O Rei Dom Sebastião não morreu. Do Movimento Armorial de Ariano Suassuna a pequenas superstições do sertão semiárido, o nordeste brasileiro tem um quê do sebastianismo – crença segundo a qual o rei português, morto em batalha no séc. XVI, voltaria à Portugal e levaria o país às glórias novamente. A cineasta Larissa Figueiredo explora um afluente dessa profecia em O Touro, longa que se passa na Ilha dos Lençóis (Maranhão), para onde D. Sebastião teria ido com seu exército e fundado um reino encantado sob as dunas. Entramos nesse universo junto com Joana (a atriz portuguesa Joana de Verona), que chega querendo saber mais sobre a história. O longa é irmão do curta-metragem O Rei, no qual o mesmo acontecimento é narrado pelo próprio D. Sebastião.
O estatuto híbrido entre documentário e ficção do longa se assemelha ao de Iracema – Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, em que Paulo César Peréio contracena com personagens reais, ou ao de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz, on the road onde a voz de Irandhir Santos é o único item ficcional.
Disposta a acompanhar vivamente a incursão de Joana, a câmera na mão é sensível na maneira como projeta a espacialidade. Há a opção por se recolher junto à protagonista, no calor do momento, em perspectiva íntima e apelando aos sentidos – é quando o cinema imersivo de O Touro ganha expressividade. E há a opção por se afastar um pouco de Joana, deixando que se una à paisagem, situando-a naquela topografia particular. Joana é uma mergulhadora, com a alteridade necessária para banhar-se numa outra cultura – o que sempre desequilibra nossas bases históricas – sem emitir julgamentos, recebendo o que a comunidade maranhense lhe oferecia.
É impossível permanecer imune à Ilha dos Lençóis, que toma a tela, autorizada por planos abertos. A vista de dunas em curvas sinuosas até o horizonte, entremeadas por lagoas descontínuas, e o acesso ao mar pleno formam uma paisagem que se impõe e reivindica sua parte na construção de significados. Além da analogia com o deserto marroquino (onde Sebastião teria se perdido), a imagem aciona a ideia de infinito, potencialmente mística. Talvez caiba deduzir que os grandes contadores de histórias encaravam imensidões – de estrelas, de montanhas, de água, de areia. É como se a vastidão fosse um convite etéreo para pensar o mundo, imaginar passados e futuros, inventar-se. Ou: numa geografia onde é fácil se perder, urge criar uma identidade forte.
Identidade, aliás, é conceito-chave para refletir sobre a importância dos mitos e lendas na formação de um povo. A tradição ibérica, ainda muito reluzente no Nordeste, nos lembra do nosso passado também por meio das crenças: somos parecidos porque acreditamos em coisas parecidas. No caso, Joana entra em contato com camadas e mais camadas de crendices e rituais que os habitantes de Lençóis vão lhe apresentando. São elementos construtores através dos quais podemos visualizar a raiz, a trajetória e a assinatura de uma comunidade. O motivo misterioso e fabular de O Touro é um belíssimo pretexto para acender uma experiência de conexão cultural.
Nota: 9,0/10 (Excelente)
* Filme visto na 9ª CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte