Levou cerca de cinco anos para que a ideia de fazer um filme mais pessoal, situado em seu próprio bairro na cidade de Contagem (MG), se tornasse efetivamente um longa-metragem. Nesse ínterim, Affonso Uchoa mudou a sua relação com a localidade onde mora, fez novos amigos e, ao fim do processo, ainda saiu consagrado da 17ª Mostra de Cinema de Tiradentes com os prêmios dos júris Jovem e da Crítica para sua obra, A Vizinhança do Tigre.
“Fiz esse filme para me sentir um pouco mais pertencente ao bairro, para descobrir mais essas pessoas com quem eu não tinha um diálogo tão forte, para saber de verdade quem eram os meus amigos e para fazer novos amigos. Esse filme me proporcionou conhecer meu bairro de um jeito que eu não imaginava, mudou a minha relação com ele”, explica Affonso.
O filme, realizado com baixo orçamento e atores não-profissionais, tem traços documentais e ficcionais. Os jovens que participaram do projeto reencenaram, vivenciaram ou reimaginaram fatos e situações de suas vidas. Sem um roteiro tradicional, a tarefa de Affonso foi a de guia-los durante esse processo, no qual os artistas tinham liberdade para improvisar e sugerir cenas. Como diz o diretor, foi um filme feito “por eles, para eles e com eles”.
Affonso Uchoa conversou com o Cine Festivais quando esteve em São Paulo para apresentar o seu filme na edição paulistana da Mostra de Cinema de Tiradentes, que aconteceu no CineSesc.
Veja a seguir as principais partes da entrevista, na qual o cineasta fala sobre o processo de criação de A Vizinhança do Tigre e também comenta sobre temas polêmicos, como a baixa visibilidade de filmes autorais até mesmo em festivais de maior porte.
Cine Festivais: Como surgiu a ideia para A Vizinhança do Tigre? Qual era a intenção inicial com o projeto e como ele foi mudando ao longo do processo?
Affonso Uchoa: A única coisa que planejei era fazer esse filme. Eu queria e precisava fazer esse filme. Era uma questão pessoal. Queria fazer um filme mais perto da vida, tinha dificuldade de me enxergar nessa estrutura industrial de se fazer cinema. Não cheguei de fato a experimentar um grande set, uma indústria consolidada. O Mulher à Tarde (filme anterior de Affonso) tinha tempo contado e uma equipe com 12 a 15 pessoas, o que para um longa é uma bobagem, mas isso já me foi um tanto quanto opressor em alguns aspectos.
Tinha o interesse de falar de algo que eu de fato conhecesse, que era o meu bairro, as pessoas que eu via cotidianamente. Havia a busca por me proporcionar uma experiência vital com esse filme, não era só uma questão de plano de carreira. O que eu queria é que esse filme fosse uma experiência transformadora para mim. O desafio que me impunha era ver o meu bairro e aquela minha realidade comum de modo diferente. Foi para isso que me lancei no filme.
CF: Em relação à formação do elenco, você conhecia aquelas pessoas antes do filme?
AU: O filme é uma espécie de mergulho um pouco mais profundo da minha parte em um trabalho em parceria com o Warley Desali, que fez o som direto e me ajudou muito no Vizinhança. A gente fazia desde 2007 uma série fotográfica que intitulamos provisoriamente Sangue de Bairro, na qual começamos a fotografar nossos amigos e a molecada do bairro, uma coisa meio flaneur. Por isso fomos conversar com essas pessoas que já tínhamos fotografado, mas o legal é que, da minha primeira ideia, só o Adilson ficou no elenco.
Cada um dos atores tem uma história particular. O Eldo eu já conhecia, mas não tinha pensado em chamar para o filme. Eu mesmo não acreditava que ele iria topar, mas ele entrou e viveu esse filme intensamente. O Juninho eu conhecia mais de vista, e o filme disparou uma relação muito mais forte. E tem outras pessoas que eu não conhecia e o filme me fez conhecer, como é o caso do Menor e do Neguinho. Eles moravam no bairro, a gente chegou até eles por causa do filme e desse fato nossa relação se intensificou até um ponto de amizade.
CF: Embora tenha muito da vida dos garotos, você disse no debate em Tiradentes que o filme é uma ficção. Essa concepção veio desde o começo?
AU: O que se espera de um documentário, no sentido tradicional, são entrevistas, talking heads, aquilo que o Godard chama de prova do crime – uma espécie de atestado da veracidade dos fatos e acontecimentos. Então documentário esse filme não é. Eu quis ressaltar isso, ainda mais porque tinha aquela coisa do catálogo, algumas pessoas levadas a ver só o traço documental do filme e esquecer da construção ficcional.
O filme não é uma ficção pura, mas é preciso dizer que ele tem uma construção ficcional. Isso foi buscado por mim e topado pelos atores, que reencenaram, vivenciaram ou reimaginaram fatos e situações da própria vida. A minha função foi de tentar guiar isso e aproveitar ao máximo essa energia deles em função do filme.
O traço documental e real tem um papel preponderante. É um filme feito por eles, para eles e com eles. Então é da vida deles que surgiu a maioria do material dramatúrgico, só que obviamente filtrado por mim. Então tem um grau de subjetividade entre a experiência deles e o que eu vi da experiência deles, mas a gente tinha um compromisso com eles, não queríamos trair os personagens de modo algum.
CF: Em relação ao roteiro, a participação dos garotos era escrita ou de improviso?
AU: Quando João Dumans e eu fizemos a primeira versão do roteiro, já tínhamos oito meses de filmagens acontecidas e mais ou menos 30 horas de material filmadas. Então foi uma sedimentação de algo que já tinha passado e uma espécie de preparação para o que a gente ainda ia passar.
Esse roteiro foi reinventado a cada dia de filmagem. A maioria das cenas que a gente tinha pensado não foi filmada. Era um roteiro muito diferente, sem nenhuma escrita de diálogos e apenas uma lista de cenas e de ideias junto com um longo texto meu pensando quem seriam esses personagens. E os meninos não escreveram nenhum diálogo, eles escrevem de outro jeito. A escrita deles é na cena.
Tínhamos um processo de reescrita entre as tomadas. A gente repetiu bastante as cenas na maior parte das vezes. Eu tinha algumas ideias e pedia para eles a processarem. Queria que eles falassem as coisas do jeito deles, e não com minhas palavras. A gente filmava e depois cada um dizia ‘não gostei disso e daquilo’, discutíamos e tentávamos aprimorar.
CF: O Andrea Tonacci, em debate na última Mostra de Tiradentes, disse que nunca sabe o que é o filme: o filme é que diz quem ele é. “Na condição de espectador do meu próprio filme que eu o compreendo”, disse Tonacci. Como essa frase se relaciona com A Vizinhança do Tigre e com o seu autodescobrimento?
AU: Essa frase é muito bonita. Eu adoro o Tonacci, é um dos meus cineastas favoritos e uma figura incontornável na história do cinema brasileiro. Eu me identifico com essa frase, principalmente pelo processo do Vizinhança, porque esse filme teve essa questão muito pessoal.
Tinha essa coisa da minha relação com o bairro, porque eu sempre fui uma figura muito afastada. Eu não sou um deles. Moro no mesmo lugar deles, mas eu não sou um deles. Tive a sorte de ir para a faculdade. Apesar de ser filho de um caminhoneiro com uma costureira e não ter uma condição econômica super favorável, tive essa sorte de ter algumas coisas na vida que eles não tiveram por várias razões.
Em alguns momentos na adolescência até tive um desejo de uma espécie de negação do bairro, uma sensação de não pertencer a ele muito forte. Então eu fiz esse filme para me sentir um pouco mais pertencente ao bairro, para descobrir mais essas pessoas com quem eu não tinha um diálogo tão forte, para saber de verdade quem eram os meus amigos e para fazer novos amigos. Esse filme me proporcionou conhecer meu bairro de um jeito que eu não imaginava, mudou a minha relação com ele.
E, de fato, quem conseguiu me dizer o que eu era ao final desse processo todo, quem conseguiu disparar essa mudança de mim mesmo foi o filme. É ótimo quando o filme também permite que a gente seja espectador da nossa própria vida e veja o que ele conseguiu mudar em nós mesmos.
CF: Quando você definiu o nome do filme?
AU: O filme já nasceu com esse nome. Ele veio junto com a vontade de filmar meu bairro, mas sobretudo de filmar jovens. Era um desejo muito forte de falar sobre o que eu conheço. Me encanta a juventude, a adolescência, essa imperfeição, esse sangue mais quente, essas descobertas em profusão, essa coisa instável dos jovens. É isso que me guia, sempre me levou a fazer meus filmes e que foi muito forte no Vizinhança desde o começo.
