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“Na Paraíba anoitece”: uma conversa com Ramon Porto Mota

17/07/19 às 14:24 Atualizado em 21/10/19 as 22:19
“Na Paraíba anoitece”: uma conversa com Ramon Porto Mota

Janeiro de 2011: circulando com o seu primeiro filme, o curta-metragem O Hóspede, Ramon Porto Mota ouve na Mostra de Tiradentes uma pergunta que ficaria marcada em sua memória: “como é que você fez um filme escuro na Paraíba?” (Olhando em retrospecto, o cineasta pensa que deveria ter respondido assim na ocasião: “na Paraíba anoitece. Fica escuro à noite, como em qualquer lugar do mundo. A gente não está sob um sol de rachar 24 horas por dia.”)

Corta para junho de 2019: a Paraíba tem agora uma cena cinematográfica, com alguns longas e muitos curtas-metragens produzidos nos últimos anos, e o cinema de gênero vive momento de maior reverberação no cenário nacional e mundial. Ramon faz no 8º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba a estreia brasileira de seu primeiro longa, A Noite Amarela, um filme de horror experimental/existencial que retrata a viagem de um grupo de adolescentes recém-saídos do Ensino Médio.

Durante o evento curitibano, o cineasta conversou com o Cine Festivais a respeito desse trabalho, que tem previsão de lançamento no circuito comercial pela Sessão Vitrine.

Cine Festivais: Em uma entrevista que fizemos em 2015 você definiu o projeto de A Noite Amarela como “uma história de adolescentes que estão comemorando o fim do Ensino Médio e de repente se dão conta de que vão morrer”. Olhando pro filme agora, depois de todo o processo de realização, o quanto que essa definição ainda faz sentido pra você?

Ramon Porto Mota: Acho que eles só não se dão conta (de que vão morrer), mas é um retrato fiel do filme. Talvez eu o definisse de outra forma hoje, mas é mais uma questão de como apresentar a lógica do horror na narrativa. Neste filme específico eu tenho muita dificuldade de dizer “ele é isso, ele é aquilo”, porque ele tem várias camadas, várias questões… Óbvio que de 2015 até 2017, que foi quando a gente filmou, nós reescrevemos muita coisa, mas o filme nunca deixou de ser o mesmo.

De que forma você acha que o contexto externo afetou o processo de criação e pode impactar as reverberações do filme? Ele tem uma temática universal, mas ao mesmo tempo está sendo lançado nesse Brasil de 2019…

Quando a gente começou a escrever o roteiro, eu e Jhésus (Tribuzi), queríamos fazer um filme em que essa questão sociológica/política tão recorrente no cinema brasileiro não estivesse. A gente não estava interessado em refletir mais uma vez sobre o subdesenvolvimento brasileiro, em entrar em discussões que são recorrentes no status quo do cinema brasileiro. Nossa ideia era fazer um filme existencialista, na linha de Walter Hugo Khouri, Jean Garrett… Mas enfim, é uma inocência, porque a realidade brasileira é o que ela é.

No momento em que a gente iniciou a montagem, um protofascista estava prestes a chegar ao poder, e com isso vem todo um mal-estar do que vai ser o futuro. Essas questões começaram a aparecer e a se relacionar muito com o filme. A gente começou a pensar: “nossa, o que é você sair da escola e entrar na universidade em 2019?” Tem uma grande sequência do filme que é a comemoração do dia em que os meninos fazem o ENEM, e olha o tanto de presidentes do Inep que já foram demitidos este ano…

Essas coisas da realidade, esse mal-estar, foram ficando muito patentes. A gente não podia ignorá-las dentro do processo do filme. Mas o engraçado é que a gente não precisou reescrever ou criar nada: estava tudo lá. O filme já tratava do fato de que ninguém sabe o que está acontecendo, de uma imprevisibilidade, do mal-estar desse futuro que está por vir… E isso não é só uma coisa brasileira, é mundial, né? A gente tá passando por um momento muito bizarro.

Então o filme meio que já tinha isso, mas era numa lógica existencial, particular, que hoje me parece coletiva, social. Isso passou a ser uma coisa que a gente veio a refletir sobre, mas eu não acho que a gente mudou muita coisa ou pensou alguma coisa diferente. O filme ainda é formalista, sempre foi. A gente não queria estar nesse lugar do status quo do cinema brasileiro…

Da alegoria?

Não da alegoria. Porque em filme de horror, qualquer que seja, é inescapável a alegoria. Pode ser o filme que for, alguém vai interpretar de alguma forma. Então nem era isso. Falo mais no sentido de uma agenda que discuta os problemas da sociedade brasileira, ou essa coisa “estou fazendo um filme de protesto”, entendeu? Ou uma coisa de ter que adereçar o filme ao Bolsonaro ou às circunstâncias. Isso não me interessava de forma alguma nesse trabalho específico. Não acho nada errado fazer esse (tipo de) filme. O Nó do Diabo foi um filme que eu quis fazer para discutir um processo histórico do País, mas esse não era o caso de A Noite Amarela.

Pensando nisso que você falou da dificuldade para definir o filme, fico pensando em A Noite Amarela como um horror conceitual, mas paradoxalmente não sei muito bem sintetizar que conceito é esse…

Pra mim é um filme que tem muitas camadas, e acho difícil definir rápido qual camada escolher: a questão existencial, a questão do coming of age, a questão do horror, a questão de Campina Grande… Ele varia muito de tom e de forma. Mais ou menos a cada 22 minutos ele gira a chave. E é um filme com uma preocupação formal muito grande. Um horror em que o monstro está no extracampo, no vazio. Então tem toda uma lógica do quadro, de mise-en-scène. Queria que fosse um filme experimental, mas que jogasse ao mesmo tempo com coisas que não são comuns ao cinema experimental, como a sequência em Campina Grande, que é um cinema teen, pop, mas que dentro do contexto do filme é uma sequência do horror que recai sobre os personagens, por mais que não tenha absolutamente nada de horror nela.

Poderia explicar melhor?

Eu falo isso numa lógica de subversão. Se alguém ver o filme vai dizer “isso não tem absolutamente nenhum código de cinema de horror”, mas o momento que aquilo entra no filme é de revelação sobre alguma coisa daquela personagem que desaparece, e a revelação é aquele passado que mete medo, que amedronta… Porque os personagens também são assombrados por estarem vivos.

No filme o passado surge como algo corrompido, a partir das fotografias borradas, e o futuro nunca vem, já que a noite nunca acaba. Por isso este flashback grande em Campina Grande me pareceu uma espécie de fenda temporal, um eterno presente…

Dentro de uma das possibilidades de interpretação do filme, é por aí. Isso e a questão da duplicidade, que perpassa a ideia do celular, do registro, de duplicação de experiências. Mas é tudo voltado para essa lógica da experiência humana, da existência, do tempo, da transformação que a gente sofre como pessoa… Essa transição escola-universidade é um pequeno fim de mundo na vida das pessoas. A gente passa décadas naquele sistema de escola com aquelas pessoas, naquele lugar, e aquilo tudo de uma hora pra outra já é totalmente diferente. É outro mundo, é outro universo. Aquela coisa que existia acabou, é passado.

Na minha visão o filme fala da ilusão de uma ideia de coletividade, seja em relação ao grupo do Ensino Médio que acaba de se formar, seja a respeito da virtualidade propiciada pelas redes sociais…

É, eu nunca pensei nessa lógica do coletivo. Sempre pensei numa lógica da experiência individual, primeiro pela personagem de Karina, e depois ela se estilhaça nos outros personagens. Eu acho que o filme trata de várias ilusões, na verdade. Nunca refleti sobre um desejo de um certo fracasso de coletividade, mas acho que isso faz sentido dentro do filme. Eu quis contar uma história em que você pudesse colocar dentro daquela experiência dos personagens as coisas que mais lhe afligem. Acho que essa ambiguidade e essa falta de corporalidade do monstro pode ser construída pela interpretação de cada um. Isso também me interessava. Apesar de haver vários nortes: a questão do tempo, do passado, de uma nostalgia… Mas essencialmente essa incapacidade de a gente se enxergar no mundo. E o filme faz isso o tempo todo. Joga com o claro e com o escuro, os personagens entrando na escuridão, a escuridão chegando… Ele trata disso. E a partir daí a gente pode compreender que ilusões são essas.

A questão das redes sociais faz parte da vida das pessoas, elas se comunicam a partir dela. Eu nem sou uma pessoa que acha “nossa, as redes sociais são uma coisa horrorosa”. Sei lá, tem tanta coisa horrorosa pelas quais as pessoas foram obcecadas e hoje não são mais, tipo televisão. Elas vão substituir por qualquer outra coisa que as afaste de contemplar um vazio existencial que a gente tem. Por exemplo, hoje ninguém mais fica no ponto de ônibus olhando pro nada. Todo mundo tá olhando pro celular porque olhar pro nada é ruim.

Mas eu nunca pensei muito na questão da rede social, pensei mais no ato de fotografar. É uma coisa que eu acho muito doida. 7 mil fotos, 10 mil fotos no celular. Instagram com milhares de postagens, agora com Stories, que são totalmente descartáveis, é uma coisa pra ficar ali por 24 horas e você vê durante meio segundo porque já avança para ver todos os stories, né? Então a produção de imagens era uma questão pra mim, até como realizador: por que produzir imagens em um mundo em que isso é a coisa mais banal que existe?

Pra mim era muito importante que tudo fosse digital no filme, excetuando-se ali o momento da aparição do avô, que é o Necronomicon do filme, né? Ali a gente vai pra VHS e Super-8, coisas de outro mundo que abrem portas e possibilidades imagéticas. Queria falar de personagens que estão fabricando imagens o tempo todo. Tem uma sequência do filme que é de fotos, em que a gente entende eles a partir desse auto registro. As pessoas estão cada vez mais posando e produzindo suas fotos pra ter um ar de “blogueirinha do Instagram”, esse tipo de coisa. Se você for pegar um álbum de família mais antigo e for ver as fotos de uma festa de aniversário vai ver que tem ali uma tentativa de registro muito menos posado do que hoje. Às vezes são imagens muito mal enquadradas porque a galera não sabia o erro de paralaxe, as fotos sempre eram um pouco tortas. E hoje em dia elas são muito mais produzidas. Quem quer fazer a foto de aniversario de seu filho de um ano tá contratando um fotógrafo.

Tem um livro que eu gosto muito chamado Ruído Branco, do Don DeLillo, que foi lançado nos anos 80. Ali tem um momento em que os personagens visitam o celeiro mais fotografado do mundo, e isso vira um ciclo: ele é fotografado porque é o celeiro mais fotografado do mundo. E a partir disso DeLillo faz toda uma reflexão sobre o ato de tirar fotos. Na época em que ele escreveu isso as câmeras fotográficas analógicas estavam ficando populares. Imagina isso hoje, na época do Instagram e do Youtube. Era uma questão para o filme.

Queria que você comentasse também sobre a relação que o filme estabelece com a violência. Acho que só há dois momentos em que vemos sangue, o que também é outra maneira de contrariar as convenções de gênero…

É porque a gente vive num mundo de imagens banalizadas. A violência não tem mais seu caráter transgressor, que podia ter até, sei lá, Pânico, vamos dizer assim. Hoje em dia a obra pop mais popular do mundo, Game of Thrones, derrama sangue, mata mulher grávida, degola não sei quem, taca fogo em criancinha… Então você tem uma miríade de violências que está em tela. Hoje se vê a violência numa lógica de comédia, tipo naquele seriado com a Drew Barrymore em que ela come gente, Santa Clarita Diet.

No futuro eu planejo fazer filmes de possessão, de fantasma e o escambau. Tenho um projeto que tem um assassino matando pessoas com faca, isso não é um problema para mim. Mas em A Noite Amarela, especificamente, eu queria fazer um filme de horror em que não tivesse violência, numa lógica meio Jacques Torneur, sabe? Val Lewton. Esse tipo de cinema dos anos 40 me parecia interessante. Pensando também numa certa tradição lovecraftiana de um horror que é cósmico, que não é do assassino com a faca. Apesar de que o filme faz muitas referências a filmes como A Hora do Pesadelo – em dado momento ele vira uma coisa “vamos ver cada um dos personagens morrendo” -, mas pra mim seria legal fazer de uma forma que não foi feita (antes).

E como foi trabalhar com esse elenco adolescente? Qual era o tom que você queria dar às atuações?

Eu não queria dar um tom naturalista ao filme, porque ele não se passa nesse mundo em que a gente está, mas sim num mundo fantástico, numa ilha que não existe, no campo da memória, do sonho… E quando digo sonho falo do processo fisiológico, de o cérebro construir imagens de uma forma narrativa enquanto você tá dormindo, de a gente vivê-las quase como se fosse uma realidade, dependendo do sonho.

Ao mesmo tempo eu sabia que não podia ir pra uma interpretação totalmente anti-naturalista, então queria que as coisas viessem da memória. Não tem diálogo improvisado no filme, tudo é texto escrito, porque eu desejava que isso viesse da memória dos atores, como se eles estivessem dizendo alguma coisa que alguém mandou eles dizerem. Isso fazia parte da ideia. Estava trabalhando com atores com muito pouca ou nenhuma experiência, e aí certos tipos de nuance e complexidade não se aplicam. Então foi uma coisa de ir montando um jogo e encontrando o tom.

Para mim também era de crucial importância que o elenco fosse de Campina Grande ou de locais próximos. Temos no elenco pessoas da Paraíba, de Pernambuco e do Ceará. Queria que eles falassem como eu, com o meu sotaque, com as minhas gírias. Isso também foi uma questão para montar o elenco.

Pensando nessa importância do contexto local, o filme também subverte as convenções de gênero na escolha da praia como espaço principal, uma vez que há uma tradição de slashers como A Morte do Demônio que se passam em casas no interior. Queria que você falasse sobre como pensou no retrato desse espaço.

Nisso eu até acho que estou dentro de uma tradição do cinema brasileiro que eu havia comentado com você, de Walter Hugo Khouri, Jean Garrett, filmes em que os personagens vão para casarões… Quem viu os filmes de Walter Hugo Khouri e assistir A Noite Amarela vai encontrar mil relações, conscientes ou não.

Também é claro que eu queria filmar o litoral da Paraíba longe de uma lógica do turismo. O primeiro filme que eu fiz, O Hóspede, é um trabalho em preto e branco, escuro. A gente queria fazer um episódio de Além da Imaginação no interior da Paraíba, essa era a ideia do filme. Quando ele passou na Mostra de Tiradentes, em 2011, a primeira pergunta que o mediador me fez foi “como é que você fez um filme escuro na Paraíba?” Nunca esqueci isso, me lembro até hoje. Eu deveria ter respondido: “na Paraíba anoitece. Fica escuro à noite, como em qualquer lugar do mundo. A gente não está sob um sol de rachar 24 horas por dia.” A imagem que a pessoa tinha era Aruanda, um documentário. Cinema de ficção paraibano era uma raridade naquela época, e hoje em dia não é mais. Além da Vermelho Profundo, tem o Tavinho Teixeira, o Arthur Lins, gente nova com curtas-metragens – inclusive um filme paraibano (Caetana) foi o vencedor da Mostra Foco, em Tiradentes, neste ano.

E a luz no filme de horror é complexa, né? A escuridão faz parte da narrativa, é quase uma parte essencial. Eu adoro filmar as praias também, acho legal sombra de coqueiro. E é comum numa certa classe média as pessoas saírem de Campina Grande para irem pra praia, especialmente Cabedelo. Isso faz parte natural da história dos personagens. Morando em Campina Grande, não faria sentido para o contexto que eles fossem para o interior.

*O repórter viajou a convite da organização do 8º Olhar de Cinema

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