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O Sonho do Inútil, de José Marques de Carvalho Jr

09/10/21 às 19:37 Atualizado em 10/02/22 as 15:15
O Sonho do Inútil, de José Marques de Carvalho Jr

A parte maldita (tomando uma cerveja com O Sonho do Inútil e Georges Bataille)*

“A exuberância é beleza”

William Blake

“Toda vez que o sentido de um debate depende do valor fundamental da palavra útil, ou seja, toda vez que uma questão essencial referente à vida das sociedades humanas é abordada, quaisquer que sejam as opiniões representadas, é possível afirmar que o debate é necessariamente falseado e que a questão fundamental é eludida. Não existe, com efeito, qualquer meio correto, tendo em vista o conjunto mais ou menos divergente das concepções atuais, que permita definir o que é útil aos homens.”. 

Entre imagens de meados dos anos 2000 e filmagens atuais, José Marques de Carvalho Jr, diretor de O Sonho do Inútil, conta a história de um grupo de amigos que em 2005 começa a fazer vídeos de humor físico para a internet, ao estilo Jackass. Ao mesmo tempo que divide conosco a trajetória do coletivo Inútil, com seus vídeos de baixa resolução e situações-limite, com direito a muito fogo e queda livre, o filme nos conta o que aconteceu com cada um dos cinco integrantes, sendo um deles o diretor. 

“É verdade que a experiência pessoal – caso se trate de um homem juvenil, capaz de esbanjar e destruir sem razão – desmente a cada vez essa concepção lamentável. Contudo, mesmo quando se prodigaliza e se destrói sem se dar a menor conta, o mais lúcido ignora por que ou se imagina doente; é incapaz de justificar utilitariamente sua conduta e não lhe ocorre a ideia de que uma sociedade humana possa ter, como ele, interesse em perdas consideráveis, em catástrofes que provoquem, de acordo com necessidades definidas, depressões tumultuosas, crises de angústia, e, em última análise, um certo estado orgíaco.”

Chutando uma lata de nescau pegando fogo em câmera lenta, o narrador fala sobre performance, beleza, arte e vida na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ele conta sobre o seu antigo plano de “chegar até o cinema”, e como isso lhe ajudou a superar um período depressivo. É uma voz off que provoca ruídos, seja pela mixagem que por vezes não a destaca em primeiro plano, seja pelo endereçamento pretendido por aquelas palavras. Pra quem é esse filme? Pra eles mesmos: Douglas, Aluã, Daniel, Diego e Jr. Quando esses cinco nomes surgem alinhados aos de Buster Keaton e Jackass, a filiação surge como impulso vital para seguir filmando, e não como retórica pra ser desfilada em debates de festivais de cinema. (Os dois longas-metragens anteriores de Jr. somam quase 4 milhões de visualizações em seu canal no Youtube.)

“O prazer, quer se trate de arte, de desregramento admitido ou de jogo, é definitivamente reduzido, nas representações intelectuais que tem curso, a uma concessão, ou seja, a um descanso cujo papel seria subsidiário. A parte mais apreciável da vida é dada como uma condição – às vezes mesmo como a condição lamentável – da atividade social produtiva. […] A esse respeito, é triste dizer que a humanidade consciente permaneceu menor: ela se reconhece o direito de adquirir, de conservar ou de consumir racionalmente, mas exclui, em princípio, o dispêndio improdutivo.”

Permanecer vivo é uma performance constante. Os corpos jovens queimam de vontade de vida em um contexto inóspito e por eles atravessam as expressões de um mundo de excessos e faltas. O afeto familiar ou da amizade, a música, o desenho, o cinema, são manifestações de consagração e de júbilo, para além do trabalho ou de uma realização profissional. Não apenas porque não há trabalho (e não, não há trabalho), mas porque é a inutilidade, o que não é quantificado, contabilizado, passível de acúmulo, que realiza o espírito.

“O luxo, os enterros, as guerras, os cultos, as construções de santuários, os jogos, os espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (desviada da sua finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condições primitivas, têm em si mesmas seu fim. Ora, é necessário reservar o nome de dispêndio para essas formas improdutivas, com exclusão de todos os modos de consumo que servem de meio-termo à produção.”

O sonho de “viver de música”, de se reconciliar com a mãe, de ser conhecido na quebrada, de “ser um bom pai”: nada que se acumule. Ser inútil é o sonho do inútil. Ou que a inutilidade seja apreciada como valor. “Fazer cinema pra quê? Pra nada”, disse um amigo em um artigo sobre cinema e educação. Fazer cinema porque não fazer é morrer. Mas viver também não é um objetivo quantificável, não possui utilidade em si, não é produtivo – o capitalismo é um sistema de morte. Viver é. Ser arte. Gastar o excesso e a falta da sociedade queimando a ponta dos dedos, o fio dos cabelos, as narinas.

“Por mais pavorosa que seja, a miséria humana nunca exerceu suficiente influência sobre as sociedades para que a preocupação com a conservação, que dá à produção a aparência de um fim, prevalecesse sobre a preocupação com o dispêndio improdutivo. Para manter essa preeminência, sendo o poder exercido pelas classes que despendem, a miséria foi excluída de toda a atividade social, e os miseráveis não têm outro meio de entrar no círculo do poder senão pela destruição revolucionária das classes que o ocupam, isto é, um dispêndio social sanguinolento e de modo algum limitado.” 

Entre vida e arte, performance e cotidiano, um filme de amizade. “Eu queria fazer um filme para que o meu amigo fosse ator”, diz o diretor em entrevista para o festival. A amizade como bem inútil. Singelo e inútil como o café tomado de pé, na rua, enquanto se espera o nascimento de um filho; ou como o desabafo de um personagem que emocionado, segurando um copo de cerveja, confessa o desejo humano de continuidade mais ancestral e inútil: eu quero estar aqui para quem vier depois de mim, quero contar as histórias de quem veio antes. 

*Os trechos em itálico fazem parte do livro: A Parte Maldita: precedida de “A noção de dispêndio”, Georges Bataille. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.

Informação inútil: “A noção de dispêndio” foi escrita por Bataille na França, em 1933, ano da nomeação de Adolf Hitler como chanceler da Alemanha. 

**Este texto integra a cobertura do 10º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba

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