E a coisa do tigre era um verso que eu tinha imaginado, que a adolescência é a idade do tigre. Queria tratar desse estado de fúria, desse tigre da juventude. Essas pessoas que estão o tempo todo roçando esse furor e ao mesmo tempo não se deixando contaminar por ele. O tigre está sempre rondando a vida dos jovens, mas ao mesmo tempo são raros os momentos em que eles incorporam essa ferocidade.
CF: O seu filme tem algumas semelhanças com o Branco Sai Preto Fica, obra do Adirley Queirós que acabou recebendo menção honrosa do júri de Tiradentes. O trabalho de improviso com os atores, na ausência de um roteiro tradicional, a afirmação de localidades (Contagem e Ceilândia) e pessoas geralmente marginalizadas…
AU: Os filmes têm muitas aproximações. Eu gosto demais do Adirley. Acho ele é um sujeito que, além de ser extremamente gente boa, é um dos cineastas mais importantes do cinema brasileiro de hoje. Há várias possibilidades de aproximação, sobretudo pelos gestos de cinema dos dois filmes. Acho que tem o desejo de fazer uma espécie de contrafluxo da história, de resgatar da sombra essas figuras, pessoas e histórias que, se não fossem esses filmes, talvez ficassem ali em uma espécie de limbo, de zona sombreada do poder. Os nossos filmes dão protagonismo a quem nunca é protagonista; mostram o mundo desses caras que, em geral, o poder e a sociedade não quer olhar.
Em relação aos processos de filmagem o Adirley é muito aberto também, tem a improvisação, a presença do documental. Esse é o tipo de caso em que a gente ganha dos dois lados. Pensar os filmes juntos pelo o que eles têm de próximo vai trazer muita coisa interessante, porque os filmes têm uma irmandade e uma potência que eu acho muito fortes.
CF: Qual é a sua avaliação do prêmio em Tiradentes e como você percebe a opção do festival pelo incentivo a produções independentes?
AU: Para mim foi ótimo ter passado o filme lá. Foi ótimo ter vencido, dá um orgulho muito grande, um contentamento de ver que de fato valeu a pena todo esse esforço, essa entrega, essa dedicação. Me dá orgulho, principalmente diante de uma mostra que eu achei forte, com muitos filmes bons. Para além da vitória, o mais importante, de longe, foi estar lá, levar os meninos para verem o filme e vivenciarem o reconhecimento do trabalho deles. Isso foi o principal.
Sobre o festival de forma mais ampla, eu acho ele muito importante. É um festival que tem uma proposta curatorial forte, que tem um olhar sobre o cinema que não é um pautado pelo comércio, pelos grandes nomes, pelo lobby, pelo estrelismo nem pela busca de espaço de mídia. Isso eu acho interessante. É um caso raro no Brasil, onde temos muitos grandes festivais em grandes capitais que são comandados por pessoas que são grandes produtoras de evento, mas que não tem nenhuma concepção cinematográfica na cabeça quando montam um festival.
Em Tiradentes a curadoria tem o desejo de lançar um olhar sobre o cinema brasileiro , de oferecer ao público uma parte específica e forte do cinema brasileiro. Um cinema de risco, jovem, que está buscando ser feito de modo não-industrial, mais amador no bom sentido, mais apaixonado e ao mesmo tempo menos estruturado.
CF: Alguns críticos dizem que há um risco de que os filmes da Mostra Aurora, por serem mais autorais, acabem tendo características semelhantes que criem uma espécie de gênero próprio. Como você avalia isso?
AU: Gênero é forte, não concordo com isso não (risos). As pessoas só conseguem pensar em “filmes de Tiradentes” porque na verdade o problema não é de Tiradentes, é dos outros festivais. Se os outros festivais tivessem coragem, com uma curadoria que se abrisse para poder pensar cinema, e não evento, para poder pensar arte, e não mídia, alguns desses filmes que passam na Mostra Aurora poderiam passar em outros festivais e não estariam enclausurados em Tiradentes. Eles só ficam ali porque os outros festivais não conseguem se abrir a eles.
Esses filmes têm qualidades, e não estou falando sobre o Vizinhança. Falo sobre o Branco Sai Preto Fica (de Adirley Queirós), o Batguano (de Tavinho Teixeira). Por que eles não passariam em outros festivais? São filmes maduros, de força. O filme do Adirley é um filme de uma potência inacreditável. Por que ele não passaria em outro festival? Por que ele tem que ficar restrito a Tiradentes? São perguntas que quem tem que responder são os outros festivais, não é Tiradentes e muito menos os realizadores.
Agora, a gente não pode transformar isso em uma espécie de orgulho do enclausuramento, dizendo que existe um tipo de cinema. Não tem que botar todo mundo no mesmo balaio de gato, porque na verdade a gente não ganha nada com isso. A gente vai comparar muito alho com bugalho e vai acabar perdendo o que esses filmes têm de particular. Esses filmes já estão passando pouco, têm uma abertura muito reduzida no mercado de cinema e a grande maioria não vai para a exibição comercial.
Que sejam ditos também os erros, mas que eles sejam vistos como filmes, e não como um exemplar de uma tendência que vale mais que os filmes. Nenhum conceito geral, movimento, cena ou hype vai valer mais do que cada filme apresenta, seja ele bom ou ruim. O que a gente tem que fazer é olhar para os filmes individualmente. E, se esses filmes ficarem restritos a Tiradentes, eu só tenho a lamentar pelos outros festivais. Quem vai sair perdendo são eles.
CF: Qual será a trajetória do filme daqui em diante? O Adirley Queirós me disse que pretende fazer uma parceria para distribuir o Branco Sai Preto Fica junto com A Vizinhança do Tigre…
AU: Claro que eu gostaria que o filme fosse visto, mas sabemos que filmes com perfil semelhante fazem dois mil espectadores, quando muito. Diante dessa realidade, apesar de gostar do filme e saber a força que ele tem, eu sei que o potencial do filme é mais ou menos esse. Eu acho que o principal é ocupar um espaço e ser colocado à disposição do público, para que as pessoas possam ter contato com o que o filme está apresentando.
Com meu outro filme, Mulher À Tarde, fiz uma distribuição independente e consegui 700 espectadores. É ruim por um lado, mas que legal que 700 pessoas saíram de suas casas e pagaram seus 1, 3, 5, 10 reais para poder sentar ali e ver um filme do qual elas não sabiam nada e que não tem mídia, não tem estrela, não tem nada para chamar eles, a não ser a própria curiosidade. Sempre vai ter gente com essa curiosidade artística, e nós temos que buscar essas pessoas. Cada filme tem que achar seu público, mesmo que ele seja reduzido.
Vamos tentar fazer o filme circular por festivais e depois tentar fazer algum tipo de distribuição, nem que seja pequena. Conversei com o Adirley em Tiradentes e a gente tem esse desejo de fazer uma distribuição conjunta desses dois filmes. É aquilo que ele maravilhosamente chama de “distribuição ideológica”. A gente vai tentar fazer essa distribuição dos filmes em algum momento, é um plano que a gente tem.
CF: Quais são os seus próximos projetos?
AU: Nesse ano vou fazer um curta e um longa. O longa eu tinha aprovado o projeto em 2011 em parceria com o João Dumans, que também foi diretor-assistente do Vizinhança e me ajudou no roteiro. A gente vai filmar em outubro, em Ouro Preto e Contagem. O curta a gente vai filmar em maio em Ouro Preto.
Mais uma vez, serão filmes sobre jovens, adolescentes, então tem uma continuidade dessa obsessão pela temática da juventude. O curta se chama Arabia e o longa tem um título provisório, que eu não gosto muito, que é O Tempo que Passa. O diálogo com o Vizinhança é mais temático, a forma é diferente. Tenho o desejo agora de fazer um filme mais ficcional mesmo, sem uma relação tão forte com o documental como foi em Vizinhança.
A ideia é fazer um esquema de produção mais tradicional. Os dois filmes têm roteiro, diálogos, mas obviamente as filmagens podem revelar outras coisas, temos uma abertura para que o instante da filmagem jamais seja visto como uma reprodução do roteiro. É também um instante criativo, de escrita do filme, que se escreve primordialmente ali no momento da filmagem. Por mais que tenha uma estrutura dramatúrgica, sempre vai ter espaço para descobertas, improvisação, para o erro, para o risco…