Documentário pessoal e a arte de não dar a ver
Em um ringue circense montado em uma cidade no interior do Brasil, provavelmente no final dos anos 1970, o apresentador anuncia o espetáculo da noite: Neirud, a Mulher Gorila. A plateia vai ao delírio e uma super lutadora surge de braços para cima saudando o público. É com esta cena que Fernanda Faya, diretora de Neirud (2023) – trabalho vencedor da competitiva brasileira de longas-metragens do 12º Olhar de Cinema -, nos presenteia apenas no terço final do filme dedicado à companheira de sua avó, atriz circense e lutadora de telecatch feminino nos anos 1960 e 1970.
Com seus personagens inusitados e esquetes cômicas que misturavam luta livre, teatro e técnicas circenses, a luta livre coreografada, masculina e feminina, foi sucesso em toda a América Latina, sobretudo no México (lucha libre), sendo inclusive televisionada no Brasil em várias emissoras entre os anos 1960 e 1990. O telecatch teve grandes nomes nacionais entre seus personagens, e ainda mais tantos anônimos que rodavam os confins do país fazendo esquetes em ringues e picadeiros improvisados, mas Faya desconhecia que sua “tia Neirud” havia sido uma estrela nacional deste espetáculo popular.
Neirud, o filme, começa com uma premissa conhecida do documentário contemporâneo: “quando eu nasci meu pai comprou uma câmera para registrar a família; agora que eu tenho uma câmera, quero fazer o mesmo.” Apresentando-se inicialmente como um registro familiar, o mote narrativo logo se estabelece: quem é a tia Neirud, que sempre vem visitar a família com a sua avó? O primeiro obstáculo: não existem registros de Neirud, nem documentais, nem fotográficos. Segue a investigação: caixas de fotos encontradas, histórias de família, conversas com o pai e até uma entrevista com uma ex-lutadora por telefone. Assim, Neirud acaba não sendo sobre Neirud, mas sobre a investigação sobre Neirud. Contudo, a história de Neirud é muito mais interessante do que a investigação, que parece estar sempre um passo atrás do espectador. É como se estivéssemos assistindo à diretora se embrenhando em técnicas investigativas, enquanto a história a ser contada pulsa por trás da estrutura narrativa. Quando a imagem de Neirud parece enfim vencer a camisa de força do roteiro e surge triunfante no ringue, o filme já se encaminha para o final.
Faya fala de invisibilidade, mas não visibiliza à altura a atividade a qual sua avó e sua companheira se dedicaram por parte da vida. A arte circense, aqui representada pelo espetáculo de telecatch, como boa parte da nossa cultura popular, é pouquíssimo documentada no Brasil. Uma busca rápida e encontramos mais alguns nomes do panteão de mulheres lutadoras que fizeram fama nos anos dourados do telecatch: Índia Paraguaia, Mulher Vampiro, Mulher Pantera, e por aí vai. Para fazer um filme pessoal, outra tendência do documentário contemporâneo, Faya não quis buscar a Mulher Gorila, sucesso dos palcos e ringues, que por anos Neirud tentou esconder por orientação da igreja que frequentava, mas a “tia” afetuosa que no final da vida vende bolas coloridas em Santos. Ainda assim, nossos olhos ficam desejantes de mais imagens, de mais histórias, de mais daquele universo vibrante que nos acena brevemente ao final, e logo parte para dar lugar a uma praia em dia nublado. Impossível não pensar em Fakir (2019), de Helena Ignez, que faz um caleidoscópio de imagens e histórias, construindo um pedestal para as artistas dos espetáculos circenses populares.
Falar de si para acessar o outro se tornou um subterfúgio recorrente no documentário contemporâneo. Em Neirud, em vez de expandirem as possibilidades de invenção, assumindo a artificialidade da construção documental ou extrapolando a ficcionalização atávica da narrativa, as questões éticas que atravessam o gênero às vezes enredam o filme numa espiral de impossibilidades, aprofundando a meta-linguagem e tornando o filme o objeto do filme. Este labirinto intrincado que busca o acesso à personagem através de uma motivação afetiva e pessoal (sempre as boas intenções) parece ocultar o que a personagem tem de mais vibrante.
A sensação do espectador está descrita no próprio documentário. A diretora narra em algum momento a lembrança de que, quando era criança, pediu a seu pai para levar as amigas ao circo para ver o espetáculo de Neirud, a Mulher Gorila. Chegando lá, seu pai as leva embora antes do início do show, frustrando a todas. A pergunta que vem à mente: em que momento fazer um filme sobre si e sobre a sua família começou a parecer mais interessante a jovens cineastas do que se aventurar na descoberta de todo um novo universo que se abre a partir da descoberta de uma personagem como esta?
No lugar de uma celebração à arte popular de sua avó e de Neirud, o documentário opta por uma narração melancólica sobre a resistência política das lutas livres femininas nos anos de Ditadura, ideia que não se desenvolve; ou então faz alguma sugestão a respeito do preconceito racial em relação ao nome artístico da personagem lutadora de Neirud: Mulher Gorila. Nada disso faz jus à grandeza da imagem da artista circense que entra em cena em um ringue mambembe pronta para mais um dia de espetáculo, como tantos outros artistas anônimos Brasil afora. Neirud merece continuar.
*Filme visto no 12º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba