso. Mas, sim, ele é um filme que continua um programa de pesquisa. Em Tudo que é apertado rasga havia uma vontade de “tudo”, como diz o título. Tudo que eu encontrava naquele momento me parecia chamativo, era importante catalogar e construir o filme a partir desse “tudo”. Agora, no entanto, penso que a questão se concentra em um certo momento. O programa do rasgo na imagem precipitado pelo ator negro continua enquanto um problema, e o programa de pesquisa é tentar – e esse é um verbo importante – forjar uma ferramenta capaz de operar o corte por justiça ao ator. Agora ela se concentra num determinado momento, num determinado ator, procurando conexões com outros momentos, com outros atores e atrizes.
Mas, é curioso, porque fiquei pensando muito nisso. Existia um medo primeiro de ser um filme muito parecido com o anterior, esse risco que se corre, até por ter um tema muito semelhante. Era um medo muito grande que eu tinha, mas, ao mesmo tempo, alguma coisa muito fundamental aconteceu entre uma pesquisa e outra: muita coisa aconteceu ao longo desses três anos na minha vida e no mundo de forma geral. Até a relação entre montagem e pesquisa no mestrado se deu de uma forma mais orgânica que da primeira vez.
No TCC, o texto que acompanhava o Tudo que é apertado rasga era um memorial descritivo. Então, o filme era o TCC, ele tinha um protagonismo. Agora, no entanto, o Não vim no mundo para ser pedra é um método de conhecimento que me ajuda na escrita, na análise fílmica. É uma pesquisa em que analiso dois filmes, Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, e outro filme que eu encontrei durante as pesquisas, o Exu-Piá, Coração de Macunaíma (1983), dirigido por Paulo Veríssimo, no qual Grande Otelo volta a interpretar o personagem título do livro de Mário de Andrade, o Macunaíma. Nesse sentido, a pesquisa constrói uma constelação que tem o ator como força motriz, como operador de leitura. Eu acho que o Não vim no mundo para ser pedra tem uma relação muito mais orgânica com o texto escrito, prolongando-o de alguma forma, e provocando um prolongamento na análise do filme de Joaquim Pedro.
Lorenna: Gostaria de te ouvir mais sobre esse pensamento que vens desenvolvendo desde seu TCC… O que seria “rasgar a imagem” para você?
Fabio: Naquele momento do TCC, quando a ideia surgiu, tinha uma dupla relação. Primeiro, montar, porque as imagens que eu encontrava me pareciam violentas demais, feriam efetivamente os olhos. De modo que, depois de ver aquelas imagens, não podendo desvê-las, era preciso tentar fazer alguma coisa com aquilo visto, com aquela violência aparente, com tudo aquilo que se mostrava. Tinha ainda uma outra coisa, que era montar para dar vazão àquilo que se apresentava, que de alguma forma tem a ver com o rasgo, que é algo da ordem de inscrição do ator na imagem. Por exemplo, em uma obra como Rio, Zona Norte (1957), do Nelson Pereira dos Santos, vendo o filme naquele momento dos estudos do TCC, a presença do Grande Otelo me parecia dentro e além do filme. Portanto, a metáfora do rasgo surgiu dessa sensação que vinha no meu corpo a partir do encontro com alguns filmes.
Como está sendo agora nessa entrevista, sempre foi muito difícil narrar a sensação e falar dessa questão do rasgo na imagem. Então, montar foi uma tentativa de me fazer compreensivo naquilo que era da ordem do corpo. Sempre que eu tentava falar, a linguagem derrapava e eu não conseguia explicar. Montar não foi só sentir a violência como também demonstrar aquilo que se mostrava. Aquilo que era da ordem do acidente, da intrusão, da inscrição do corpo. Que de uma certa forma rasga o tecido narrativo.
Em termos muito gerais, a metáfora do rasgar a imagem surgiu a partir de uma canção que eu gosto muito, composta pela Maria Bethânia e pelo Caetano Veloso e interpretada pela Gal Costa no disco Caras & Bocas, que dá nome à canção. Ela diz: “Minha carne invade a cena/Rasga a vida/Mostro um brilho agudo musical”. Tinha essa canção, e o “rasgar” surge um pouco disso. Depois, fui rastreando outros usos desse termo, que já era usado, inclusive, por algumas pesquisadoras sobre o Cinema Negro, como é o caso da Larissa Fulana de Tal, que escreve um texto no FICINE (Fórum Itinerante de Cinema Negro), em 2014, no qual diz que o Zózimo Bulbul rasga a tela em Alma no Olho (1973). O trabalho foi fazer essa rastreabilidade dos usos do termo, dessa noção de rasgo, e tentar torná-la um operador analítico. Montar um outro filme também tem a ver com “perseguir” uma questão que escapa. Sempre quando eu acho que me aproximo, ela vira outra coisa. Acho que os dois filmes estão tentando tocar essa questão do rasgo, mas, ao mesmo tempo, não conseguem.
