Ruínas do futuro
Um filme sobre território. A proposta é sedutora e logo traz à mente outros títulos mais óbvios: Stalker (1979), de Andrei Tarkovski, O Território (1981), de Raul Ruiz, ou tantos outros fantásticos ou de horror em que o tempo e o espaço se amalgamam em uma experiência telúrica de portal entre mundos. Mas O Estranho (2023), de Flora Dias e Juruna Mallon, vai por outro caminho para conduzir o nosso olhar de um lugar – espaço vivenciado pelas pessoas e grupos sociais – para um território – conceito geográfico que envolve questões históricas, políticas, econômicas e culturais. Seguindo uma linha híbrida contemporânea que se movimenta entre o documentário e algumas elaborações ficcionais, passando inevitavelmente por Apichatpong Weerasethakul, O Estranho tateia o entorno do aeroporto de Guarulhos a partir da sua constituição geográfica, da sua formação histórica, de seus habitantes, da ocupação predatória e da formação política da região.
É bastante coisa para um filme só, mas Dias e Mallon se atêm muito bem ao recorte que propõem para pincelar todas essas relações. A palavra “recorte” pode soar acadêmica, referindo-se a um “recorte” de pesquisa, e não é por acaso que é usada aqui. Os diretores dominam as técnicas narrativas, indo da ficção explícita ao documentário de entrevista, ou inserindo uma cena musical tão improvável quanto lúdica, sem romper o fluxo do filme. No entanto, O Estranho parece um filme frio, que se afasta do espectador, provavelmente pela explicitação formal da tese que comprova: a região de Guarulhos foi historicamente um território indígena, ocupado de forma predatória por todo o complexo que envolve o aeroporto, que transformou a região de forma irreparável.
Preocupados com as relações políticas da exploração econômica e cultural predatória da região, Dias e Mallon valorizam a narrativa do aeroporto como aquele estranho entranhado na área verde, que quase sempre olhamos de longe. No plano-sequência inicial, uma câmera atordoada segue as malas apressadas que circulam nos corredores de Guarulhos, para um tempo depois encontrar e seguir a protagonista, contrapondo a presença fixa das personagens, habitantes da região, guardiãs do território, à inconstância e volatilidade das vivências do aeroporto, local de passagem, um não-lugar. Depois deste início, o filme volta poucas vezes ao interior da montanha de concreto erguida no meio daquele território sagrado.
Em alguns momentos, a protagonista busca folhas e flores em meio aos livros dos passageiros; em outros, um funcionário terceirizado procura sem sucesso o sindicato dos profissionais aeroportuários para resolver um problema de trabalho. Há também a cena musical que irrompe do freeshop com frescor narrativo. Contudo, em sua maior parte, O Estranho propõe um olhar que se pretende arqueológico em relação às práticas ancestrais da região ocultadas por aquele objeto não identificado.
Apesar da construção narrativa falsamente acidentada ser bem feita, O Estranho não envolve. O romance entre as personagens, as suas diferentes relações com as práticas espirituais da região, suas origens desveladas em cenas que transitam entre o realismo e o onírico, não são o suficiente para nos conectar emocionalmente com o filme. O excesso de certeza investigativa dá pouco a ver as contradições de relação entre o aeroporto e a região. Em uma cena de despedida, uma das personagens diz a outra que está para se mudar: “Como você vai dormir sem o barulho do avião?”. Esta talvez seja a única menção a uma relação mais complexa entre os personagens locais, provisórios e permanentes, e aquela estrutura que alterou indelevelmente a economia, a paisagem e a cultura da região. Para afirmar o seu importante discurso político, Dias e Mallon optaram por manter o aeroporto de Guarulhos como um estranho, tudo o que ele não é para aquele território.
*Filme visto no 12º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba