Escrevo este texto acompanhado do barulho da construção de um prédio ao lado do meu. Esse mesmo som, certamente bem distinto daquele que eu encontraria no agreste pernambucano, compôs a paisagem sonora das minhas sessões caseiras dos filmes da Mostra Competitiva de Curtas-Metragens do VI Cine Jardim – Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim.
Trago tal informação sem a pretensão de pedestalizar a experiência da tela grande, visto que mesmo nela atuam dispersões externas (os cachorros passeando na tenda ou na praça, o triturar da pipoca entre os dentes, o chato que comenta a sessão ou ri na hora “errada”) e internas (o cansaço acumulado naquele dia, o boleto em aberto, o desespero perpétuo chamado Brasil). Tampouco desejo propor uma reflexão de fôlego acerca dos festivais online – para isso, recomendo os textos escritos por Lila Foster e Juliana Costa já publicados neste Cine Festivais. A ideia aqui é falar sobre um dos fatores dessa equação: a fragmentação.
Dentro do processo de curadoria e programação de festivais de cinema, o curta-metragem se apresenta como um formato inerentemente relacional, visto que suas sessões são constituídas usualmente por três ou mais filmes. Nesse contexto, coexistem de modo poroso e não-hierarquizado reflexões individuais sobre cada obra e linhas de força mais amplas que formam o todo daquela sessão.
Para escrever minha dissertação de mestrado, realizei entrevistas com curadoras e curadores de festivais brasileiros, e uma fala recorrente se referia à importância do curta-metragem em suas trajetórias no sentido de refinar o pensamento curatorial e fugir de caminhos muito óbvios na programação de filmes. Tudo muito bonito na teoria… mas aí veio a pandemia.
Na minha experiência com festivais online, tenho encontrado diferentes maneiras de apresentação de obras de curta-metragem. Há aqueles que tentam emular a experiência presencial, propondo playlists para cada sessão; há aqueles que desenham suas sessões, mas deixam que o acesso a elas ocorra de modo individual, curta a curta; e há aqueles que tão somente dispõem os filmes em ordem alfabética, sem nenhum direcionamento, deixando o público colher fragmentos possíveis dentro dessa cesta de filmes (o que se aproxima do que temos há tempos nas plataformas regulares de streaming).
No caso do VI Cine Jardim, as opções 2 e 3 se misturam. É possível acessar os filmes por ordem alfabética a partir do site do festival, mas também há a opção de encontrá-los pela plataforma Cardume, na qual eles estão dispostos por programa. Todavia, mesmo para quem deseja assistir às sessões a partir da ordem planejada pelo festival, é preciso ver o filme em um endereço separado e, ao seu término, voltar para a página anterior e procurar pelo filme seguinte. Nesse ambiente, não há fluxo possível; a fragmentação é a regra.
Há uma cena em 23 Minutos (direção de Rodrigo Beetz e Wesley Figueiredo), filme sobre o qual falarei mais em outro texto, na qual um personagem que trabalha em uma oficina mecânica canta um rap enquanto organiza as ferramentas de trabalho (do patrão). Acho forte como está posta ali a ambivalência ordem x desordem. E é justamente essa ordenação do capital, e todas as injustiças a ela atreladas, que provoca a arte, a música, o cinema, que em sua melhor vertente está aí para desorganizar, colocar em xeque.
A aposta na desordem, no fragmentário, foi o que me fez abortar a intenção inicial de escrever sobre cada um dos seis programas de curtas da competitiva do Cine Jardim. Isso seria organizar demais o caos que governa o tempo presente.
Por isso, nesta cobertura que se inicia agora, a questão não é olhar o copo meio cheio ou meio vazio, mas sim entender que ele está estilhaçado – e que a junção desses fragmentos em outras formas é muito mais instigante do que a recomposição de todos os cacos num “novo” copo.
* Este texto faz parte da cobertura do Cine Festivais para o VI Cine Jardim