Realizado em um primeiro momento para integrar a programação da 32ª Bienal de São Paulo, o filme O Peixe, de Jonathas de Andrade, ganhou um corte menor, de 23 minutos, para poder adentrar o cenário dos festivais de cinema como um curta-metragem. Através da concepção calcada na repetição o trabalho constrói uma temporalidade muito particular, na qual as ideias de desenvolvimento e desfecho narrativo são maleáveis, assim como no fluxo constante de um vídeo exibido em uma exposição de arte. Nesse aspecto, a exceção é o plano inicial, que serve justamente para introduzir um ambiente no qual a rotina dos homens e dos peixes postos em quadro será adentrada.
Trata-se de um manguezal, que é por definição “um ecossistema costeiro, de transição entre os ambientes terrestre e marinho”. De alguma forma, está presente naquela paisagem em Alagoas essa ideia de um lugar intermediário e a princípio pouco definido para o espectador. Fica-se entre o registro etnográfico e a performance visual, entre a observação voyeurística e a participação ativa da câmera na busca por aqueles corpos, entre a beleza e a crueldade.
O que vemos em tela é, basicamente, uma sequência com cinco pescadores exercendo essa atividade. Após chegarem aos peixes, eles acariciam de diferentes maneiras suas presas, que se debatem até a morte.
Ter a informação extra-fílmica de que essa situação foi conceitualizada pelo diretor é irrelevante diante dos atravessamentos do filme pelo real e pela fantasia. Para o primeiro aspecto, contribuem a materialidade daqueles corpos em tela e os longos planos sem cortes em que os rituais acontecem; para o segundo item, contribui a ideia de isolamento presente naquele plano inicial e reiterada pela ausência de outros animais ou pessoas em quadro, e também a estetização promovida pela fotografia em 16mm.
Muito embora o título particularize a situação através do uso do artigo “o”, uma das potências do filme é justamente a saída de um retrato individual para um retrato coletivo, a partir principalmente das variações na idade (da juventude à terceira idade) e nos modos de pesca (do anzol e do arpão à rede). Tal movimento vai de encontro a uma ideia de diluição ou esgotamento que pode surgir a partir da estrutura circular adotada pelo filme. De modo contrário, é essa repetição que cristaliza muitas das temáticas ali presentes, como os diferentes graus de violência e dominação/erotismo que podem estar presentes em relações a princípio afetuosas e respeitosas – seja no zoom in com o qual a câmera busca seu mais novo alvo ou nos carinhos que os pescadores oferecem aos peixes agonizantes.
As cenas em que, antes de cada novo ritual, os pescadores surgem em planos fechados – primeiro com olhar perdido, e depois mirando a câmera – são momentos em que se explicita um duelo de forças entre aquele que retrata e aquele que é retratado. Por outro ponto de vista, elas também podem ser interpretadas como um convite para o espectador de O Peixe se tornar um desses vetores, deslocando sua visão para além da superfície da imagem, sem, no entanto, querer impor a ele um discurso pré-concebido sobre seus significados.
*O Peixe foi exibido no VIII CachoeiraDoc e no 50º Festival de Brasília