Lorenna: Que é um pouco da imagem construída no início de Tudo que é apertado rasga, né? Aquele correr que nunca cessa e tampouco chega em algum lugar…
Fabio: Porque é fugaz, né? Não se rasga por completo, podemos dizer assim. Um rasgo por vezes é uma coisa mínima que se inscreve na imagem como um pequeno enigma, uma pequena fagulha de alguma coisa não apaziguada.
Lorenna: Acho que o Grande Otelo, ator que está sendo investigado em seu trabalho mais recente, concentra muito esse tipo de coisa. Uma das cenas que você utiliza em Não vim no mundo… é a que ele está tocando com a caixinha de fósforo para Ângela Maria, em Rio, Zona Norte. Há algo ali da ordem do olhar e do sorriso dele que escapa mesmo. É esse rasgo que é capaz de revirar a leitura de uma imagem muito específica sobre o que seria a figura do sambista. Grande Otelo, com sua performance, leva isso para outro lugar, desloca as imagens e os signos pré-estabelecidos.
Fabio: Exato. No mestrado, me concentrei em pensar essa noção do rasgo menos como metáfora, mas como algo a ser demonstrado, fundamentado, e então fui criando métodos para isso. Dizer que há um rasgo no tecido narrativo é observar alguma coisa que se apresenta ali, algo mínimo, que interrompe o tecido representacional. A pesquisa parte de um momento de Grande Otelo no programa Roda Viva, em 1987, um pequeno trecho – considerando que a entrevista tem quase duas horas -, onde ele, logo no começo, fala da possibilidade de o Mário de Andrade tê-lo visto em 1926 atuando na Companhia Negra de Revistas.
Desse pequeno momento, a pesquisa e o filme vão tirando consequências, tanto da forma como do que se fala – não foi encontrado nenhum texto do Mário de Andrade sobre o Otelo, mas é muito possível que Mário de Andrade tenha o visto atuar na Companhia Negra de Revistas. A vontade de fazer o filme surgiu em 2018, quando eu estava montando Tudo que é apertado rasga. O primeiro lampejo de traçar essa relação com Macunaíma surgiu em 2018, mas só consegui começar em 2019. Então, tomei a fala como evidência e tentei tirar consequências, não necessariamente a partir da prova factual, do documento, mas trouxe isso como uma hipótese a ser levada em consideração.
Lorenna: E por que estudar Macunaíma (tanto o filme como o livro) e o Exu-Piá?
Fabio: Eu adoro essa relação porque para montar a constelação houve muitos encontros, coincidências e, ao mesmo tempo, uma investigação. Em 2018, quando eu estava assistindo ao Roda Viva por conta de Tudo que é apertado rasga, aconteceu uma série de coincidências. Eu havia comprado o livro Macunaíma em um sebo e, no mesmo ano, tinha visto com minha mãe, num festival que acontecia na Bahia e que estava homenageando o Paulo José, uma reexibição do longa de Joaquim Pedro. O filme me incomodou profundamente, como nunca antes. Esse incômodo ficou. Depois, fui ler o livro e essa questão do Grande Otelo já estava ali, batendo. Acho que estar estudando o ator e a atriz negra no Tudo que é apertado rasga me fazia notar uma presença proeminente do Otelo, ao ponto de me fazer ver Macunaíma de uma forma diferente, com um incômodo muito maior em relação a essa versão de 1969.
Passado esse momento, eu vim para Belo Horizonte, e tinha na minha cabeça que já havia visto em Cachoeira um filme com Otelo fazendo Macunaíma, que não era o do Joaquim Pedro. Fui pesquisar e descobri que não era um filme atuado por Otelo, mas uma versão de Macunaíma em curta-metragem. Quando eu achei esse curta, encontrei um frame do Exu-Piá. Foi a partir disso que descobri que havia mesmo um outro longa-metragem com Macunaíma, que eu não tinha visto ainda e que trazia Grande Otelo atuando. Fiquei muito impressionado quando vi o filme do Paulo Veríssimo, pelo diálogo que o filme de 1983 trava com o de 1969, e com o modo como Otelo aparece nesse segundo filme.
Quando veio Exu-Piá, junto com a lembrança do que Otelo falou no Roda Viva, algo se abriu. Porque o Otelo falou aquilo do Roda Viva em 1987, depois que os dois filmes já haviam sido feitos. Eu lembro que o Não vim no mundo para ser pedra, apesar de ter começado a montá-lo em 2019, ele só conseguiu uma coluna vertebral em 2021, quando veio uma metáfora muito boba, mas que para mim sintetizava um problema para se investigar, que era o seguinte: bom, o Otelo, quando diz aquilo, ele repropõe a ordem dos fatores. Então, algo veio como pergunta: recolocando a ordem dos fatores, o resultado se alteraria? Isso estava nominalmente em uma cartela do filme, caiu nos últimos cortes, mas a questão ficou e ela formou a coluna vertebral do filme. A fala do Otelo trazendo o teatro negro de revista, o livro do Mário de Andrade e o Mário em sua negrura, de alguma forma, faz com que alguma coisa recalcada no filme de 1969 venha à tona, ou venha como sintoma, pelo menos.
Lorenna: Tive uma lembrança de um comentário que você fez durante um festival sobre o Tudo que é apertado rasga, e queria fazer uma pergunta mais ampla sobre sua relação com os filmes. É bem comum que cineastas digam que todos os elementos imagéticos e sonoros de seus filmes foram pensados para reverberar em uma tela de cinema. No entanto, você chegou a comentar que te assustou um pouco ter visto Tudo que é… na tela grande, e que talvez isso estivesse relacionado com a artesania que envolvia todo o trabalho de montagem. Queria saber se você cultivou esses sentimentos com o novo filme ou se isso se modificou em algum sentido, ainda que o Não vim no mundo para ser pedra tenha sido exibido de forma online.
Fabio: Acho essa uma ótima questão, porque eu sofri muito montando Tudo que é apertado rasga, mas sofri muito mais, penso eu, montando Não vim no mundo para ser pedra. Há uma diferença fundamental entre as duas experiências, que é: durante a montagem do primeiro, eu estava na graduação em Cachoeira e montava na ilha de edição da universidade, ou seja, estava completamente concentrado no filme. Eu acordava, ia montar. No fim do dia, exportava um corte, levava pra casa, assistia e depois retornava para a ilha de edição no dia seguinte. Houve uma concentração na montagem que desta vez eu não tive. Foi muito mais dispersa, até eu não conseguir mais sair da ilha de edição.
Há uma outra questão, eu acho. Porque em Cachoeira tinha uma coisa de ser um estudo de montagem, não tinha pretensão de virar um filme. Assustar-se com toda a questão do cinema e do virar filme ocorreu também porque o Tudo que é apertado rasga surge muito da vontade de estudar. Eu não tinha nenhuma pretensão com o filme. Inscrevi num primeiro festival, ele foi recusado. Depois, ele entrou no Olhar de Cinema, em Curitiba, e aconteceu de eu ficar muito impressionado com isso… O que eu tinha feito em Cachoeira, uma cidade onde eu morava, com uma vontade de estudar, gerou um filme que, de alguma forma, provocou uma conversa, uma discussão, e foi interessante ver essa reverberação. Com o Não vim no mundo para ser pedra, a inocência já estava quebrada. A expectativa que eu projetava já era muito maior. Ele não deixa de ser um estudo, mas agora a questão do filme vem muito mais forte. E esse receio de fazer uma coisa muito parecida estruturalmente ou tematicamente me assombrava muito. Teve essas dificuldades que se amontoaram na hora de fazer o Não vim no mundo…, mas houve essa pressão interna também.
O que eu achei curioso dessa pergunta é que, desta vez, uma coisa interessante aconteceu. Essa vontade pela sala de cinema e pela experiência de cinema apareceu. Dessa vez, é um filme menos falado verbalmente e com mais silêncios, mais prenhe de telas pretas. Penso que ele exige uma concentração em seus detalhes, por exemplo, ao poema de Otelo que vem em partes. Então, ele tem um jogo que pretende a sala de cinema naquilo que ela é, uma concentração coletiva no pensar a imagem e no sonhar junto, algo que nesse filme talvez seja mais forte que no anterior: uma vontade muito maior do dispositivo “cinema”. Embora, é claro, que uma certa precariedade também esteja ali. Os arquivos, nem todos em alta qualidade, denunciam e delatam o próprio modo de feitura do filme. Mas acho que tem uma coisa decisiva, que é uma outra questão que vem agora e que não só está relacionada à retomada dos arquivos, mas é a retomada que passa pela tomada, que é essa vontade de passar pelas mãos. Acho que é uma outra forma de artesania que se encontra no Não vim no mundo…
A cena da dança das mãos é construída com fotografia impressa digitalizada, montado frame a frame, então tem esse jogo mais próximo de protocolos experimentais e que, de alguma forma, deseja essa amplitude da tela e essa experiência do cinema. O fato de haver a inocência perdida de um filme para o outro possibilita que o Não vim no mundo… esteja muito mais interessado em jogar com as dimensões, com a linguagem e com o próprio dispositivo, com o escuro e o suposto silêncio da sala de cinema.
Lorenna: Você estava me dizendo há pouco, antes de iniciarmos a entrevista, que se assustava um pouco ao perceber que alguns dos filmes presentes no Tudo que é apertado rasga ainda eram bastante desconhecidos. Me parece que seu trabalho mais recente brinca um pouco com isso, com as referências de um cinema que está em curso, que já veio antes. E também faz uma aproximação entre Grande Otelo e Zózimo Bulbul, que se dá, não apenas com Alma no Olho, mas no próprio remix dos sons, das poesias, das imagens, do negativo que vai se adensando e tomando forma em vários momentos do filme. Eu fiquei pensando muito que pode haver uma dubiedade nessa formulação. Ou que ela poderia ter dois caminhos possíveis de interpretação: o primeiro seria demarcar uma anterioridade à história do Zózimo, por estarmos sendo convidadas a deslocar a operação da leitura dos filmes a partir dos atores e atrizes, o que desmonta, em alguma medida, a ideia de pioneirismo em torno de Bulbul. Ao mesmo tempo, a montagem parece apostar em uma continuidade entre o trabalho de Otelo e Zózimo. Queria saber um pouco mais sobre sua leitura em relação a essa aproximação entre Grande Otelo e Zózimo Bulbul. Seus dois filmes parecem criar algum tipo de rasgo também na historiografia…
Fabio: Uma primeira coisa que fiquei pensando enquanto você estava perguntando é o seguinte: no Tudo que é apertado rasga havia uma frase de Zózimo, presente em um extra de DVD, em que ele diz: “pra mim o Otelo é o norte de todos nós que queremos fazer cinema no Brasil”. Nessa mesma entrevista, o Zózimo fala que queria ter feito um filme com o Otelo, mas isso não foi possível. Em Não vim no mundo para ser pedra, há um trecho de Abolição (1988) em que Otelo aparece, e acho curioso essas informações para dar caldo a essa relação entre Grande Otelo e Zózimo Bulbul.
Quando Zózimo aponta Otelo como norte, uma das coisas que penso que está em jogo é um reconhecimento dessa antecedência de Otelo e dessa construção que o Otelo faz para o próprio cinema negro no Brasil, ou Cinema Afro, como Zózimo diz nessa entrevista. Mas acho que tem uma outra dimensão que o filme coloca enquanto contradição, e menos enquanto um resultado ou uma opinião, que é esse jogo na montagem de fazer com que os arquivos contracenem entre si. Não só a relação Zózimo-Otelo está ali de alguma forma encenada ou colocada enquanto questão, mas as imagens também estão em diálogo, contracenando.
O que eu quero dizer com isso é que… Por exemplo, na pesquisa, estou defendendo que, talvez, Alma no Olho seja um dos casos de “filme de ator” no cinema brasileiro. E acho que isso tem a ver com o rasgo e com uma outra dimensão que a pesquisa abriga, que é o “roubo”, o roubo da imagem do negro, de forma geral, e do ator e da atriz negra de forma particular. No Tudo que é apertado rasga isso poderia ser chamado de “aperto”, mas agora se adensa, é uma espécie de roubo.
Acho que o Alma no Olho encarna essa relação entre rasgo e roubo por ser também um filme de ator. Nesse sentido, o filme do Zózimo Bulbul é convocado na relação da montagem guiada por um ator negro, mas porque, sendo um filme de ator, o Alma no Olho tem outras coisas a nos informar e mostrar em relação ao próprio problema do ator e da atriz negra. Por isso, penso que o Alma no Olho é inegavelmente um ponto de ruptura no cinema brasileiro, mas também um ponto de continuação como um “filme de ator”. Uma coisa que me guiava na montagem de Não vim no mundo… é essa possibilidade de pensar o Alma no Olho não só enquanto um ponto de ruptura, mas como uma continuação de uma história que o próprio Zózimo faz parte enquanto ator negro.
Lorenna: Tanto no cinema, quanto no teatro, né?
Fabio: Exato. E também na televisão. Porque os dois trabalhos, tanto o TCC quanto a dissertação, estão tentando perseguir uma questão que parece escapar. A dissertação se chama Um rasgo na imagem: fagulhas para uma pequena história do ator e da atriz negra. Nesse sentido, essa ideia de uma pequena história, ao longo dos filmes, vai reunindo essas pequenas centelhas, essas pequenas fagulhas, e construindo pequenas sínteses, ainda que provisórias. Por exemplo, sobre o filme de ator, acho que isso recoloca o próprio desdobrar dos acontecimentos, já não mais dentro de uma perspectiva linear.
Um dos meus incômodos com o filme de Joaquim Pedro é o que ele postula em termos de origem. Já o Otelo recoloca a própria noção de origem por completo em sua fala no Roda Viva. Porque o personagem Macunaíma que o Mário de Andrade escreve tem a sua gênese. Foi um personagem que existiu, consta no trabalho do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg, baseia-se em lendas de povos indígenas, então há todo um caminho que desemboca no Macunaíma.
Só que o Otelo faz uma coisa que, mais do que ser verdade ou não, mais do que ser ele mesmo a influência para o personagem, ele provoca de tal forma as bases porque, claro, o Macunaíma teve várias referências. O próprio Mário dizia: “copiei sim, copiei o Brasil. E copiei não só de um, de vários”. Nesse sentido, o Otelo põe caldo na discussão. Mas ele faz mais: ele reverbera uma coisa que está muito forte no livro, que é a questão da sobrevivência e do disse me disse. A própria narrativa do Mário de Andrade é de um papagaio que conta pro narrador. Então, essa relação do disse me disse está muito forte no livro.
E outra coisa que penso, que tem a ver com a sua pergunta, é que o Otelo provoca a própria questão da história, porque ele provoca o tempo. Por isso, quando o Otelo diz aquilo, não é mais para a questão da origem que ele está chamando atenção, mas para uma espécie de princípio inaugural. Quando ele diz, por exemplo, que possivelmente a negrura veio antes também. Mas o que eu quero dizer é que a fala do Otelo é tão forte que ela já provoca a própria linearidade e a base das coisas. E acho que uma delas é essa relação com o Zózimo, e com um certo modo de narrar a história negra no cinema.
Lorenna: Você falou sobre a noção de brasilidade, e uma das performances presentes em Não vim no mundo para ser pedra é a do Otelo recitando um poema sobre o Brasil, fazendo ali uma ode à mestiçagem. Há um certo risco em colocar isso de maneira frontal no filme, no sentido de lidar com a contradição desse ator negro que enuncia um texto que reforça valores da mestiçagem, algo que, obviamente, é fruto de um contexto… E é um fato importante, porque quando olhamos não só para o teatro de revista, mas para a imprensa negra (o jornal Quilombo, por exemplo, tinha uma coluna dedicada ao tema), a discussão sobre “integração racial” era muito forte. Não era só o Gilberto Freyre, né? Havia um campo de forças com muitos agentes, e atores, atrizes e intelectuais negros foram atravessados por essa discussão. O perigo de trazer à tona esse debate na contemporaneidade… Acho que é um risco que você assume ao deixar pulsar essas contradições. E aí, me parece que a questão se mantém bastante em aberto no filme. Tenho muita curiosidade por te ouvir sobre isso e como foi lidar com esses arquivos.
Fabio: Essa é uma questão muito importante. Ela já veio em alguns momentos na montagem e acho que tem uma coisa que, por ser a primeira exibição do filme, também estou muito em dúvida sobre o modo como ele bate nas pessoas. Estou aqui falando muito, mas estou com vontade de escutar, muito mais.
Uma primeira coisa: essa frase que dá nome ao filme é uma citação ao livro Macunaíma, que é a frase que Macunaíma escreve na lápide dele antes de subir aos céus e virar uma constelação. E é muito curioso, porque eu lembro de um trecho de Tudo que é apertado rasga no qual o Otelo diz: “eles me batizaram de patrimônio”, sobre a Globo. E continua: “eu acho que patrimônio não pode”. Então, tem toda essa relação com patrimônio. Bom, essa frase do Macunaíma retomada no filme pode ser interpretada de milhares de formas. Uma delas, eu penso, é pela relação do rastro. Ou seja, o túmulo é a representação do corpo do vivo, da pessoa que morreu, ou ele é a ausência que olha? Então tem essa questão de representação que a frase escrita na lápide por Macunaíma deixa e dá pra gente, um problema com relação à representação: [o epitáfio] representa o corpo que já não está mais ali?
Há também uma outra questão com a frase, que é a relação com o próprio monumento. A rigor, um monumento, uma escultura, é também uma pedra. E eu acho que o Otelo sempre foi, ao mesmo tempo, muito conhecido e profundamente desconhecido. De modo que eu acho que o Otelo foi monumentalizado como a síntese do Brasil, e Macunaíma, de Joaquim Pedro, foi uma das armas que fez essa prisão, esse aperto de Otelo nessa figura de “o brasileiro”, “o Brasil”. Mas Otelo fala outra coisa também, “talvez eu vim antes dele [de Macunaíma]”. E aí eu cito a frase de dona Ruth de Souza que diz que “ele é monumento porque é gente”, ou seja, é monumento porque [está] em movimento.
Então, para o Otelo ser monumento, a própria noção de monumento precisa ser redesenhada. A própria noção de Brasil é bagunçada pelo Otelo. Ele trair os significados dessas palavras me parece uma primeira grande questão. Porque o Otelo é imenso. E eu só consegui destravar na montagem quando entendi que ele, de fato, é incomensurável, gigante; nenhum filme vai dar conta. E achava que o que eu podia fazer era lidar com as contradições da maneira mais honesta possível, e tentar ler os sinais e interpretar as contradições de Otelo, sem me apressar a fazer um julgamento disso.
Embora haja essa sequência muito forte que você citou do poema, eu penso que há uma outra questão fundamental relacionada a isso que é o seguinte: antes de começar o soneto, há um momento em que o Otelo diz “pra mim não existe ator negro nem branco”, e aí é que vem o jornalista para dizer que “talvez seja o momento para você falar aquele soneto que queria dizer”. O que eu quero dizer é que talvez haja, na figura de Otelo, uma relação entre máscara e rosto muito mais complexa do que simplesmente uma defesa de uma certa miscigenação, ainda que isso esteja lá. Mas a complexidade do Otelo escapa a essa defesa. Ela não é só isso, e o próprio começo do filme já demonstrará isso.
O que quero dizer é que há todo um circuito midiático que fez o Otelo se apregoar numa certa definição macunaímica, que fez Otelo colar-se à figura de Macunaíma, e isso está inclusive no retorno do programa, “vamos ver um trecho do Macunaíma”, “agora é o momento do soneto de integração”. Tem todo um aparato midiático que, de alguma forma, vai empurrando Otelo para falar certas coisas em determinados momentos. E, para mim, o momento que antecede o soneto é chave. Nesse sentido, eu acho que colocar Alma no Olho no começo do filme também é uma posição, no contracenar e no choque de um arquivo com o outro. Declaradamente, Alma no Olho está dizendo: “existe sim ator negro”.
Tem talvez essas nuances que estão ali, e, para finalizar, acho que mais do que tudo a posição do filme é uma tentativa de desmontar o filme do Joaquim, o Macunaíma de 1969. Porque eu acho que depois disso, e aí é preciso escutar os silêncios do filme, mas depois disso vem aquela fala da dona Diva Guimarães, que vira narradora daquela cena trágica e horrorosa do filme de Joaquim. Quando ela vira narradora da cena, ela faz um outro movimento, que é quando ela ganha todo o espaço cênico do filme para dizer assim: “bom, ela contava isso para contar aos brancos que a gente era preguiçoso, e não era verdade, se não a gente não teria sobrevivido”. O Otelo sobreviveu, né? Ele era um sobrevivente, e a sobrevivência de Otelo em cena, nas imagens, e aí o gesto anacrônico das mãos e do olhar, tem muito a nos dizer em relação a isso, a essa suposta defesa [de Otelo em relação à miscigenação].
Acho que o filme talvez esteja lidando com esse Grande Otelo figura pública, efetivamente. Entre o rosto e a máscara. E não é nem uma questão de coragem, eu acho que não tenho autorização mesmo. Por isso, a posição do filme em relação ao problema da falsa integração racial, ou do projeto de embranquecimento que sustentou esse país, tem a ver com uma crítica mais direta ao filme de Joaquim Pedro, que, esse sim, é freyriano, postula uma hierarquia racial, tem no personagem negro a causa para todos os males… “com nenhum caráter”, no sentido de mau caráter, do personagem. Então, eu acho que o filme se posiciona ao desembocar sua crítica numa crítica ao filme de 1969 e ao modo como o Macunaíma foi uma personagem que foram apregoando como uma cruz a Otelo, seja no cinema ou na mídia de forma geral, como é o caso do Roda Viva.
Não sei se te respondo, mas quero dizer que eu, Fabio, só conseguiria montar, por toda a circunstância de ser um filme sem os direitos autorais, sem acesso a muitos arquivos mais preciosos, eu só conseguiria montar… tem uma música do Jorge Mautner que eu amo, que ela diz assim: “A liberdade é bonita, mas não é infinita/Quero que você acredite/A liberdade é a consciência do limite”. Essa última frase veio muito forte para mim quando acabei de montar. Acho que teve um momento, depois de muito apanhar na montagem, que eu entendi que a minha liberdade enquanto montador só era possível de ser exercida a partir da consciência do limite para com o ator. Para com o ator que já não está mais aqui, para com o ator que eu tinha um número limitado de arquivos, e que eram eles próprios disponibilizados anteriormente pela grande imprensa. Então, essa consciência do limite era a consciência também da grandeza de Otelo. Que é também um limite para fazer nessa circunstância um filme sobre o Otelo. E talvez seja isso que cabe ao filme, colocar-se em risco para o debate. “Otelo é monumento porque é gente”, como dizia dona Ruth. E enquanto gente ele encarnou em si os problemas que têm a ver com ser um sujeito negro, baixinho, sabe? Ele encarnou dilemas que têm a ver com o Brasil, que têm a ver com a raça.
Eu sugiro, para quem não viu, que veja essas duas horas de Roda Viva, que aí você vai ver o que significa… Eu penso que a estrutura do Roda Viva é uma estrutura falida. Alguém no centro dessa roda… E é violento com Otelo, muitas vezes. Mas aí tem aquela cena que Otelo fala pro Paulo Betti; essa é a ginga de um sambista e de um ator… e no limite, pra encerrar mesmo, quando eu coloquei lá na sinopse “eis um samba sobre o infinito”, era um pouco dessa leitura do Otelo como algo incomensurável. Mas tinha uma outra coisa, porque estudando Otelo foi muito interessante essa relação com o samba, sabe? Com o malandro, não o estereótipo de malandro, mas o sambista e a beleza do samba. Então, eu tentava que o filme tivesse uma certa métrica de um samba, porque acho que a ginga do Otelo tem a ver com isso. Por exemplo, a fala do Otelo em 1987 é a própria encarnação de “Exu matou um pássaro ontem com a pedra que atirou hoje” [ditado iorubá], porque, de fato, é um outro modo de pensar o tempo que se instaura, que é o modo da reversibilidade, como diria o professor Muniz Sodré. E a reversibilidade é uma coisa que o samba faz de uma forma muito poderosa.
Então, se eu tinha uma missão grande, era que o filme se estruturasse como um samba, inspirado inclusive no próprio Otelo, como vem a dona Diva Guimarães recolocar o que passou. A dona Diva Guimarães desfaz toda a defesa de uma integração apaziguada, ela expõe a violência dos projetos integracionistas do país, que foram, na verdade, projetos de extermínio, de genocídio. Dona Diva é um típico exemplo de rasgo na imagem naquele trecho da Flip em 2017. Talvez seja um pouco isso que tinha a dizer sobre a posição do filme. Agora, não sei em que medida ela é eficaz, mas foi o que ali me pareceu [justo], com todas as questões envolvidas, e cada uma em si já eram muitas: Otelo, Macunaíma, o próprio Mário, né? Acho que é isso.
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