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Resposta de Daniela Thomas sobre Vazante

Daniela Thomas no debate ocorrido no 50º Festival de Brasília

Questionada pela reportagem “Pluralizar os espaços, expandir o imaginário: atrizes e atores negros no cinema brasileiro contemporâneo” a respeito do processo de produção de Vazante e da repercussão do filme no debate público, a cineasta Daniela Thomas nos enviou o texto abaixo, que pode ser lido na íntegra.

Realizar o Vazante foi uma experiência incrível. Foram anos de pesquisa histórica e de conversas, muitas, com as comunidades quilombolas que ficamos conhecendo graças ao fabuloso filme do Rodrigo Siqueira, Terra Deu, Terra Come (2010), e cujo convívio nos foi franqueado pela maravilhosa documentarista mineira Cida Reis, que foi nossa ponte com essas pessoas fascinantes.

Todo o processo de escolha da figuração foi feito através de três viagens, nas quais em vez de testes de elenco, fizemos entrevistas longas com dezenas de pessoas nas comunidades quilombolas de Ausente, Quartel de Indaiá, Vila Nova, Córrego da Cachoeira, São João da Chapada, Queimada, Morro do Vigário, Açude Cipó, entre outras. Temos muitas e muitas horas de gravações dessas conversas, que foram essenciais para a nossa compreensão da paisagem humana daqueles lugares.

O mesmo aconteceu com os africanos do Mali e de Burkina Fasso, que fizeram o papel de africanos recém-chegados ao Brasil. Foi uma troca incrível com eles em muitos encontros e conversas. Aprendemos muito.

Fizemos ensaios/oficinas com o elenco de atores, com os africanos e os moradores das comunidades quilombolas, nas duas semanas que antecederam o início das filmagens e já nas locações prontas. Através dessas oficinas coordenadas pela querida Sandra Corveloni, com a ajuda de Mantega, da comunidade quilombola de São João da Chapada, ficamos conhecendo, além das muitas histórias de seus ancestrais, as cantigas, os lundus que são ensinados de pai pra filho desde muitos séculos. Daí veio, por exemplo, a canção que a Geisa (Costa) canta no filme. Acho que ela aprendeu muito da composição de sua linda Joana no convívio que a produção proporcionou dos atores com o elenco das comunidades quilombolas. Raramente conseguimos tanta disponibilidade de convívio, de oficinas, de ensaios no cinema brasileiro antes de começar a filmar. Por razões óbvias. Mas eu insisti muito com nossos produtores para que tivéssemos essa troca, essa aclimatação, e conseguimos. Agradeço a eles. Foi um sonho.

Aprendemos muito, muitíssimo nessas semanas de preparação, com todo o elenco andando pra lá e pra cá, em seus figurinos, brincando, papeando, ensinando uns aos outros sobre os costumes ancestrais.

Mas não só de preparação dos atores se deu essa troca. As casas que compunham a senzala do filme, por exemplo, foram construídas por esses mesmos remanescentes dos quilombos, com saberes centenários. Aprendemos que os homens fazem o trançado de tabiques e as mulheres socam a terra num ritual maravilhoso que é movido a canções e é quase uma dança. As roupas que compuseram os figurinos do filme foram confeccionadas por costureiras locais, bordadeiras, que vieram para a fazenda e se tornaram figurantes do filme também. Até o nosso fogão a lenha foi feito pelos locais, fogão esse que só existe nessa região, pois tem “pernas” de madeira, muito diferente dos que conhecemos. Ah, e foi de Geisa um verdadeiro workshop da arte de amarrar turbantes, cujo conhecimento já não fazia parte do repertório das mulheres das comunidades quilombolas.

Incorporamos falas, músicas que os atores nos trouxeram. A canção que assusta a personagem da Feliciana (Jai Baptista, ganhadora do prêmio de melhor atriz cadjuvante no 50º Festival de Brasília) é uma cantiga do norte da África sobre o porto de escravos Goree, que o ator do Mali, Toumani Kouyaté, nos presenteou com ela. Fabricio Boliveira trouxe as falas de seu santo para ressoar na noite em que seu personagem dá uma virada importante na história.

Vazante foi feito a partir da escuta contínua, sistematica e renitente, e do engajamento de todos.

Mas Vazante não é – é verdade – um filme escrito do ponto de vista dos personagens negros, e sim do ponto de vista da menina branca, que é quase uma projeção minha. Tive, a todo momento, o cuidado de não falar “em nome de”. Mas nesse momento importante da luta pelo fim da discriminação, pelos direitos e reconhecimento dos negros, e apesar de todo o cuidado que tivemos na preparação e pesquisa do filme, a ausência de protagonismo negro falou mais alto do que tudo. E eu entendi e respeitei essa crítica.

Eu entendi, respeitei e aprendi muito com as reações ao Vazante porque sou e sempre fui – acima de cineasta e autora – uma ativista pela justiça social, pela extinção de todos os preconceitos, de cor, de gênero, sociais, étnicos, econômicos, enfim, pela extinção de preconceitos.

Foi duro me ver, pela reação tão forte ao filme, no campo oposto da luta. Mas foi muito importante, pois me fez estudar, me atualizar sobre o feminismo negro, a ponta de lança dos feminismos, a interseccionalidade, questões com que eu ainda não tinha tanta familiaridade na época.

Um último esclarecimento: cortar cenas ou partes de cenas na montagem final: isso é da essência de se fazer cinema. Nem tudo que está escrito no papel funciona na hora de montar. Não houve um corte seletivo de cenas dos negros. Imagina! Cenas inteiras de personagens da familia da Beatriz, cenas inteiras do personagem do Antonio foram abandonadas por não funcionarem na montagem final. Nunca houve uma decisão de cortar uma imagem ou fala baseada na cor do personagem! Me entristece muito essa acusação, que simplesmente não procede.

Tenho orgulho de Vazante, pelo que me ensinou na sua longa gestação e feitura e na importante reação e reflexão que provocou, e pelo convívio incrível que nos presenteou a todos que participamos das filmagens.”

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