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Per Capita, de Lia Letícia

01/10/21 às 15:23 Atualizado em 10/02/22 as 15:15
Per Capita, de Lia Letícia

Cinema é para sujar as mãos

Pensei um bocado antes de escrever esse texto, mas aí vai: ontem postei no Twitter que existiam alguns filmes com os quais o santo não batia a ponto de eu sentir gosto em desgostá-los. Um amigo então me respondeu, perguntando de qual filme brasileiro visto na 15ª CineBH eu estaria falando. Calei a tal provocação, também porque acredito que um certo ódio gratuíto pode ser um tanto quanto ineficaz. Afinal, conversa vai, conversa vem, mas raras vezes é difícil atingir em cheio o coração da questão. Resolvi deixar a resposta para a imaginação alheia. Até que então me vi instigado a escrever um pouco mais sobre isso, não por achar que eu efetivamente “deva” algo, ou que em mim concentre-se alguma verdade mais verdadeira que outras, mas porque calar seria quedar-se de mãos limpas, sem avançar ao ponto que me interessa nesse amplo campo que é o pensar sobre cinema.

O filme ao qual enigmaticamente me referia está alocado na sessão “Medo e Delírio” da Mostra de Curtas Contemporâneos, e chama-se Per Capita (Lia Letícia, 2021). É uma espécie de ensaio anárquico sobre violência, dominação, masculinidade e capitalismo, ancorado por uma provocação célebre do escritor inglês J.G. Ballard. Começamos o curta-metragem com um carro passeando por uma floresta à qual somos apresentados apenas pelo vidro traseiro do automóvel, cujo formato retangular remete ao scope. Depois, acompanhamos uma mulher de classe alta, deitada num apartamento à beira-mar, acometida pelo o que parece ser uma crise de pânico, misto de falta de ar com desespero; o congelar daquela imagem, seguido do corte que silencia o grito iminente, leva-nos para uma sala repleta de telas nas quais produtos audiovisuais com a temática automobilística são exibidos. Por fim, chegamos à sequência mais longa e central, na qual três rapazes brancos bem vestidos e com celulares à mão estão a socar pau e ferro em um pequeno e abandonado Uninho, talvez o carro mais essencialmente brasileiro que já tenha sido visto por estas bandas.

Até aí, nada demais parece ter acontecido. Pelo menos nada que justifique um comentário tão grosseiro de minha parte. Quero tentar explicar: a grande questão é que Per Capita parece querer ser um registro extremamente violento sobre aquilo que não se diz, ou mesmo a respeito daquilo que se pode inferir de um contexto talhado por imagens e cenários esparsos. Parece-me haver uma espécie de tentativa de encontrar uma metáfora entre a simbologia do carro, figura essencialmente masculina reproduzida anos a fio pelo cinema, e aquele ar sufocante que engasga cada vez mais a moça em pânico.

Toda a propulsão de raiva que é gerada pelo filme (o carro demolido pelos arruaceiros, a destruição com frases de efeito, a fábula anticapitalista), no entanto, está sempre ancorada por uma ideia muito ferrenha de controle, sem que jamais seja possível se deixar levar por uma vontade essencialmente cinematográfica de se quebrar com as amarras. Não há um plano mais desnorteado, uma tentativa de encenação inventiva ou aberta, uma fala, um grito, uma voz. Tudo o que resta é o controle de uma câmera-máquina que se anuncia na sequência inicial e que, mesmo quando expulsa do carro, carrega a lógica do carro dentro de si, não se dando conta de que o controle, por si só, nada pode oferecer.

Dentro da miríade de referências automobilísticas evocadas pelas cenas da sala multitelas, parece faltar a presença e o espírito de um filme como Noite Final Menos Cinco Minutos (Debora Waldman, 1996), obra que se forja quase que inteiramente em virtude de um carro, mas que é capaz de desconstruí-lo e destruí-lo com primazia. 

Entendo perfeitamente que talvez haja em Per Capita um desejo de relação mais profunda entre esses símbolos, um aprisionamento social daqueles sujeitos ou até uma vontade a fórceps de se aniquilar com tudo aquilo que represente a ordem. Mas não me parece possível que qualquer comentário político mais contundente tome forma e contornos sendo feito de uma maneira tão previamente calculada. Exemplo maior disso talvez seja a citação de Ballard pichada gritantemente no automóvel no plano final: ao contrário do que acontece em um filme como Thinya (também de Lia Letícia, 2019), no qual a revelação dos textos referenciais para a sua construção nos fazia rever a nossa relação com as imagens e sons que vieram anteriormente, em Per Capita não há reposicionamento, mobilização ou fricção possíveis a partir daquele plano quando pensamos no conjunto da obra. 

Se há algo que me incomoda no cinema são as mãos limpas. E para sujar as mãos é necessário que haja qualquer espécie de partilha com quem assiste a uma obra. Coisa que Per Capita nega e repele o tempo todo, seja pela trilha estrondosa e manipuladora, seja por aquela bagunça tão milimetricamente decupada, que sequer abre espaço para um brado ou um ruído humano, para um delírio ou desvario mais simbolicamente sincero. 

Se filma a distância, em preto e branco, quase escondido, retirando todo e qualquer tom de raiva ou angústia que a experiência de ver um filme possa gerar. Ficamos apenas com aquelas imagens, tão corretamente forjadas para carregar-nos para o caos. Só que o filme fica, e a gente vai embora sem levá-lo conosco. E parte naquele vazio acinzentado, jamais capaz de dar conta de tantos outros tons que o cinema ou suas supostas temáticas pediriam.

*Este texto integra a cobertura da 15ª Cine BH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte

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