O ponto de partida de Temporada é dramático: Juliana (Grace Passô) se muda para a periferia de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, para trabalhar no combate às endemias na região. Ela vai sozinha, pois o marido ainda precisa resolver pendências na cidade em que morava antes de se juntar a ela. Mas ele não vem. O filme acompanha esse momento de transição na vida de Juliana, o que poderia demandar um tom sério, trágico ou melancólico. André Novais Oliveira, no entanto, opta pela leveza e constrói seu filme de drama com muitos elementos de humor.
Há um quê de imprevisível na comicidade do filme: ela pode aparecer antes de cenas mais dramáticas, como se preparando o terreno; depois, como um respiro de alívio; ou ainda na estrutura interna de algumas cenas, equilibrando o tom que predomina a cada momento. É importante notar que não se trata de um recurso para diminuir a seriedade ou a potência dramática da história. Aqui, o humor surge justamente da quebra de expectativa, da junção de dois elementos inesperados que levam a história, a ação ou o discurso para uma outra direção. Essa quebra ocorre inclusive na própria estrutura do filme, quando pensamos no modo como ele apresenta e desenvolve seus personagens.
Ainda que Juliana seja inegavelmente a protagonista, sua história só pode ser contada porque Temporada conta as histórias dos personagens secundários também. Não é à toa que o primeiro plano do filme não é dela, e sim de Russão (Russo Apr), seu colega, trabalhando na rua. A cena seguinte, que acompanha os créditos de abertura, mostra a equipe caminhando pelas ruas de Contagem, em direção à unidade de trabalho onde Juliana os espera para ser apresentada. Os planos são abertos e não mostram nenhuma ação de relevância dramática ou de características de personagem. Ao julgar por essas imagens, não há como prever o papel dessas pessoas nem desse lugar na vida de Juliana. Mas a escolha por serem elas quem nos situam neste universo deixa claro, ainda que sutilmente: esse filme é sobre essas pessoas e essa cidade.
Após a apresentação da situação dramática de Juliana e dos primeiros traços do sumiço do marido, Russão traz a primeira batida de humor no filme, não coincidentemente no primeiro dia de trabalho de Juliana. As primeiras instruções no treinamento de seu novo ofício fisicamente cansativo e potencialmente entediante vêm com a inesperada previsão de acolhimento de Russão: “Essa área aqui é de boas. Daqui a pouco você vai conhecer os morador e tal, aí fica fácil. Vai tá até tomando cafézinho com o pessoal.”
O personagem de Russo Apr é o que mais carrega explicitamente o tom cômico da obra. Não só por conta de um humor físico, através de gestos exagerados e variações na voz, mas por seu comportamento espontâneo romper com expectativas sociais e, consequentemente, agir como um motor de humor. É isso o que torna Russão tão cativante, porque além de dizer o que “não deveria”, as motivações por trás de seu comportamento também escapam a uma leitura inicial.
Seu primeiro rompimento com o socialmente aceito se dá quando convida Juliana, que ele mal conhece, para jogar videogame em sua casa enquanto não termina o horário do expediente. O segundo rompimento vem quando eles realmente jogam videogame, sem haver qualquer insinuação romântica ou sexual entre os dois, suspeita que o convite poderia gerar.
Mas dentro de uma expectativa social (e cinematográfica), e diante da intensificação da ausência do marido de Juliana, ainda é possível olhar para a relação entre os dois como uma construção amorosa. É em uma cena cujos elementos facilmente apontariam para essa direção (um colega de trabalho deixa Juliana e Russão a sós em um banquinho de praça à noite) que o filme estabelece de vez que as relações que lhe interessam são de amizade, e não de amor romântico.
Esta cena também chama atenção por se desenrolar a partir da coloquialidade e da falta de filtro de Russão ao falar sobre uma paternidade inesperada. O desenho do diálogo é pautado por pequenas revelações cômicas.
– Tô rindo aqui, véi, mas eu tô griladaço.
– Griladaço, por quê?
– Tipo assim, eu acho que eu vou ser pai, velho.
– Você vai ser pai?
– Não, não tenho certeza.
Depois de negar (inesperadamente, comicamente) a declaração que ele próprio acabou de fazer, Russão segue contando como descobriu a possível paternidade, encerrando na revelação máxima de que a criança já tem três anos, o que provoca uma levantada de sobrancelhas de espanto por parte de Juliana. Apesar da seriedade do assunto, Russão continua a romper com a carga dramática da situação: “Já fala, já caga, já anda, já quase dá rolê sozinho.”
Ainda que Russão seja o protagonista da cena, nós e Juliana sabemos muito bem o quão fundo paternidade/maternidade a tocam. Aqui, o humor é usado para atenuar e assimilar uma reviravolta séria na vida de Russão. Já no começo do filme, em uma conversa de Juliana com a prima, a única leveza permitida é um pacote de salgadinhos que a própria Juliana pega para adiar e pautar o relato sobre sua gravidez interrompida em um acidente de carro anos atrás. Este é um peso que Juliana carrega desde o começo, ainda que nem ela nem o filme voltem a mencioná-lo.
E é a partir do convívio com o peso e com a leveza dos outros que o de Juliana passa a se transformar. A conversa cômica porém pesada com Russão é seguida por uma sequência de movimentos unicamente dramáticos e tensos, de Juliana voltando para Itaúna em busca do marido, descobrindo que ele sumiu do trabalho, encontrando com o pai que, observando uma fogueira sozinho no quintal de casa, mal olha para a filha. “Tô aqui fazendo as minhas coisas, o que você tá fazendo aqui?”.
Mas se os laços familiares são frouxos, os laços profissionais e de amizade se tornam progressivamente firmes. Em meio à história de Juliana, há cenas dedicadas também à intimidade e humanidade de cada um de seus colegas. Sua chefe, que passa a maior parte do filme como uma personagem mais distante, lhe mostra fotos de seu filho e conta da relação com o pai do adolescente, de quem já se separou. Este, inclusive, é o único momento em que há menção a conflitos raciais no filme (“não tinha nenhum negro na família dele”), quando a personagem conta, assim como Juliana na cena com a prima, “aquelas coisas que te marcam e machucam lá dentro.”
E é com seu colega Hélio que Juliana divide o momento seguinte à sua elipsada, e por isso mesmo mais forte, transformação de cabelo. Ela o encontra sentado na grama observando uma lagoa suja e o zoa por isso. Ele a convida para puxar uma cadeira (inexistente, logo, cômica) e sentar junto. Primeiro é ele que desabafa brevemente sobre seus dramas de vida, e em seguida é Juliana, que o faz mais brevemente ainda. Dessa vez, cabe a ela aliviar o clima: “É como dizem por aí: se eu contasse pra você o que acontecendo comigo, você arriava as calças e dava para mim.”
A piada, que brinca com o “vulgar”, muito lembra frases de memes, tal qual o que vemos Juliana olhar no Facebook muitas cenas atrás, no começo de sua vida em Contagem. Nessa primeira cena, o meme, que faz piada com solidão, traz uma identificação triste para Juliana e cômica para o público, diante de um inesperado close em uma imagem do cotidiano da internet. Aqui, na cena do lago, é Juliana quem faz piada com sua tristeza. O tom positivo se confirma quando ela diz, em seguida, que apesar de tudo está vivendo coisas que nunca imaginou, e conseguindo “fazer as minhas próprias coisas.” Essa fala lembra um pouco a fala de seu pai. A diferença é que as coisas de Juliana agora não são mais pautadas em solidão, e sim, no convívio com o outro.
E esse outro se espalha por todas as interações de seu cotidiano. Por mais breve que o contato com um morador de uma casa visitada, uns meninos sentados na rua ou um amigo de Russão que o ajuda com o curso de cabeleireiro seja, há sempre pequenas informações pessoais afetivas sobre essas pessoas, que as humanizam de forma inesperada. Não estamos acostumados (nem no cinema, nem na vida) a saber da história do homem que se mudou para Contagem e viu a cidade crescer, ou que a chefe do cara que trabalha num camelô não fala português e tem uma sobrinha pela qual ele é platonicamente apaixonado. Em Temporada, vemos traços afetivos até de pessoas ausentes, como na foto de viagem com uma dedicatória que Juliana encontra em um móvel de uma loja.
No fim das contas, Russão realmente estava certo: Juliana toma um cafézinho com a dona de uma casa que ela inspeciona, que insiste em também oferecer bolo de fubá com queijo. Enquanto ela conta de sua vida, Juliana a assiste através das fotos de família expostas na sala. Ainda que o convívio não seja longo, é como se Juliana conhecesse aquelas pessoas.
A trajetória de Juliana é a de uma pessoa solitária (“É que eu nunca fui de ter amigo, Hélio”) que em um momento de abandono, de mudança e de trabalho intenso e mal remunerado, consegue construir laços afetivos. Laços nem familiares nem românticos, e sim, de amizade e de casualidade. É, talvez, por justamente nos permitir não conhecer apenas os dramas de Juliana, mas também as histórias, as dificuldades e as piadas dos outros habitantes de Contagem, que Temporada consiga ir tão fundo e ser tão leve.